Aqui fica, para memória futura, o nascimento e making of de As Meninas, livro de Agustina com a pintura de Paula Rego. Foi na mais pequena editora do mundo, a Três Sinais, que fui editor do mais belo dos meus livros. O mérito, já vão ver, é de Agustina, Paula Rego, Manuel de Brito, Luis Miguel Castro, da Gráfica de Coimbra, do imparável Padre Valentim que a dirigia, do Manuel Gândara que tudo sabia de papéis, panos, tintas e offset.
Ainda mal tinha dado um beijo ao século XXI, seria Fevereiro ou Março do ano 2000, quando me apeteceu dar um beijo a Agustina Bessa-Luís e outro a Paula Rego. A Três Sinais editores, a mais pequena editora do mundo, estreara-se com Jorge de Sena e andava a fazer, com a ajuda preciosa da realizadora Joana Pontes e do Coronel Sousa e Castro, um bonito livro com o diário que o soldado Etelvino escrevera na guerra de África — que eu, sem África, não sou nada. Sabe Deus porquê terei pensado: mas quem são, hoje que já não há tropa, os nossos generais?
Se essa arrevesada arte da escrita e essa outra arte de rupestremente se pintarem grandes telas, se as artes portuguesas têm generais, esses generais são, digo eu, generais de saias. Eu via dois generais no meio da floresta negra, dois generais bruxas, de sabbats orgíacos, de solstícios e missas negras. E fui, pequeno polegar, falar com elas. Devo aliás dizer que fui falar com ela, porque a chave era mesmo a maravilhosa alquimista Agustina. Se bem me lembro foi comigo um sócio — um dos três sinais – e poeta, o Gil de Carvalho. Agustina recebeu-nos a chá das cinco na sua casa da Buenos Aires, em Lisboa. Ficou para mais tarde o Gólgota. Fiz-lhe uma proposta que ela não poderia recusar, riu-se, conspirou, falou de Saramago, de Israel, de Eugénio e de Oliveira e disse que sim.
Nascia este livro, “As Meninas”, texto de Agustina sobre Paula Rego, cruzando a pintura e a biografia, cruzando a objectividade das telas com uma desembestada e informadíssima fantasia que envolvia rituais, família, salazarismo, touros pretos e crocodilos brancos. Digo coisas em cifra? Experimentem ler e vão ver que compreendem tudo.
Podia ser só um livro de Agustina. Mas o gládio de Agustina pedia — estava mesmo a pedi-las — figuras, meninas, cães e anjos, mulheres-avestruzes de Paula Rego. Mais reservada, Paula, a londrina, mandou-nos falar com Manuel Brito, seu galerista, mítico galerista da 111. E tivemos o segundo sim. Agora, a escrita de Agustina podia ser um desenho e o desenho de Paula Rego podia ser uma escrita.
Os meses que demorámos a fazer este livro foram, talvez, os dias mais felizes da vida do meu gráfico desses tempos, o Luís Miguel Castro. Tinha nas mãos a pintura de Paula. Era um menino a deglutir doces. Se não ficou diabético então, nunca mais o Luís ficará diabético em dias da sua vida. Tínhamos recebido esplêndidos slides — toda a obra fotografada e Manuel Brito apoiava-nos em tudo. As páginas gigantes do livro — tínhamos ali spreads de 60 centímetros e oh, se o tamanho conta — abriam-se à virgindade das noivas de Paula, ao infanticídio do seu Padre Amaro. Éramos crianças e, como sublinhou Agustina, o pecado para a criança é um ingénuo desenvolvimento do desejo que se obtém com o choro e o bater dos pés no chão. Pecámos larga, desmedidamente.
Capa cartonada revestida a pano, um papel Pop Set de 170 gramas (ainda se fará hoje?) que, mate, aceitava muito bem a cor, reproduzindo com fidelidade (uma fidelidade de Gráfica de Coimbra, que o Padre Valentim e o nosso amigo Gândara garantiam) as texturas das telas de Paula Rego, paginámos com liberdade e liberalidade, dando grandeza e soberba a pormenores, tanto aos da pintura, como mesmo a alguns dos mais inspirados ou chocantes aforismos com que o texto de Agustina nos deslumbrava ou sufocava — o que é que se há-de dizer quando “as mulheres conspiram, inspeccionando a sua roupa de baixo.”
É que bastava virar a capa. Virava-se e entrava-se nas guardas que podem ver abaixo, puzzle, repetição, espelho que multiplica o que seria o mesmo rosto se pudesse haver dois rostos iguais ou se um só rosto pudesse sempre ser o mesmo rosto. Virava-se a capa, entrava-se nas guardas e nenhum rosto, nesta falsa multiplicação, é o único ou o mesmo rosto.
E depois chegava-se ao fim. 142 páginas a desaguar num colophon com o logo três sinais da Teresa Conceição. As assinaturas de Paula Rego e de Agustina juravam que esta era uma edição de 2.600 exemplares, devidamente numerada. Uma edição rara, hoje esgotada, de alto valor bibliófilo.
Livro com muito bom aspecto pelas mãos do Luís Miguel, amigo e designer gráfico que me surpreendia sempre a cada novo catálogo da Cinemateca. Fizeram um belo objecto!
LikeLike
Gonçalo, és amigo do Luís? Temos de nos juntar os três.
Abraço
LikeLike