
O actor Errol Flynn está a sair do Mocambo e escorre-lhe sangue de uma orelha. Ora, o Mocambo é tudo menos uma praça de touros. E interessa pouco como é que Errol Flynn de lá saiu. Interessa é como é que lá entrou.
Nesse dia, 20 de Setembro de 1941, a sua mulher, a pasmosamente bela Lili Damita, anunciou-lhe que ia avançar com o divórcio. A furiosa simbiose sexual que os juntara, criara-lhes uma paradoxal incompatibilidade fora da cama. Lili, diga-se, teve lições de ballet em Lisboa, onde cresceu, passando das aulas num hipotético convento às aulas na Escola da Arte de Representar, como então se chamava ao Conservatório, assunto que não é desta história e que ela ocultou, rasurando essa vergonha portuguesa da sua biografia. Bailarina e actriz, tendo abdicado da carreira pelo casamento, Lili Damita acusava Flynn, seu marido, de crueldade mental, de abandono por longas temporadas, tudo isso em dobrado depois de lhes ter nascido um filho.
Não é certo que o pedido de divórcio tenha causado a Errol Flynn um grande abalo ao pífaro. Mas trazia ainda nos olhos as aceradas sombras da perda de Arno, o seu cão de raça schnauzer, cão que fidelissimamente o acompanhava para todo o lado. Levava-o para as filmagens e até para o iate em que se metia mar alto, para fugir de Lili Damita. Era um cão sem medo do mar, que caninamente se divertia a apanhar peixes voadores ao largo de Los Angeles. Deve ter caído às salsas ondas a tentar apanhar um e Flynn só deu conta quando chegou à marina. Flynn chorou baba e ranho, abanou montanhas e abanou Maomé, mas só três dias depois o cadáver de Arno deu à costa. O destroçado Errol Flynn nem teve coragem para o ir ver. Pediu à Guarda Costeira que lhe fizesse um funeral, com honras de marinheiro, em pleno oceano. Hollywood, à época, podia pedir o que quisesse e essa foi a mais nobre homenagem que Flynn quis dar ao seu fiel Arno.
Sábados à noite pedem festa
Podem ver no calendário: esse 20 de Setembro de 1941 foi um sábado. Flynn estava doido por desanuviar – trazia no sangue um calor de banho-maria. Saiu com um actor amigo, Bruce Cabot, que só não é uma lenda porque no “King Kong”, seu filme mais célebre, o gorila lhe roubou o protagonismo. Entremos com os dois no Mocambo, o lugar mais selecto da noite de Hollywood. Os dois amigos vão comer, beber e dançar. Ainda mal se sentara e já os olhos de Errol Flynn chocavam com Jimmie Fidler, a jantar com Roberta Fidler, a sua mulher. Devia estar uma borboleta a bater as asas em Lisboa, para que tenha acontecido a tempestade que logo se deu no Mocambo.
Flynn avançou para Fidler, encostou-lhe o punho à cara e disse: “És má rês e mentiste no Senado. Mas nem um murro mereces.” E espetou-lhe uma ofensiva e sonora estalada. O humilhado Jimmie Fidler abanou e não mais se mexeu, hirto e esbofeteado. Levantou-se a mulher de Fidler, correram os criados, alvoroçou-se meio mundo. Na mesa ao lado, Jean Gabin estava com Marlene Dietrich e só queria que nada acontecesse às maravilhosas pernas dela. Lupe Velez, mexicana de sangue ardente, saltou para cima de uma mesa com uma garrafa de molho de tomate na mão. O maestro que dirigia a banda tocou o hino da América e foi a única forma de descer, por um breve momento, a paz à terra.
Aproveitemos, enquanto soa o hino no Mocambo, para sairmos de cena um minuto e pormos a cronologia e os factos em ordem. Mas preparem-se: quando voltarmos, há-de ser de rabo colado à parede, que o Mocambo vai estar de mosquitos por cordas.
Quem era Jimmie Fidler? O famoso Fidler sabia tudo de Hollywood. Fora pouco mais do que um figurante no cinema mudo, agente de imprensa de uma dezena de actores, até que a rádio e a Imprensa o contrataram para escrever uma coluna de mexericos. Má-língua pura, mas muito bem informada. Era lido, lambido e ouvido, com dependência e devoção, por mais de quarenta milhões de americanos, nas 486 estações de rádios e 360 jornais que difundiam a sua coluna. Escrevia cartas abertas a actores que se portavam mal. Um terror. Maior do que o terror que as crónicas de Vasco Pulido Valente inspiravam aos políticos portugueses quando os políticos portugueses ainda sabiam ler.
Convocado pelo Senado, Fidler prestara declarações num comité manhoso, que pretendia preservar a imparcialidade dos filmes americanos durante essa II Grande Guerra que tinha lugar lá longe, na Europa, entre ingleses e alemães. Para gáudio dos isolacionistas, que defendiam o não-envolvimento da América na guerra, Fidler encheu a boca de acusações aos estúdios: os filmes de Hollywood estavam, protestou ele, cheios de ódio aos nazis e fomentavam o sentimento favorável à guerra. Fidler acusava Hollywood de ser favorável aos aliados e de incitar à guerra. Era como pedir a censura.
Produtores, realizadores e actores gritaram o que tinham de gritar: traição! Errol Flynn lavou a honra anti-nazi de Hollywood com uma bofetada, parecendo querer desmentir avant la lettre a suspeição de ser espião nazi, opróbrio de que, em anos vindouros, seria acusado. Ou talvez as razões de Flynn fossem mais pessoais e raivosas do que políticas. Custara a Flynn os olhos da cara que a renegada lisboeta Lili Damita lhe arrancara, ser exposto por ter ido levar ao aeroporto de Los Angeles a bailarina europeia Tamara Toumanova que George Balanchine (oh, categoria!) coreografara nos Ballets Russes de Monte-Carlo. Óculos escuros, a gola do casaco levantada, só ajudaram a denunciar ainda mais a natureza clandestina do generoso, e certamente desinteressado, acompanhamento de Flynn… Jimmie Fidler nos seus programas de rádio contara essa história, denunciando Flynn. Era tudo verdade e foi mais um prego no caixão-cama que já era a relação de Flynn com Lili Damita, mãe do seu filho.
Escrevi isto tudo e ainda nem sequer falei do pior. O pior foi o colunista de língua suja ter dito e escrito que Flynn andara a exibir-se publicamente, batendo com a cabeça nas paredes por lhe ter desaparecido o cão amado, mas nem sequer tinha ido recolher o cadáver quando a Guarda Costeira o encontrou. Ora, como eu e os meus leitores somos testemunhas, isso não era mesmo verdade. Errol Flynn não tinha tido coragem de voltar a ver o cão despedaçado pelo mar, mas cuidara de lhe dar o funeral de Estado de que já falámos. Mais do que as clandestinas, mas verdadeiras, traições amorosas, o que doeu a Flynn foi esta acusação animal que Fidler espalhou pela selva de Hollywood. Era boato, dir-se-ia- em Lisboa, era um mujimbo, dir-se-ia em Luanda.

O meu reino por uns botões de punho
E voltamos ao interior do Mocambo. Afinal, Errol Flynn parece estar sentado, calminho, à mesa com Cabot. Há dez minutos que olha fixamente para a mesa do inimigo. Não se mexe, mas é um sossego nervosíssimo: na agitação da portentosa bofetada, que dera a Fidler, e dos empurrões que se seguiram, saltaram e desapareceram-lhe os botões de punho. De diamante. É o que Flynn está agora a dizer ao amigo, Bruce Cabot. Levanta-se de novo e convida uma desconhecida para dançar. Talvez a banda estivesse a tocar Cole Porter, o “I Get a Kick out of You” ou o “Anything Goes”, e talvez tenha pensado que, se não fosse a boca sem freio de Jimmie Fidler, poderia estar ali a dançar com a bela e secreta Tamara Toumanova.
Não vamos deitar-nos a adivinhar, o que interessa é que Flynn dança com uma desconhecida e um passo elegantíssimo põe-no por acaso frente à mesa do odioso Fidler, que já vai na sobremesa. “Ainda aqui estás – ruge o pirata que sempre houve em Errol Flynn –, temos de te pôr fora de Hollywood. Roubaste-me os botões de punho.” Errol Flynn já não dança e está parado em frente de Fidler: agracia-o com uma segunda e gloriosa estalada. Mas Roberta Law, a mulher do linguarudo, desta vez estava preparada. Rápida, tenta enfiar nos olhos castanhos de Flynn o garfo que tinha na mão. Ágil como Robin dos Bosques, Errol Flynn desvia-se e o garfo rasga-lhe só a orelha. De atalaia, o chefe de mesa e os elegantes empregados isolam-nos e arrancam Flynn do cenário de guerra, levando-o em braços.
Flynn sai do Mocambo com o amigo Cabot, uma pequena multidão de apoiantes, jornalistas e fotógrafos atrás deles, directos ao Shaherzad Restaurant, onde decide ir jantar. Mesmo sem botões de punho, fato cinzento impecável, papillon às bolinhas sem um milímetro de desvio, cravo vermelho na lapela já sonhando ou adivinhando o nosso 25 de Abril, só o sangue que deixa correr e lhe salpica o colarinho branco denuncia em Errol Flynn a sarrafusca de que saiu. À mesa, conta tudo aos jornalistas e, sorridente, posa para a fotografia, simulando até as gloriosas bofetadas anti-nazis que espetou nas bem tratadas bochechas de Jimmie Fidler, inimigo público número um.
O garfo certo
O sovado Fidler avançou para o segundo maior desporto americano depois do football: processou Flynn. Cometeu, porém, um erro. Não foi a tribunal acusá-lo. Deixar um juiz sozinho com Errol Flynn era de doido. Em poucos minutos já Flynn tinha seduzido o virginal juiz. Sua Eminência fez-lhe prometer que não voltaria a bater em Fidler ou fosse em quem fosse. E quis, a seguir, ser fotografado, sorriso de aberta e viril felicidade, a apertar a Errol Flynn a mão que esbofeteara o queixoso Fidler.
Por esses dias, a popularidade de Flynn atingiu picos de Himalaia, o que, em toda a História da humanidade, só o presidente Marcelo voltaria a alcançar. Hollywood passava a língua pelos lábios a olhar para as mãos de Errol Flynn. Convidou-o para ser o pugilista protagonista de “Gentleman Jim”, um filme sobre a carreira de um campeão de boxe. Foi um estrondoso êxito de bilheteira, o último de Flynn.
Jimmie Fidler, por seu lado, continuaria a ganhar, para o resto da sua vida, rios de vergonhoso dinheiro, que Flynn desprezava, acusando-o de ser pusilânime. Gabava, não obstante, a coragem da mulher, Roberta. Ela sim, atirara-se a ele, de garfo em riste. Flynn só lhe fazia um reparo: “Deus a abençoe que é uma mulher valente. Custou-me foi a falta de etiqueta. Espetou-me o garfo da sobremesa quando devia ter usado o da carne.”

Estes relatos são sempre histórias e peras! É difícil superá-las. A minha modesta tentativa é afirmar que, por questões profissionais do meu avô, a minha mãe conheceu em Londres mr. Flynn senior. Até creio que com ele deu um pé de dança. É que o mundo é pequeno, Manuel…
LikeLike
Lindo, Gonçalo. Eis o que é, verdadeiramente, uma boa história.
LikeLike
Estas impagáveis histórias, Mr Manuel, são um mundo cheio de acontecimentos. Parabéns.
LikeLike
Obrigado Bea, Entregarei os parabéns ao Mr. Flynn. Sabe que eu sou mediúnico e vou continuando a falar com esta gente 🙂
LikeLike