Agora que o ciclone, que por aqui passa, nos rouba os últimos restos de Verão, deixem-me fazer o elogio da preguiça,que tão bem nos calha nos tremendos dias de sol e mar. Aviso: leia-se devagar, ronronando em cima de cada sílaba.

Antigamente o homem era um homem. Hoje, não lhe dão sossego. O homem ideal é, agora, uma figura desaustinada, gesticulante, dinâmica, competitiva e (temo que ao dizê-lo arranque aplausos) proactiva. Um homem, isto? Já com pouco fígado e pior coração, o homem moderno não tem espaço anatómico para a preguiça, como se preguiça fosse palavrão ou vil pecado mortal.
Vim do lado de lá do equador, duma indolência que era a única resposta racional à canicular inclemência dos trópicos. À imagem e semelhança da sinuosa boa constrictor, jiboiar era o que pobres e ricos faziam depois de um repasto digno, fosse um delicado cozido à portuguesa, fosse o meu muzungué de musseque.
Aqui, na Europa, entre o ginásio e o “empowerment”, só a velocidade é afrodísiaca. Mas cansa. Cheio de vontade de parar, procurei uma bandeira que conferisse caução estética à volúpia dumas tardes sabáticas. E foi nesse interim que me lembrei de Vinicius.
Há uma canção que sempre elejo como a mais preguiçosa do hemisfério sul. Vinicius, Toquinho e Marília, em “Uma Tarde em Itapuã”, cantam a nobreza duma vadiagem que não tem tamanho. A cada verso, a cada nota, perpassa uma brisa epicurista, temperada por generosos goles de cachaça de rolha. Entre amor e mar, coqueirais e braços morenos, desenha-se o sereno espaço em que um homem deveria, sem pressa, ser homem.
Pensava eu… Até ouvir esse acumen da inacção que se chama “Avarandado”. A letra (curta) é do ocioso Caetano. Mas quem lhe deu sentido foi o zombie João Gilberto. Enquanto na canção de Vinicius havia orquestra, percussão e violinos, João canta arrastado, com voz agónica, sustentado só no pré-coma do seu violão. É uma canção de palmas enluaradas e moças recostadas. Tudo está tão quieto, parado, cada palmeira na estrada, que a gente tem medo de se mexer. Experimentem cantar: até o sol adormece e se deita.
Sejamos homens e deixemo-nos ir por esse lânguido caminho de moleza e preguiça que vai dar no mar. Começa ali o avarandado do amanhecer.
ah, se não puxarem pelo som, nem ouvem, que a voz de João Gilberto não está para se cansar e fica-lhe na garganta.
Se sempre me disseram que a boa arquitectura se vê no detalhe, eu diria que também é no detalhe que se vê o bom actor. Fonda, lânguido, improvisando uma cadeira de baloiço com aquele jogo de pernas dá-nos a ver um grande do cinema, daqueles que fazem muito se esforço, gozando o momento e o efeito provocado naquela varanda coberta. Enquanto, digo eu, ouve o Avarandado do João Gilberto, também ele cheio de detalhe harmónico para quem sabe ouvir.
E eu preguiçando e lendo no sofá, neste plácido domingo…
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Gonçalo, os meus domingos andam tão atabafados que já só te apanho nesta quarta-feira – que não é de cinzas.
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[…] Morreu João Gilberto. Morreu num sussurro, certeza que eu já tinha, e que o comunicado de seu filho confirma. Dele, disse aqui o melhor que dele tenho e posso dizer. […]
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