Os satélites de Marte

Aos três pastorinhos apareceu Nossa Senhora. Na azinheira que era, na minha infância e adolescência, a cara de cada um de nós, apareciam borbulhas e espinhas. E desapareciam. E voltavam. O acne, meu Deus! E os cravos na mão, nos cotovelos, nos joelhos? Havia quem os expusesse à lua cheia e fizesse rezas do “Livro de São Cipriano” ou será que deliro? Mas sei que, com um palito, eu lhes passava em cima uma mínima gota de ácido sulfúrico e assim os exterminava. E onde e como, em nome de Deus, tive acesso a ácido sulfúrico?

Talvez seja tudo mentira, talvez eu nem tenha afinal tido infância e adolescência. E peço que vejam, no exemplo que vou já dar, como estremeço e me revolvo na minha própria perplexidade.

Quando Jonathan Swift, no século XVII, escreveu “As Viagens de Gulliver”, fez uma minuciosa descrição de dois satélites de Marte que, é claro, não existiam: ou seja, que nunca nenhum cientista ou telescópio tinha ainda visto. E Swift, em delírio, ficcionou-lhes a posição, o diâmetro, as leis de gravitação a que estavam submetidos. Ora, os cientistas no século XX, 150 anos depois, descobriram esses satélites e corroboraram as descrições do satírico e deprimente Swift, autor também de “Os Benefícios de Dar Peidos”, essa flatulente actividade tão real como os satélites de Marte.

A Vila Alice, meu bairro da Luanda colonial, era como Marte. E apareceram lá dois satélites: para nós teenagers, eram dois “mais velhos”. O primeiro, de uns cansados 20 anos, era um tipo mirrado, com uma tosse que indiciava três antepassadas gerações de tuberculosos. Passara na altura, no cinema Império, um filme de Mauro Bolognini, “O Belo António”. O viril e sedutor Marcello Mastroianni fazia no filme de impotente. E o objecto da sua impotência era Claudia Cardinale, de cujas leis de gravitação me escuso a falar.  Por uma daquelas crueldades, que depressa se tornou benigna, ao feíssimo tipo mirrado, sempre acompanhado pela banda sonora de uma brusca e convulsa expiração do ar em cativeiro em sus pulmões, demos o nome de Belo António.

Caiu-lhe como uma luva: mais do que a nossa perspicaz autoria, valeu a magnânima adopção dele. E o Belo António contou-nos que fizera, muito jovem, a pesca ao bacalhau na gélida Terra Nova, entre os fiordes dos vikings. Até que, chamado para a tropa, se ofereceu para os comandos. Foi o nosso orgulho, depressa defraudado com a sua expulsão ao fim de uma semana. Os pulmões do Belo António não resistiram às exigências de Claudia Cardinale do capitão Chung, se bem sei. E pergunto-me se, com uma audácia de Jonathan Swift, o Belo António não terá inventado tudo isto para impressionar os putos ignaros e altivos que nós eramos?

Acolhemos com cristã misericórdia outro tipo, praticamente a entrar na terceira idade, com 22 anos. Ao contrário do Belo António, o Fred, julgo que se chamava assim, era quase um Paul Newman. E era paraquedista. Primo, se bem me lembro, de um dos heróis do bairro e chefe de uma quadrilha de assaltos a ourivesarias, que fez primeira página nos jornais luandenses, ignominiosa glória do meu bairro.

Mas o Fred era outra loiça, mais vista alegre. Em ociosas tardes na esplanada da Churrasqueira, sol de chapa a bronzear-nos a preguiça, contava-me o prodígio e sonho de um tipo se lançar de três mil metros. Só uma vez se despistou e, ria-se, entrou por um galinheiro dentro, matando mais galinhas do que uma raposa.

O Belo António e o Fred são o inverso dos satélites de Marte pré-anunciados por Swift. Foram vistos uma vez: parecem ter desaparecido para sempre.

Publicado no Weekend, suplemento das sextas do Jornal de Negócios

Leilão para 2025

Entra-se num ano, por exemplo em 2025, como quem, para participar num leilão, visita uma cidade desconhecida, gélida, de língua hostil:  três graus abaixo de zero e a rua onde caminhamos talvez nos leve ao centro, ao calor de um restaurante – o leilão há de ser ali perto. Assim se entra no Novo Ano, a licitar numa língua desconhecida.

Um cidadão francês quis entrar em 2025 ostentando o relógio que o general De Gaulle usava. É, por certo, cidadão de uma das cidades gélidas do norte de França, e comprou o relógio do general, um Lip, num leilão por 550 mil euros. E lembro-me que no pulso do meu pai havia um humilíssimo Cauny, também o primeiro relógio que ele me ofereceu, a mim que sempre um relógio me pareceu meia algema, o laço com que o penoso tempo nos amarra.

Quem foi, de Dallas no Texas, o sonhador em delírio fetichista que, por 27 milhões de dólares, comprou os sapatinhos vermelhos, enfeitados a rubis, que Judy Garland usava no Feiticeiro de Oz? Que poderes inusitados espera o poético comprador encontrar nesses delicados sapatos? Virá mesmo a calçá-los e a bater os tacões à espera da viagem para lá do arco-íris, em glorioso technicolor, descobrindo Donald Trump na Terra de Oz?

Tiro-me de cuidados e é descalço que quero entrar em 2025. Deixar tudo para trás? Mastigar e digerir o que ainda haja para que de 2024 nada sobre? Foi o que, e desculpem ter deixado o seu nome no ano passado, fez o comprador que, por seis milhões de euros, comprou a famosa banana que o intrépido artista Maurizio Catellan colara com fita adesiva a uma parede. E já me lembro, o comprador chamava-se Justin Sun. Comprou essa obra de arte, retirou a fita adesiva, descascou a banana e comeu-a. Valeu a pena? “É muito melhor do que qualquer banana que já comi”, jurou o eufórico Justin.

E quem não quer uma moeda de ouro, se for uma moeda romana! Esta é, talvez, a mais rara das moedas imperiais. Foi leiloada em Genebra e a compra fechada por quase dois milhões de euros. O que a faz rara é ter numa das faces a efígie de um assassino, Brutus, esse a quem, quando o seu punhal rasgou a carne imperial, Júlio César disse um singelo e quase enternecido, seguramente mais expletivo do que dubitativo, “Também tu, meu filho”. Que melhor companhia do que entrar em 2025 com a efigie de um assassino no bolso?

Aqui estou, na cidade gélida, e é a minha vez de licitar. Que quero levar para 2025? Pedirei uma caneta, uma esferográfica, um dos lápis que seja, com que Jorge de Sena escrevia ou rabiscava desenhos? A tesoura de barbeiro com que o meu amigo Mário Prazeres me cortou pela primeira vez os meus cabelos hippies? Ou a bata de enfermeiro do mais velho Correia Nunes, que me punha, de novo, a ouvir os King Crimson, ao limpar-me os rolhões dos ouvidos que a água da praia pusera em rocha?

E lá do fundo dos tempos, já sei, o que queria era mesmo reencontrar a perdida harmónica do meu pai. O bandolim dele, há muito que o dou como perdido, mas onde andará a sua harmónica de dupla face, com 80 palhetas, de fabrico alemão? O meu pai soprava numa Hohner Comet, lindíssima, cromada, estojo de veludo, tão vermelho e a ouro como os sapatinhos do Feiticeiro de Oz. Nas noites tropicais de Natal e de Ano Novo, em Luanda, o musseque ali ao lado todo a rir-se e a dançar em quimbundo, da Hohner Comet a bailar-lhe nos lábios, o Artur, como da lâmpada de Aladino, fazia sair corridinhos, fandango e tangos. Eu quero a dourada Hohner de volta, quero de volta essa felicidade que não se importa de conviver com a morte, com a inescapável pequena dor de estar vivo.

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend, das sextas-feiras

A ternura do Samurai

A primeira vez que o vi, ó Nossa Senhora da azinheira, foi no cinema da 7.ª esquadra, em Luanda. O filme chamava-se Rocco e os Seus Irmãos, e Alain Delon, na pele de um pugilista, filho de família operária, era um James Dean sem queixinhas. Nesse cinema ao ar livre, e já Delon peregrinara, entretanto, das mãos (e porventura das pernas) de Visconti para as de Antonioni, coisas a que eu era miúdo demais para ligar pevide, e eis que volto a vê-lo em Le Samouraï, em português chamado com alguma propriedade O Ofício de Matar, que era o que no filme fazia: matar pessoas. À estarrecedora beleza de homem, que já estava em Rocco, juntava-se agora uma virilidade toda entretecida em silêncio e solidão. Mas, sobretudo, costurada com indesculpada e prodigiosa vontade de absoluto. No cinema, só Clint Eastwood é digno de beijar a fímbria deste manto. Com uma diferença, Clint é todo feito em pedra, enquanto Delon é tecido nessa carnal matéria humana de que são feitos os sonhos.

Falei de absoluto e vejam: já essa inquietação fizera Delon fugir de casa aos 14 anos, apanhado num porto francês a querer ir para a Améria. Aos 16, numa de “Angola é nossa”, foi voluntário para a tropa, batendo com os jovens costados na guerra da Indochina. Lá, vê num cinema Jean Gabin e decide: quer ser actor. Volta a Paris e o esplendor dos seus 20 anos de veterano de guerra trespassa o nascente feminismo: desse “deuxième sexe”, de que falava a Beauvoir, o corpo de Delon foi o promíscuo contentamento. As mulheres amaram-no de cima abaixo, Romy Schneider mais do que ninguém.

De Delon, “o mais cool dos actores” como disse Leonardo Di Caprio, pode dizer-se tudo, que foi rebelde, delinquente, talvez mafioso, mas tem de se dizer que amou Romy com incensurável nobreza. As cartas que ele lhe escreveu, a última a uma Romy já morta, são o testemunho da irrefreável ternura de um samurai. Eis o seu epitáfio: era actor e sabia escrever cartas de amor.

Manuel S. Fonseca, ex-produtor de cinema, ex-cinéfilo (que agora já não vale a pena)

Texto escrito para a Visão, a pedido do Pedro Almeida

Eis o que é obsceno

A semana passada meti aqui a mão na massa do mais controverso dos cómicos americanos dos anos 60 e 70, Lenny Bruce. Mas acho que não o mimei o suficiente e embalo-o agora com as duas mãos.

Lenny nasceu pertinho de Nova Iorque, num daqueles subúrbios selectos e agradáveis que só aparecem em certos filmes de Spielberg. Talvez por isso Lenny tenha sido o ET que sempre foi.

Desconhece-se, o que a minha mão esquerda se apresta a reparar, que Lenny era um veterano de guerra. Serviu na Marinha, num cruzador que esteve em vários desembarques americanos na Segunda Guerra Mundial, o mais espectacular dos quais em Anzio. Mas Lenny, já com a sua dose de heroísmo bem metida nas veias, queria era bazar.

Ó e se ele conhecia o que pensam Almirantes! Decidiu, por isso, vestir-se de drag queen e fazer pela meia-noite uma aparição no convés do cruzador. Era uma Cinderela que aparecia, fugazmente, a cada meia-noite e logo se evolava. Alguns marinheiros viram a sereia, espantados com o mistério. O rumor do conto de fadas correu e Lenny foi apanhado. Comunicou então ao seu Almirante – não ao nosso – que andava possuído por «anseios homossexuais», uma doida vontade de tirar as calças a toda a tripulação e acabou expulso da Marinha com desonra. E minto, viram as contas dele e verificaram que tinha um gasto monumental em prostíbulos com mulheres. Perceberam o engodo e acabou na marinha mercante a transportar tropas para a Coreia.

Decide depois começar a carreira de cómico de stand-up. Ora, cómicos de stand-up eram então mais do que as mães. Mergulhado na boémia, dando-se com sonhadores, bêbados e strippers – a companhia que eu, como Cristo, na minha tão longínqua juventude mais apreciei – Lenny libertou o arcanjo que trazia aprisionado nas masmorras do seu inconsciente, oh pois! Ora, para quem saiba alguma coisa de anjos, a verdade é que os arcanjos não são fáceis de assoar.

E a Lenny apareceu-lhe uma certa vontade de fazer humor com uma liberdade trocista, sarcástica, quase raivosa. Mesmo a malta dos night-clubs – e podia ser o Dominó do Lobito ou a Tamar de Luanda – se engasgava com o material desabrido de Lenny. Ele falava, saiam-lhe fuck you por todos os lados, e o pessoal ficava com os amendoins atravessados na garganta. Era demasiado blue, mesmo para o pessoal americano da boémia. As televisões baniram-no, está claro, classificando-o como “doentio, críptico e escatológico”.

Um dia, em São Francisco, tiraram-no do palco e prenderam-no por obscenidade. Nos tribunais, testemunharam por ele os bravos Bob Dylan, Norman Mailer, Woody Allen, Allen Ginsberg e James Baldwin.

A partir daí, criou uma Santíssima Trindade – palavrão, polícia, prisão – e fez disso a sua Bíblia. Ouçam-no: “‘Vir-se’ é uma boa expressão. ‘Se’ é um pronome pessoal, ‘vir’ é um verbo. Ou seja, o contexto sexual de ‘vir-se’ é tão vulgar que nem tem peso. Que alguém se incomode por ouvir o termo só pode resultar dessa pessoa não conseguir vir-se!

Veio um jornalista perguntar-lhe por que raio dizia aquelas coisas: “Porque é cómico”, respondeu. E por muito amor, acrescento eu. “Nunca no mundo se dirão suficientes ‘eu amo-te’” ou “Eu ataco as pessoas que separam aqueles que se amam” foram dois dos seus lemas. Outro, mais cínico, deixou-o aos progressistas: “Conseguem compreender tudo, menos as pessoas que não os compreendem!

Encontraram-no morto, nu, uma seringa caída ao lado do braço. Overdose, portanto. Na boa Playboy de então, lavraram-lhe o mais belo dos epitáfios: “Uma última palavra de quatro letras para Lenny: DEAD. Aos 40. Eis o que é obsceno.”  

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend, essa preciosidade que sai todas as sextas-feiras 🙂 🙂

Um gajo muito mais do que jeitoso

Agora digam-me, quem é que faz comédia, stand-up, com a mãe e a mulher, as próprias, em cima de um palco? Era o que, em 1953, estava eu a nascer e Estaline a morrer, fazia o obsceno Lenny Bruce.

Olhem para Ricardo Araújo Pereira. De acordo: é bonito. Quem inventou o cómico bonito foi Lenny: era um “handsome guy”, um gajo muito mais do que jeitoso, cara sedutora, um Brad Pitt de nos fazer morrer a rir.

Ah, a voz de Lenny! Sai-lhe da voz de lâmina macia um cheesecake de sátira, em que se misturam, bem batidas, as claras em castelo da política e da religião, por cima a cobertura de gemas e açúcar que é o sexo: na boca tudo se mistura num orgasmo de obscenidades. A obscenidade em Lenny vem em contexto, diria eu, se a quisesse distinguir do que o bom Fernando Rocha fazia nos tempos áureos do Levanta-te e Ri.

A boca de Lenny era igual ao saxofone de Charlie Parker: espontânea, cândida, de libérrimas associações, qualificativos que roubo ao que se escreveu depois da mais arrebatadora sessão de stand up de Lenny, que pôs o Carnegie Hall a seus pés. E vejam, foi a 4 de Fevereiro de 1961, numa noite de calamitosa tempestade de neve em Nova Iorque, enquanto na noite tropical, calientíssima, de Luanda, saíam sub-reptícios do musseque os “heróis que queriam quebrar as algemas” a atacar à catanada cadeias e esquadras. Terá sido um sopro dessa audácia independentista, sopro levado por Kianda ou Iemanjá, que inspirou Lenny a fazer da performance do 4 de Fevereiro uma oração?!

Estão ali a fazer-me sinal para que abra um parêntesis. Lenny foi preso. Enchia a boca de palavras inglesas de quatro letras, às vezes mais, como é o lambido caso do termo “cocksucker”. Quanto mais o prendiam mais ele se esticava e até hoje voltariam a meter na pildra o seu explosivo “Is there a nigger in the room?

Porém – tratem com carinho este porém – se há uma fragrância a soltar-se dos monólogos de Lenny, da torrente de sarcasmo e palavrões, é a ternura. Sim, da voz do Ricardo Araújo Pereira, esse Lenny sem palavrões, também: ninguém pode fazer comédia sem ternura. Por dentro, o cómico é de veludo.

 Por falar em veludo, Lenny adorava strippers. Casou com uma, Honey Harlow. Fracativos de massas e a precisarem de pagar contas, o jovem Lenny gamou um hábito de padre católico, pôs o alvo colarinho clerical, e bateu um bairro tipo Quinta da Marinha, pedindo, em nome de uma real “Brother Mathias Foundation”, doações para os leprosos da Guiana, o que era religiosamente falso.

Já milhares de dólares colectados, a polícia abordou-o. Pediram-lhe uma licença, que ele não tinha. Lenny, fardadinho de padre, ainda veio com um “Ai Santo Deus, até falei disso com o Cardeal, depois da missa…” mas logo um sub-chefe do tamanho de John Wayne, lhe gritou um “Hey, já para aqui, com um raio”.

 Logo apoiado por velhinhas e viúvas, Lenny não foi. O polícia insistiu, ao que Lenny opõs um dubitativo “Sir?”. Grita-lhe o John Wayne: “Tu ouviste bem, punheteiro. Vê se tiras a merda dos ouvidos!” Com vozinha de arcanjo, Lenny respondeu: “Meu filho, não vejo razão para usar obscenidades!

Já uma das viúvas engatilhava uma caçadeira ao lado de Lenny. Prevenindo a tragédia e cantando “Sou valente, quando Ele caminha ao meu lado…” Lenny rendeu-se. O polícia que o segura diz-lhe “Fazes um gesto para aquelas malucas e esmago-te a cabeça com o bastão!” Com a ternura de um seminarista de Viseu, Lenny recriminou-o: “O incitamento à violência não é o recto caminho do Senhor, meu filho.”

Por intervenção do bispo, Lenny foi apenas condenado por mendicidade.

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend, que dá brilho a todas as sextas-feiras.

O gatuno de infâncias

Ando a pensar e é uma pergunta: “Como lhe passarei o testemunho?” Ao meu neto, ao Carlos, que tem três anos, uma língua de prata que diz palavras como “esternocleidomastóideo” e “otorrinolaringologista”, pronunciando-as a uma velocidade de fórmula um, sem trocar uma soberba consoante ou uma humilde vogal. Mas como conseguirei que ele aprenda a ir ao cinema no futuro, se no futuro ainda houver cinema?

Primeira lição: mergulhado na escuríssima barriga de baleia que é a sala de cinema, o que se deve fazer é roubar – é virtude nas sombras o que é mácula à incendiária luz do sol – “Rouba, Carlos!”.

Às vezes, faço-lhe uma singela torrada com manteiga e o Carlos diz-me “Ó avô, está delicioso!” E eu quero dizer-lhe que nada é mais delicioso no cinema do que roubar infâncias. Se um dia lhe disserem, “O teu avô, Carlos, era um gatuno de infâncias”, peço aos deuses que ele acredite: é verdade.

Roubei a infância, de cara tisnada, ao miúdo do “The Kid”, de Charlie Chaplin: estão nesse filme todas as pedradas que atirei, todos os vidros que parti, o mesmo balanço a rodar o braço antes da pedra partir, a mesma infalível pontaria, a mesma tresloucada desfilada de fuga. Foram as pedradas do miúdo do “The Kid” que me despertaram as dores e a glória da primeira pedrada que me partiu a cabeça, a honra do ufano fio de sangue que o certeiro calhau fez escorrer.

A minha infância rastejada foi roubada a um filme de Nicholas Ray. Roubei-a a um homem cansado de mil quedas dos cavalos que montava nas arenas dos rodeos, já a idade lhe ia a meio: regressa à casa da sua infância e rasteja até encontrar o tesouro que escondera naquele último suspiro de se ser menino no paraíso antes de se passar ao purgatório de ser-se grande.

O filme chama-se “Lusty Men” e nele Robert Mitchum, um senhor do tamanho de um armário, que eu vi deambular na praia de Tróia, rasteja para debaixo da varanda da casa e encontra o sonho que é uma revista de banda desenhada, um velho revólver e dois cêntimos numa bolsa de tabaco (essa coisa de que a tua avó não desiste e a que sempre perguntas: “O que é fumar, avó?”)

Foi a roubar a infância a Mitchum que redescobri a minha esquecida infância, os maços de tabaco que aos 12 anos íamos esconder tão longe, no Parque Heróis de Chaves, a que então a estátua de Afonso Henriques deitava o ínvio olho. Foi a essa infância do homem que rasteja e encontra um velho revólver sem balas, que eu fui roubar o tiro que o puto Jorge me deu, com uma Diana 27, e me furou a mão esquerda de lado a lado. Tiro limpo e sem sequelas, disseram-me, o que agora o dedo anelar da mão baleada desmente: se o dobrar fica preso e tenho de o endireitar ao esticão. Estala, é claro, e nesse som seco de articulação morta está toda a doce nostalgia das tardes de vadiagem a caçar pássaros, a vaguear por ruínas de casas caídas ou pelos bosques lá para o aeroporto.

 E o que roubei ao “Stand by Me” do Rob Reiner. É o filme de um escritor, Richard Dryfuss,  que evoca o seu ingénuo bando de infância, uns amigos como os meus Nelinho ou Victor, o Sá, o Lando, o Meno, o Da Guia. O bando sabe que morreu um rapaz e não se encontrou o corpo. E aí vão eles para a alegria de verem pela primeira vez um cadáver: a essa razia roubei os acampamentos ao relento na praia da Floresta, sobre a baía de Luanda; e ao miúdo que lê muito e há-de ser escritor roubei as minhas leituras em cima das árvores.

Tudo o que da infância te contarei, Carlos, é verdade, mas foi roubando-a ao cinema que me encandeou essa verdade, como a luz a Saulo a caminho de Damasco.  

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend: sempre à sexta-feira!

São livros e o tamanho conta

Os meus livros de Dezembro
ah, e se o tamanho conta

O que eu gostava da Senhora Dona Agustina. Sem ela, talvez eu nunca tivesse sido editor. E é meia-mentira, porque devo à Senhora Dona Mécia, mulher de Jorge de Sena, como ela gostava de dizer, a outra metade de ser eu editor.
Mas o que eu queria dizer é que o tamanho conta e um centímetro faz cá – e lá – muita diferença. Ora, os primeiros livros que fiz com Agustina e Mécia eram quadrados perfeitos com 30 cm de largura por 30 cm de altura. São livros tão lindos que estão esgotados. E são irrepetíveis. Como os que agora apresento e que, felizmente, não estão esgotados e ainda podem oferecer este Natal.
Na imagem, à cabeça destes livros de Dezembro estão dois 30 por 30, que me trazem lembranças ternas. O Fama e Segredo na História de Portugal foi, ia jurar, o último livro que Agustina Bessa-Luís escreveu antes de ir para os grandes e etéreos salões onde deve haver bailes e bonecas como a que ela tinha, e me mostrou, tão grande e sem uma perna. Esse livro, como As Meninas, com Paula Rego, (o mais irreverente e tão picantemente provocatório ensaio sobre arte que o mundo já leu), como o Livro de Agustina, uma autobiografia em que aprendi e nunca me esqueço que «há poucos homens que saibam amar as mulheres e merecê-las», são todos encomendas minhas, muito conversadas em idas à Buenos Aires e até ao Gólgota, à casa e jardim tão bonito que Agustina cultivava no Porto.
Estes livros – o mais delirante livro sobre a história de Portugal, Fama e Segredo, aqui na versão grande e na edição de bolso, mas capa dura, as Meninas e o Livro de Agustina –foi o destino que os pôs na minha mão? E já ouço Agustina a segredar-me: «O destino não é uma fatalidade, é um conflito breve com um sonho.»
No meio da imagem dos meus livros de Dezembro está uma capa toda em ouro: foi a que eu quis dar ao Físico Prodigioso, de Jorge de Sena. Ai o tamanho! É mais de um metro de capa. Desdobra-se em quatro pastas, guardas pintadas pela Mariana Viana – o miolo também. O desdobramento da capa, diga-se, responde ao superlativo erotismo desta novela seniana. Leio O Físico e invejo-o ao vê-lo despertar com Dona Urraca a abraçar-lhe as pernas e a dizer-lhe: «És um deus, és um deus, és um deus.» Olho para esta edição de luxo e penso se não foi em Santa Bárbara, à conversa na cozinha com Mécia de Sena, que o sonho deste livro começou, e que as conversas com Isabel de Sena completaram.
De um erotismo mais directo, carnal e cama, a roçar uma ostensiva pornografia, é a poesia de Claude Le Petit, o último poeta a morrer numa fogueira em Paris. Sobre o seu O Bordel das Musas derramou-se, no entanto, a subtileza do traço a negro do escultor João Cutileiro. Como é que o convenci a fazer estes 22 desenhos (ou são mais?). Foi pela admiração que mostrei ao pingo de descontraída vaidade com que ele me mostrou o seu atelier em Évora? Sei é que os desenhos de Cutileiro conferem ao livro um erotismo de delicados lábios e lábil anca, que um delicioso emaranhado de cabelos – tantos cabelos – despenteia e… perturba.
Haverá um erotismo pessoano? Se há, foi o que a pintora Ana Vidigal encerrou, velado, a fazer o pino às escondidas, na pintura com que abriu Minha Mulher a Solidão, a antologia em que reuni toda a concupiscência de Fernando Pessoa. É o livro graficamente mais inventivo que o Ilídio Vasco, designer da Guerra e Paz, já fez.
Capas duras, papéis especiais, grafismo a rasgar como o vento, pintura, fotografias, lombadas a nu, eis o que todos os meus livros de Dezembro ostentam com pundonor. É assim, também, a edição especial do Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, com ilustrações do notável pintor que foi Rogério Ribeiro e que só pude publicar pela gentileza de Vasco Teixeira, da Porto Editora. Tudo já preparado pela mão hábil de editor, o meu amigo José da Cruz Santos. São os últimos exemplares.
Linda, com cartas e poemas, é a Contradança de Camões, com as ilustrações de Hans Huyghen van Linschoten, talentoso espião holandês na Goa do século XVI. Há contradança entre poemas e cartas, como há contradança entre as ilustrações,  os poemas e as cartas.
E são de Camões, as imagens que fazem o retrato do último livro que Vasco Graça Moura escreveu e me quis deixar: em Retratos de Camões, Graça Moura defende que talvez o único retrato verdadeiro do poeta seja o que dá capa ao livro «saído da mão do próprio Camões, num momento de narcisismo autocontemplativo».
Como  Fama e Segredo, de Agustina, como este livro de Vasco Graça Moura, também o Nacional e Transmissível, outro imponente 30 por 30, foi o último livro que Eduardo Prado Coelho escreveu antes de ir para a grande viagem – e tenho mais alguns «últimos livros» que muito prezo. O Eduardo vinha à editora tomar café e atacar um ou outro pastel de nata. O livro foi um desafio que lhe lancei: o que é mesmo ser português em 22 tópicos, do bacalhau às sopas e ao «senhor doutor». As coisas que, por serem nossas, nos amam. E, respondeu-me o Eduardo: «Ninguém gosta de não ser amado.»
Os meus livros de Dezembro são livros de amor, uns com mais beijos do que outros, lembranças de luxo em livros de luxo. São livros grandes, que se podem mesmo medir aos palmos, de um editor de palmo e meio.
Manuel S. Fonseca, editor

Um presidente também ama?

Dalida: deu luz a uma rua

Sabemos quem foram as amantes de Mitterrand, presidente dos franceses. Mas quem foram as amantes dos presidentes dos portugueses?

De Georges Pompidou, outro presidente gaulês, sabe-se que chegou a ir a festas de swing, que é como quem diz, tens aqui para a troca. Foi mesmo a partouzes: a usarmos metáfora gastronómica o partouze é uma espécie de buffet, vai-se petiscando em regime de self-service.

Consta que Jacques Chirac, outro presidente dito “tombeur de femmes”, destilava um tal charme e sopro de sedução que, fosse onde fosse, num comício partidário, à saída de uma inauguração, consumava de forma fulgurante paixões que irrompiam à primeira vista: eram cinco minutos com banho incluído.

Outra elegância, era a de Giscard d’Estaing. Num romance em que a crítica francesa sentiu o perfume de Marguerite Duras e as labaredas de um erotismo à la Robbe-Grillet, Giscard soltou a sua concepção de amor: leiam “Le Passage”. Nas memórias não se inibe e de uma das suas paixões diz: “A sua pele é quente e, sob a lã, tão macia, quase frágil, ela reage com um arrepio defensivo à invasão dos meus lábios.

Eu diria que nos fazem falta presidentes assim. Ou talvez os tenhamos tido, sedutores, ternos ou vigorosos na cama, apreciadores das artes até, mas sem a gaulesa ousadia de se exporem, não ocultando das suas memórias os episódios mais cálidos.

Giscard evoca mesmo a princesa Diana. Sobre esse amor mais gentil que clandestino, escreveu outro romance, “A Princesa e o Presidente”. Num gesto de compaixão e de nostálgico afecto, terá vindo, logo que soube, ao local do sinistro em que Diana morreu em Paris.

E peço desculpa a Mitterrand por tê-lo deixado a secar desde o primeiro parágrafo. Amou a bela Dalida. Os meus leitores não têm idade para isso, mas Dalida era a exogeneidade em carne viva: filha de italianos, nascida no Egipto, país de que foi Miss, Dalida cantou “Vinte e Quatro Mil Beijos” em todas as línguas, incluindo a de Mitterrand.

O presidente baldava-se aos serviços secretos e vinha dormir com ela a Montmartre, a uma ruela que poderia ser da Mouraria, sem candeeiros, a rue d’Orchampt. Qualquer um lhe podia dar um tiro ali. Uma manhã, Dalida acordou com a rua a trepidar, os martelos pneumáticos a abrir buracos. Mitterrand tinha mandado pôr candeeiros e os vizinhos agradeceram: “Graças a Dalida temos luz na rua!” Mas ao contrário de Giscard, Mitterrand não teve a amorosa empatia final: faltou ao funeral de Dalida. Estava outro amante, Alain Delon, na primeira fila.

E as mulheres? As rainhas, as presidentes, as mulheres de primeiros-ministros. Seria fácil falar do rosário de amantes de Catarina da Rússia ou da Rainha Vitória. Prefiro que abram alas e aplaudam a aristocrata inglesa Lady Dorothy, mulher de Harold Macmillan, primeiro-ministro conservador. Dorothy tinha já filhos de Harold quando a sua insatisfeita vontade de mais mundo, mais excitação, mais arrebatamentos a levou aos braços de Bob Boothy, também conservador e membro da Câmara dos Lordes. A paixão só terminou – se terminou! – quando Dorothy morreu. O imaculado Harold, no poder, suportou sem um ai! essa libérrima expansão de Dorothy e assumiu mesmo a paternidade de Sarah, a filha nascida daquela paixão.

E agora vejam: nem um jornal, rádio, televisão abriu o bico para referir, ironizar, chafurdar uma situação impossível de esconder. Nas memórias, “Lembranças de um Rebelde”, publicadas 12 anos depois da morte de Dorothy, Boothy não menciona nunca o longo affaire. A Bob Boothy, Harold fê-lo barão. Este grau de civilização é-nos hoje estranho.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios