Money, já diziam os Pink Floyd

E depois nasceu a Rita

Gostava tanto da poesia de Yeats que era capaz de dizer, com celestial angústia, o poema desse guerreiro aviador que, lá das nuvens, não odiava os que atacava nem amava os que defendia. Nessa altura, nem eu nem a Antónia tínhamos um tostão furado, e o que me fazia mesmo rir era lembrar-me do que Yeats dissera ao gajinho da academia sueca que nunca mais acabava de lhe explicar, em rodriguinhos e salamaleques, que ele ganhara o Nobel da literatura: «Homem, páre lá com a tagarelice e, pela graça de Deus, diga-me quanto é que o prémio vale!»

O que nos teria dado jeito um telefonema destes. Tinha regressado da minha aventura africana Mao-Mao Tsé-Tsé punhinho no ar, e viera da Angola já muito independente com uma mala de livros, três camisas de manga curta, calças cor-de-rosa e outras tão púrpuras como a chuva do puto de Minneapolis.

A Antónia conheceu-me à beira-mar, na Costa da Caparica, em 1977. Tendo-me visto em cima de umas socas hippies de dez centímetros, a que acrescia meio-metro de cabelo eriçado, esse todo fazendo de mim um pedaço de homem de alto lá com ele, a Antónia, dizia eu, apaixonou-se.

Ora além de haver partes que não pertenciam ao todo, o todo apresentava-se descapitalizado. É certo que, mais eu do que a Antónia, sabíamos que o dinheiro não dá a felicidade, mas não é exactamente por isso que a maior parte dos pobres são pobres. E ainda menos os meus 24 anos e os 18 da Antónia.

Conseguimos encontrar uma casa, ali para os Anjos, um quinto andar à pata. Enorme, oito divisões: em quatro só se andava de gatas. Eram umas águas-furtadas. Hoje, a miudagem ofende-se por se dizerem certas palavras e chamam psicólogos para lhes afagarem das murchas meninges às frescas nádegas. Pois bem, para alugarmos aquele pardieiro, entrámos com cem contitos que não tínhamos. Issi, uma ofensa. Juntámo-los entre os seis, a comunidade de base que foi habitar o que alegremente chamámos o pombal dos Anjos.

Éramos três–três em sexos. Cada casal tinha uma das divisões em que, em parte, se podia estar de pé. Partilhávamos o que tínhamos: um desprendido e sumptuário sentido de humor.

A Antónia e eu, ambos a estudar, ainda sem trabalho e uns trocos que se vissem, chegámos ao dia em que só tínhamos papa Nestum para comer. Foi uma das nossas refeições mais memoráveis. Não tínhamos cheta, mas sabíamos que há coisas muito mais importantes e maravilhosas do que o dinheiro. O problema, como nos explicou Groucho Marx que vinha então muito lá a casa, é que, para ter essas coisas importantes e maravilhosas, é mesmo preciso uma real pipa de massa.

O pombal dos Anjos era como a fábrica do Andy Warhol: estava sempre cheio e em festa. Às vezes vinte pessoas. E ficavam a dormir em esconsos de onde para se entrar ou sair era preciso rastejar. Nessa altura, e não sei se o pessoal do PAN gostará de ouvir isto, já tínhamos aprendido a calafetar buracos nas paredes com gesso e vidros partidos: rato que tentasse entrar arriscava fatal dói-dói na roedora boquinha toda.   

A primeira oferta de emprego foi um part-time: a Antónia e eu íamos colar selos e fechar cartas ali – olé – para o Campo Pequeno. Era um dinheirinho escasso! Mas a vantagem da falta de pilim é que uma pessoa se habitua a gastar pouco. Lembro-me que tínhamos numa das paredes um poster com Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao. Só mais tarde soube que Karl Marx deixou de escrever e se despediu do New York Tribune, por lhe pagarem mal. Ele gastava muito e gostava. Nunca teríamos colado selos se o barbudo nos tem avisado antes.

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend

Noite e primeira luz

para dizer adeus ao Fernando Venâncio,
que tantas vezes me vinha aqui pôr um coração

Desassossego. Fica-se ali, espetado na noite, os olhos e todos os sentidos numa rasgada inquietude, enquanto os segundos se roçam pelos minutos, lentíssimos e indecifráveis. A Antónia gosta de ficar assim, acordada noite dentro. Uma ou outra vez já fiquei com ela, à espera de que a manhã venha e nasça, com a sua cabeleira de luz a enxotar a escuridão e os restos das sombras.

Estarei a falar de insónias? Na rede da insónia encontramos irmanados Lincoln, Proust, Marilyn, Lady Gaga, a senhora Tatcher e Bill Clinton. Dessa rede de forçada vigília nasceram os romances de Joseph Conrad e Dickens, mas também os gags de Groucho Marx, as fúrias quadrúpedes de Estaline e Hitler.

Ora, não é de insónias que venho falar, mas sim do prodigioso silêncio da noite. É um silêncio onde moram milhões de micro ruídos: se o dia é animado pelos grandes animais sonoros, feras selvagens a motor, pela alegria e dor dos gárrulos gritos humanos, no insonoro estrépito da noite moram os insectos kafkianos do ruído, uma excessiva metamorfose de larvas, crisálidas e asas. A noite é um rumor entre o som e o não-som – horas devastadoras e tardias! Deambulam pelos corredores da noite seres levíssimos, fulgentes, irónicos: em todos lateja o turbilhão da morte.

Mas é tanta a vida que há na morte. E é essa infinitesimal vida das perdidas e desesperadas horas da noite que inspira e enlouquece, que seduz ou dá sede e fome cósmicas.

Espectros e eléctricos sonhos nocturnos passam-nos a mão pela fronte e apertam-nos, enrolando-se ao coração. Bem podemos rodar no vinil o «Concerto de Colónia» de Keith Jarrett ou o «Water Babies» de Miles Davies: tudo a noite sorve com involuntária doçura (ou voluntária amargura) e tudo se dissolve no seu feroz estômago de eternidade.

Constelações monstruosas e selvagens de deuses dançam nas irrespiráveis colinas da nossa loucura, vestidos com os mesmos véus de seda que despem o rei que vai nu. De onde vinham as vozes interiores que mortificavam Virginia Wolf? E não me digam que eram alucinações. O que muito nos aterroriza é ouvir a noite a pensar, a murmurar o seu vocabulário de dor ou sermos arrastados pelo tumulto imparável da sua locomotiva de indiferença.

E é então – ainda há dias na Serra da Estrela, não foi, Antónia? – que o brilho de um primeiro cabelo louro vem romper o torpor e as geladas cinzas da noite. Só os cativos da noite sabem o que é experimentar a liberdade e a redenção da manhã, desse sol que sai de dentro da água, dos cumes das montanhas, da planície gelada ou do deserto de dunas. Da praia de Altura, também.

A loura luz do dia limpa o ar de espectros, perfuma as janelas e as portas das casas, lava as ruas e nos mercados, nas caixas de gelo, as peixeiras expõem a frescura de camarões, lagostas, cracas quando há, das tão apetecíveis bruxas.

Posto, por fim, em calma e sossego o tumulto nocturno do corpo, sorvido um indeciso café – foi o último ou é o primeiro? – podemos matar o jejum de sono, fechar as janelas e dormir um dia inteiro. Lá fora animam-se jardins e praças, há um reformado que complementa a sua bica com um bagaço na última leitaria de bairro, os engenheiros e os doutores atafulham o trânsito, uma rara abelha recolhe o pólen, há miúdos e miúdas a aprender a ler, a escrever, outros a nadar. Lembram-se das visões do poeta William Blake, visões em que arde brilhante um tigre – tiger, tiger – na floresta da noite? Desaparecido o tigre rumoroso e sanguíneo da noite, o dia ordinário, intranscendental, não tira o sono a ninguém. E é tão doce a primeira luz da manhã.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios

Fernando Venâncio (18 de Novembro de 1944 – 30 de Maio de 2025)

A 1 de Junho de 2015 chegou-me, de Amsterdão, um texto. Por esse texto, conheci pela primeira vez Fernando Venâncio. Era o prefácio a um livro de Helder Guégués, «Em Português Se Faz Favor», que então publiquei. Depois, um avião trouxe de Amsterdão o Fernando para apresentar um dos primeiros livros que Marco Neves editou com a Guerra e Paz. Entre Neves e Venâncio, entre o Marco e o Fernando, digo, havia uma afinidade intelectual de grande bonomia, uma afinidade expansiva que envolvia mesmo as famílias. Com essa sorte com que os meus deuses africanos, isto é, Kalunga, sempre me acarinham, o Marco e o Fernando adoptaram-me. E, num almoço que fomos fazer a Évora, aconteceu o milagre: o Fernando aceitou ser meu autor. Como uma Santíssima Trindade – terei sido eu o Espírito Santo? – dos mil livros que o Fernando poderia fazer, escolhemos o que viria a ser o «Assim Nasceu uma Língua», prodigiosa digressão pelas origens da nossa língua. O livro conquistou Portugal, seduziu os nossos vizinhos galegos, bem como gerou controvérsia no Brasil.

Vivi com o Fernando a aventura de ver o livro publicado nesses países, o que posso hoje evocar aqui. Há, porém, coisas que transcendem as pequenas glórias editoriais. A amizade autêntica, a extrema confiança, a empatia em circuito aberto, eis o que o Fernando e eu partilhámos, coisas intraduzíveis nesta crónica em que tenho de anunciar a morte de Fernando Venâncio.

Não voltarei a ouvir-lhe a voz cheia de entusiasmo, o riso, o tão bom humor, o seu gosto por uma piada mais ácida aos pequenos disparates do mundo ou ao grande circo da pretensão, pompa e circunstância. Dois grandes livros sobre a língua portuguesa e o seu possível futuro – «Assim Nasceu uma Língua» e «O Português à Descoberta do Brasileiro» – impõem-no como linguista, belíssimo legado que nos deixa. Mas é num romance, que publiquei este ano, «Os Esquemas de Fradique», que vos convido a virem tomar um café com o Fernando. Macacos me mordam se não descobrirem ali paixões doidas – «sabem tão bem!» – um cientista gatuno («gatuno, mas um tipo porreiro») e muito whisky divino. Sirvam-se e não se poupem no whisky. Pode ser que toque, súbito, o telemóvel. E se ouvirem um «Então, já leram?» é o Fernando que está a falar convosco.

A arte de matar

Cortou a cabeça a Luis XVI, mas também aos revolucionários Danton e Robespierre. Apresento-vos Sansão, que só no nome tem semelhança com a figura bíblica. O parisiense Charles-Henri Sanson pertencia a uma família que, por quatro gerações, desempenhou a infame função de carrasco do Estado. Os Sanson serviram, com a mesma isenção profissional, a Monarquia e a Revolução Francesa.  

Há profissões que exigem uma convicta persistência, para não dizer mesmo abnegação. Apesar do odioso estigma social, os Sanson passaram de pai para filho a severidade, a delicadeza e o savoir-faire de matar os seus concidadãos. Sempre em nome da lei, num tempo, digamos, de extrema judicialização da política. Fizeram-no sem hesitações que inquietassem o sossego psicológico dos condenados, ao contrário do que aconteceu em Inglaterra ao grande explorador e escritor que foi Sir Walter Raleigh: perante a hesitação do carrasco de machado na mão, Walter teve de lhe gritar «De que tens medo, homem? Corta! Bate forte!»

Ao contrário dos nossos últimos primeiros-ministros, que assobiam de forma plangente quando se fala de reformas, os Sanson modernizaram o tempo e o modo de exercer a sua profissão. Trabalhando com médicos com preocupações humanitárias (é verdade, nem toda a gente agradece!) Charles-Henri Sanson, que estudou também medicina, fez com o seu pai a transição da horrível forca, e dos seus intermináveis estertores, para a mecânica limpeza e eficiência da guilhotina.

Sanson foi mesmo à Assembleia Nacional legislativa atestando que as experiências feitas com fardos de palha, depois com uns infelizes cabritos, por fim com acomodatícios cadáveres humanos, provavam a quase luminosa rapidez da guilhotina. Sanson era dotado para a música e ocupava os tempos de ócio tocando em dueto com um fabricante alemão de instrumentos musicais. Note-se o gracioso grão de elegância: foi o alemão que o ajudou a fabricar a guilhotina. Preso por roubo e agressão, coube a Nicolas Jacques Pelletier, criminoso de profissão, inaugurar essa nova musicalidade.  

E o que eu queria lembrar é que a morte por execução era, nesse tempo, um espectáculo de massas. O povo, essa multidão em tropel que o cineasta Fritz Lang foi a Hollywood pintar tão bem em «Fury», queria divertimento: a veloz e instantânea guilhotina roubou parte desse «show business», o que as novas instâncias procuraram substituir com a chegada dos condenados em charrete – e já lá vou – e com a sua exposição à turbamulta.

Como enfrenta o cidadão a morte a que o Estado o condena? O filósofo Sócrates reagiu com impressionante dignidade, bebendo imperturbável o veneno. Giordano Bruno, mesmo na fogueira, virou a já contorcida cara ao crucifixo da Igreja que assim o queimava. Já Sir Raleigh, ao ver o machado que o ia dividir em dois, comentou: «Aqui está um remédio bem afiado, vê-se que trata de qualquer doença ou miséria.»

E agora vejam a charrete a chegar ao cadafalso onde Sanson e Paris esperam a próxima vítima. Quem lá vem – o conde de Chârost – não voltará a dormir ao relento no mar. De uma família de filantropos, que se batiam contra privilégios e desenvolveram a agricultura e a indústria, o conde Armand-Louis-François foi condenado pelos khmers rouges avant la lettre da Revolução Francesa. O conde vem a ler. Quando a charrete pára, levanta por fim os olhos para ver a multidão ululante, o carrasco, a galante obra de arte que é a guilhotina. Vai fechar o livro, mas antes, num gesto delicioso e comovente, dobra o canto superior da página. Um dia, um inescapável dia, continuará, sem dúvida, a leitura.

Publicado no Jornal de Negócios

A extinção dos dinossauros

Foi o cometa Halley que agarrou em Mark Twain e o tirou de um qualquer buraco negro para o fazer nascer na terra. O Halley o trouxe, o Halley o levou: 75 anos depois, estava Halley o mais próximo que lhe é dado estar do Sol, pimbas, puxou Twain pelo fundilho das calças em direcção ao infinito, como se fosse Huckleberry a arrebatar o escravo Jim, no célebre romance de amor em fuga dos dois. Ou talvez Halley tivesse puxado Twain pelas ceroulas, que em geral é de roupa interior e íntima que se parte para a eternidade.

Cometas, meteoritos e dinossauros transpiram cumplicidade. Eram 7:45 da manhã, a caminho do jardim de infância, e o meu neto perguntou. «Avô, os dinossauros existem?» Ele decorou todos os nomes de dinossauros e répteis. Tem também dois livros de inventários de animais e árvores, que folheia a uma velocidade não-intermitente impossível de compaginar com a energia eólica: lê, digamos assim, mais depressa do que o vento.

Foi a mãe, a Rita, no banco de trás, que respondeu ao Carlos: «Não, os dinossauros já não existem…». Veio o refrão dos quase 4 anos: «Porquê?» A mãe, com eufemística doçura, disse-lhe que desapareceram. Com aqueles obstinados restos de positivismo lógico, que nem mesmo a leitura da Estrutura das Revoluções Científicas do humaníssimo Thomas S. Kuhn, conseguiu liquidar em mim, eu acrescentei: «Meu amor, extinguiram-se!»

Houve um silêncio humilde no banco traseiro, logo seguido de uma arrebatada e revoltada pergunta: «Avô, o que é extinguir-se?» Em uníssono, duas respostas céleres encheram o habitáculo do velhinho Audi. Da boca da mãe saiu um perfumado e tautológico «é acabar», da do abrupto avô, um lancinante «morreram».

Ora, foi a esse arqueado «morreram» que o Carlos reagiu como uma seta: «Avô, morreram para onde?» Eram umas certíssimas e fulminantes sete horas e cinquenta minutos da manhã da passada terça-feira e a morte ganhava, num carro a caminho do jardim de infância, a fulgência de um tigre. A morte, a estática morte, ganhava movimento: dos alvos abismos a tenebrosa questão, que bate as asas e voa, já não é «o que morre», «porque morre», «como ou quando morre», mas sim a inflexão epistemológica do meu neto de quase 4 anos: «para onde é que os dinossauros morreram?»

Tentei não enfiar o rabo entre as pernas e saiu-me a deslavada resposta de violino sem cordas: «Para o céu.» Acenderam-se todas as luzes infantis no banco de trás e o Carlos, porventura com uma ponta de ironia, corrigiu-me: «Avô, os dinossauros não voam. Morreram para o chão.»

  Cantou e cravou-se em mim toda a semana a pergunta do meu neto: «Morremos para onde?» Para onde morreu John Kennedy, Estaline ou Salazar? Para onde morreu Camões ou Sophia ou Jorge de Sena?

Visitei um dia o camarim, na verdade uma casinha, que a Fox fez no estúdio para Marilyn Monroe. Passei também pelo cemitério de Westwood onde foi enterrada. Mas para onde morreu Marilyn? Para o camarim ou para o cemitério? Onde está mais deitado – e ainda cintila – o espelho do seu corpo, a tumultuosa música dos seus cabelos? No camarim, ou na boca de ar da estação de metro de Nova Iorque, onde Billy Wilder lhe enfunou o vestido e as suas branquíssimas pernas encheram de loucura infrene a noite?

Para onde, agora que já vejo nas constelações a meta da maratona, morrerei eu? Para o bairro da cidade afro-colonial de Luanda, para as suas ruas e largos, para as suas ruínas e jardins, bailes, poemas, beijos, caramanchões e acácias? Ou para esta Lisboa de pátios quase secretos, de colinas e vento, a cuja luz bem-aventurada amei e me fiz homem? Para onde?

Publicado no Jornal de Negócios

A culpa foi do apagão

Atrasei-me. A culpa foi do apagão? Talvez, mas aqui estão os meus livros de Maio, nesta newsletter que é só para quem gosta mesmo de livros.

Os meus livros de Maio
presos no engarrafamento

Atrasei-me. O semáforo apagou-se e os meus livros de Maio ficaram presos no engarrafamento. O que, estava Angola a um pezinho d’ água da independência, me faz lembrar do peculiar primeiro carro que o meu kamba Jorge comprou em Luanda. Tinha um ligeiro problema: só virava à direita. Fora abalroado por um camião e a suspensão partida fazia com que a carroceria, logo que se queria virar à esquerda, se encavalitasse no pneu, bloqueando o carro. 

E pergunto: o que bloqueou na educação em Portugal nas últimas décadas, que não vira nem à esquerda nem à direita? As escolhas curriculares? A formação de professores? O tentacular ministério da educação? A acção dos sindicatos? Quem nos responde é o escritor e professor António Carlos Cortez no seu ensaio O Fim da educação: crise, crítica, ensino, utopia, livro que inaugura uma nova colecção, diatribe, cuja vocação é tratar com rigor e severidade temas actuais. Na diatribe pensa-se e os autores correm riscos.

Volto ao meu amigo angolano. Como é que ele conseguia circular em Luanda sem ferir a lei, que é como quem diz, o bem comum? Tinha na cabeça um milhão de rotas alternativas e, num aperto, para virar à esquerda, virava duas vezes à direita, o que o colocava a 180º do ponto inicial, ou seja, à esquerda. Eis o desafio que o Prémio Nobel da Economia, o economista francês Jean Tirole, resolve à sua maneira em A Economia do Bem Comum, um livro que nos ensina a virar à esquerda e à direita, sem preconceitos, desfazendo o pensamento único.

E vejam, um polícia parou o meu amigo e quer que o obstinado carro vire à esquerda. O Jorge força e o espantado polícia vê, perplexo, um carro subir pelo próprio pneu acima (e abaixo!). A ordem lógica do mundo desaba e a autoridade demite-se: «O senhor faça o favor de virar para onde quiser!»

Se a própria autoridade pode ser iconoclasta, o que dizer da poesia? Bicho Carpinteiro é o livro que o António Cabrita faz o favor de publicar comigo. Ferve nele um nu desejo descabelado, que por vezes se protege vestindo a roupinha de um sapiente humor antigo, ou não fosse o livro, como se diz em subtítulo «as aventuras e desventuras de um corpo que, farto de virar o ananás, contra o seu ânimo já enferrujado tenciona dar o falo à IA». Espantoso é como Bárbara Assis Pacheco tão bem ilustra este livro – ofende? Ó se ofende. 

E faço um parêntesis para falar de dor e luto. Filho de Uma Mãe: a solidão e a perda no século XXI, de Adalberto Faria, é um livro confessional sobre o vazio que é a partida de uma mãe. É íntimo, sim. Comovente. E são dois livros num: na segunda parte, Adalberto acolhe 29 depoimentos, de D. Januário Torgal a Bernardino Soares ou António Barreto, passando por Bárbara Reis ou Beatriz Pacheco Pereira.

E sem saber se estou a virar à esquerda ou à direita, falo-vos de outro livro de sabor circense e mágico. Com a parceria do Fundo Cultural da SPA, escreveu-o Cristina Carvalho, que lhe chamou Fabulário ou o Pequeno Circo do Mundo, e ilustrou-o o arquitecto e pintor José Manuel Castanheira. Os autores fazem dele um livro em que o leitor adulto se sente autorizado a voltar a saborear a inocência.

Foi com essa mesma inocência que salvei o meu amigo Jorge. Desafiei-o a comprarmos a meias, em Luanda e já na dipanda, um descapotável, um very british MG. Finalmente, tínhamos um carro que curvava à esquerda e à direita. Cabelos ao vento, passávamos no asfalto e no musseque e os candengues gritavam: «Olha só, os últimos hippies de Luanda!» Os leitores experimentarão essa inocência, descobrindo «os últimos hippies de Lisboa» – ou do Porto – ao lerem O Verão Quente de 1975: Tudo Era Permitido, em que o jornalista e nosso autor Pedro Prostes da Fonseca visita as coisas extravagantes, raras, bizarras, insólitas e excêntricas do PREC, nesse ano em que tudo podia acontecer – e, leiam, aconteceu. 

Outra experiência de inocência é a que Greg Lukianoff e Jonathan Haidt nos propõem em A Infantilização da Mente Moderna. É um de Os Livros Não se Rendem, com a parceria da Fundação Manuel António da Mota e da Mota Gestão e Participações. Um livro que arrasa a ideia de «segurança», «protecção» ou «ofensa» na linguagem e nas ideias nas universidades.

Sem querer ofender ninguém, o que não disse foi como se comprou o MG. Se bem me lembro, foi pago a grades de cerveja e a muitos quilos de carne que uns mais velhos nos arranjaram no Lubango. Coisas como esta não se caçam na IA, mas na IA muitas coisas se podem aprender. Jorge Rio Cardoso oferece a pais, professores e alunos um livro novinho em folha: Mais IA, Melhor Educação: Um guia essencial para pais, alunos e professores. É o que de mais actualizado se pode encontrar, prático e seguro.

E acabo com o que o meu amigo Jorge me contou ontem: lá em Angola, a chaparia do chão do MG abriu buracos. Para a chuva não entrar, atapetou tudo com as fraldas de uma das suas bebés. E assim andou anos. Há dias, foi à oficina fazer um arranjo e o mecânico aplicou-lhe o maçarico. O esquecido fundo de fraldas ardeu como um vulcão e consumiu nas labaredas do inferno esse brinco da minha juventude revolucionária.

Virem à esquerda ou à direita, mas nunca por nunca usem livros para atapetar a fendida e frágil chaparia dos vossos carros. E muito menos estes meus livros de Maio saídos do apagão e do engarrafamento.

Não vos deixo sem uma palavra de auto-ajuda. Na nossa chancela Crisântemo, estreia-se Mafalda Johannsen. Escreveu Vendas Para Quem acha que Não Tem Talento. A Mafalda é especialista em prospecção B2B, o que explica, certamente, o seu notável sentido de humor. O livro tem o talento de nos ensinar que estas coisas se aprendem. Com seriedade e um profissionalismo metódico. As vendas da Guerra & Paz vão aumentar e palpita-me que a Mafalda vai escrever mais livros.

Estreia também, na tão feminina chancela Euforia, é a da romancista Alexandra Cruz. Rivais Prometidos é o título de um livro erótico, que junta inimigos à primeira vista, daqueles que jamais alguém sonha sequer aproximar. Mas juntam-nos. Se há revolta e motins? Há. Há ódios e cheiro de vingança. Uma insidiosa sensualidade, também… o resto, como alguém disse, é literatura.

Manuel S. Fonseca, editor

Pai do próprio pai

Pode um filho ser pai do próprio pai? Para a posteridade literária, o escritor Albert Camus será sempre o pai substituto do professor Louis Germain, pela simples razão de ter sido, como aluno, o seu filho dilecto.

 Serei eu, além de filho da Alice e do Artur, filho também da professora Emília, que amorosamente cultivou, nos meus 9 anos de idade, o gosto de saber nomes de rios e de montanhas, de reis e puríssimos heróis, bem como a arte de ler em voz alta, com som, drama e chama, os poemas e os textos do livrinho salazarista da 4.ª classe?

O que eu nunca fui, por tê-la perdido no rosário do tempo, foi pai dessa minha professora-mãe, ao contrário de Camus, de amarrado cordão umbilical ao professor Germain, trocando com ele, ao longo dos anos, as mais belas cartas de devoção e reconhecimento.

Camus resgatou do anonimato a figura do professor: Louis Germain foi arrancado ao túmulo do esquecimento, renascendo com e por Camus para a pequena imortalidade literária. Os textos de Camus foram o pai que lhe deu a sua nova vida.

O pai morto em combate na batalha do Marne, tinha ele 11 meses, Albert Camus procurava um pai substituto. Ninguém melhor do que Louis Germain sabia do que ele precisava. O pai de Germain morrera tinha ele 4 anos, tal como o meu avô paterno, José Fonseca Alves, deixou aos 7 o meu pai órfão. E tal como o meu pai desarvorou Império colonial dentro, para sacudir das mãos a terra camponesa, a enxada, a dureza da apanha da azeitona e das vindimas, também o encontro de Germain e de Camus aconteceu na colónia argelina.

A minha professora Emília, na Escola da Missão de São Paulo dos italianos Padres Capuchinhos, em Luanda, no seu delírio e fé vocacional, viu em mim uma qualquer luz e conjecturou que eu viria a ser Papa. Ora eu logo recusei pôr um pé que fosse no seminário. Mais rigoroso e severo, o professor Germain viu o diamante da excepcionalidade nesse Camus, também órfão, a tentar escapar-se aos dedos ávidos e ferozes da pobreza. O que o convenceu? A alegria de Camus na escola, a simpatia e o optimismo que irradiava. E tal como a minha Emília fez com os meus pais, levando-me para o templo que era o Liceu Nacional Salvador Correia, Germain convenceu a família do pequeno Albert, de que ele teria de estudar no grande liceu de Argel.

Às asas de professor Germain somaria ainda as asas da aventura e do heroísmo. Já fora ferido na I Grande Guerra. Lutaria, como voluntário aos 58 anos, nos Corpos Franceses de África, juntando-se ao desembarque aliado no Norte de África, na II Guerra Mundial.

Mas foi também músico. Clarinetista em várias orquestras, Germain chegou a professor do Conservatório de Paris, tendo depois sido primeiro clarinetista da Orquestra de Argel. Defendeu a independência, ao contrário de Camus, ficando até à morte em Argel.

Ao ser agraciado com o Nobel da Literatura, Camus fez chegar a Germain uma das mais nobres cartas alguma vez escritas. Camus jurou-lhe que «sem a mão amorosa que estendeu à pobre criança que eu era» nunca o Prémio teria sido seu. Acrescentava: «Não faço alarde deste tipo de honra. Mas esta é pelo menos uma oportunidade de lhe dizer o que o senhor foi e ainda é para mim e de lhe assegurar que o coração generoso que pôs no seu trabalho ainda está vivo em um de seus pequenos alunos.» E despedia-se desse professor que continuava a tratá-lo por «meu pequeno Camus», abraçando-o com todas as suas forças, o que eu palidamente tento imitar com o «abraço rijo» com que me despeço de quem gosto e, hoje, de quem teve a santa paciência de me ler.

Publicado no Jornal de Negócios

A aristocrata fatal

Era tão bonita, era tão casada e era tão viúva. Somerset Maugham, escritor inglês fino e viperino, fascinado pelas sombrias e viscosas profundezas dessa particular espécie de ser humano que é a aristocracia, nos seus tempos de impenitente frequentador da então milionaríssima Côte d’Azur, num almoço festivo, disse: «Consta que vive por aqui, em Cap Ferrat, uma lady que matou os seus quatro maridos!

A lady, a tão bela Enid Kenmare, condessa de Castlerosse ou viscondessa de Furness, e já corrijo, duquesa de Kenmare, estava a dois passos do Maugham, a quem sempre agradecerei a purificadora e tormentosa viagem adolescente que foi ler-lhe o seu romance «O Fio da Navalha». Lady Enid deu esses dois passos e olhou de frente para Maugham: «Acha que pareço uma assassina?»

De uma coisa Maugham teve a certeza, a pele branquíssima, coberta de esmeraldas, tules diáfanos, sedas a esvoaçar à volta do corpo, Lady Enid pareceu-lhe uma Vénus.

E foi o que terá parecido a cada um dos maridos mais velhos com que esta australiana, nascida em Sidney, vaga e distraidamente arrivista, se casou. Amante de um milionário americano, com quem ficou de gentil amizade uma vez consumado o suado e sussurrado comércio amoroso, foi ele que lhe apresentou outro milionário, o primeiro marido, bem mais velho, que no ano seguinte bateu a bota, diria eu, se esta não fosse uma crónica de grande elevação e requinte lexical.

Herdeira do americano, ainda sem o pesadelo das tarifas de Trump, Enid exportou-se: daí em diante só se casou com aristocratas ingleses. Três ao todo: mais três casamentos, mais três funerais. Primeiro o brigadeiro «Caviar» Cavendish, com quem viveu 14 anos acima de qualquer suspeita. Uma vida sumptuosa, roçando até ombros com a família real, o rei George e a rainha Mary. Mas ninguém é de ferro e uma hemorragia cerebral, em Paris, riscou Lord Cavendish do mapa

Duas vezes herdeira, Enid casou com Lord Furness, uma grande fortuna em barcos, viúvo com a suspeita de ter atirado a mulher borda fora do iate, ao largo da bela Côte d’Azur. Ou seja, enfrentavam-se dois amantes que talvez já tivessem dado as mãos ao homicídio. Sete anos depois, Lord Furness tombava, sem apelo nem agravo, também em plena França, mas agora ocupada pelos nazis, em Outubro de 1940.

Enid conseguiu fugir e ainda a guerra não tinha acabado já a embalavam outros nédios braços. Casou-se com o duque de Kenmare, um aristocrata enorme, 116 quilos bem pesados. O bem-disposto Kenmare, distraído, sentou-se um dia em cima de um cão, que logo morreu sufocado. Kenmare também: às mãos de Enid, e com a ajuda de uma seringa, diz-se. O casamento durou menos do que um ano, o fatídico tempo de um governo maioritário de Costa ou de um minoritário de Montenegro.

A Somerset Maugham, de quem Enid ficou amiga para a vida, com muito bridge e confabulação maledicente à mistura, talvez Enid tenha confessado que casou primeiro por amor, a seguir por posição social, em terceiro lugar por dinheiro, e por fim pelo título de nobreza.

Era o que lhe reprovava a intermitente amiga Daisy Fellows, cujo nome de nascimento, Marguerite Séverine Philippine Decazes de Glücksberg, atesta o «pedigree». Quando, em conversa, Enid começou a dizer «as pessoas da nossa classe», Daisy cortou rentinho: «Um momento, Enid: da tua classe ou da minha?»

Mais tolerante e irónico, Maugham, em vez de lhe chamar Lady Kenmare, tratava-a por Lady Killmore. E esse título sim, até Daisy lhe reconhecia: «Vou dar um jantar de seis casais. Cada um dos doze já matou. A presidir vai estar a Enid. Foi a que, de todos, matou mais.»

Publicado no Weekend, suplemento do Jornal de Negócios