Nádegas, a chave do sonho

As nádegas são as de Harry Cohn. Não são umas nádegas quaisquer. Harry fundou há bem mais de um século a Columbia, uma das maiores produtoras de Hollywood. A Columbia foi uma das miraculosas criadoras desse sonho paradisíaco do século XX a que se chamava cinema. As nádegas de Harry Cohn foram a chave desse sonho.

Quem não havia nádegas que o aguentassem era Hitler. Nos anos 30, tudo o que era cineasta, argumentista, actores desandaram do III Reich e da Europa em busca de cadeiras que dessem descanso ao pessoalíssimo posterior. Ninguém tinha cu para Hitler e a solar Hollywood foi o Éden desses particulares imigrantes.

Pelas ruas de Los Angeles escorria génio. Numa casa, o compositor concretista Stockhausen; na outra, o cineasta futurista de Metropolis, Fritz Lang; uma rua mais abaixo, o sinfónico russo Rachmaninov; e lá bem ao fundo, o dramaturgo tão angustiadamente comunista Bertolt Brecht.

Havia, já disse, escritores, cineastas e actores. Mas o que espanta é como a elite europeia dos compositores, vanguarda da música desse tempo, coincidiram naquele pedaço de Califórnia. Venham comigo espreitar a casa do 1250 North Laurel Avenue. Mora aqui, nesta noite de Julho de 1942, Igor Stravinsky, a quem a estúpida Paris apupara há uns anos a sublime Sagração da Primavera. São uma boas onze da noite, já a arrumar os chinelos ao fundo da cama, Stravinsky ouve baterem-lhe à porta. Abre e está um quase desconhecido, de que Igor se esforça por reconhecer alguns traços, na mão um pequeno pote. O homem apresenta-se: é Sergei Rachmaninov. Pede desculpa pela hora tardia e pela intempestiva visita. Desculpa-se oferecendo a Stravinsky um pote de mel igualzinho ao que há em cada episódio da Masha e o Urso com que o meu neto de 4 anos agora me educa.

Rachmaninov diz a Stravinsky: «Ouça, só quero conversar consigo sobre a Rússia. Prometo que não falarei de música.» Sentaram as respectivas nádegas no conforto de uma casa americana e estiveram, noite dentro, a serrar a solidão. Provaram talvez o mel, adoçando a melancolia do exílio. E depois digam que só nós é que temos a palavra saudade.

O paraíso padece de um larvar aborrecimento. Harry Cohn – e já lhe vamos às nádegas – e os outros grandes donos dos estúdios montaram um sistema das 9 às 5 para guionistas, músicos e outros criadores. Eram dias de modorra e pasmaceira. Curtiam, por isso, depois das 5. O argumentista Ben Hecht era um amador de violino. Com outros amadores criou a Ben Hecht Sinfoneta onde só não aceitou Groucho Marx, por ele se apresentar com a indignidade de um bandolim.

Foram ensaiar no salão do andar de cima da mansão de Hecht. Bateram violentamente à porta. Era Groucho aos gritos. Tinha invadido a casa e pedia silêncio. Fecharam-lhe a porta e Harpo Marx, à harpa, comentou: «Está com uma crise de ciúmes!” Iam recomeçar e de novo Groucho irrompe no salão: «Parem com a chinfrineira, amadores de merda!»

Constrangidos, Hecht e a sua Sinfoneta deixaram-se ficar uns minutos em silêncio e ouvem, então, vindo lá de fora o som da abertura da Tannhäuser, de Wagner. Correm e descobrem no jardim da mansão a orquestra sinfónica de Los Angeles, uma centena de músicos, com Groucho Marx a dirigi-la.

O génio escorria pelas avenidas de Los Angeles. Quem descobriu e alimentou tanto génio? Tipos como Harry Cohn. Tinha um segredo? Sempre que a assistir à primeira projecção de um filme, numa audição de um actor, argumentista ou músico, um vivo tremor lhe percorria as nádegas, Cohn sabia que estava perante um grande sucesso. Só isto: um vivo tremor das nádegas.

Publicado no Jornal de Negócios, suplemento Weekend. Todas as sextas, pois claro!

Os Lusíadas a régua e esquadro

Convido Luís Montenegro a usar Camões como modelo de organização e planeamento para o governo de Portugal.  

Se eu estou maluco? Bom, se têm a ideia de que a criação artística é o resultado de lírica inspiração, o maluco não sou eu. Ora olhem para Camões e para a sua maravilhosa epopeia: Os Lusíadas. O poema começa com a invocação às Musas. Mas o que são as Musas: serão umas vinte Angelina Jolies ou Scarlett Johanssons a soprar doçuras ao ouvido de Camões? Se assim fosse, fazer arte era a coisa mais fácil do mundo. Não te deixes enganar Montenegro!

Os Lusíadas tratam da nossa primeira viagem marítima à Índia. Há tempestades, deuses e deusas, luxúria e traição, batalhas heróicas. Agora, vejam bem o trabalhinho de formiga que sustenta esse poético fogo de artifício. O poema tem dez Cantos: e sim, já sei, o Canto nono, o penúltimo, repleto de erótica euforia e mil ninfas, é o que todos queremos ler primeiro.

Esqueçam as ninfas nuas e vamos à intrincada estrutura: cada Canto tem um número diferente de estrofes: são 1102 no total. As estrofes são escritas em oitavas (oito versos) com rimas decassílabas. A rima é cruzada nos seis primeiros versos de cada estrofe (AB AB AB), e emparelhada nos dois últimos (CC). Cada verso contém dez sílabas métricas, e a ênfase rítmica – a acentuação – está quase sempre na sexta e na décima sílaba, no que se chama decassílabo heróico.

Os Lusíadas contêm um total de 8.816 versos estruturados nesta forma rigorosa e rígida. Queridas Ninfas, doces Musas, peço perdão, mas sei que, como Ninfas e Musas, não estão nem aí para esse trabalho chato e inclemente. O pobre Luís fez tudo sozinho: organizou 8.816 versos desse modo inflexível.

Se isso não é organização, chamamos-lhe o quê? Camões pensou e planeou uma obra-prima ao cagagésimo de pormenor. Cada acção imprevisível de Os Lusíadas, cada mudança de humor de Vénus, a deusa que protegia aqueles portugueses lunáticos, foi pensada a régua e esquadro pelo Luís de um só olho. Terão os dois olhos do novo Luís essa arte e engenho?

Publicado no CM, na minha coluna «A Vida Como Ela Não É»

Nem santo nem jagunço

Vejamos: há o fio da navalha. E a nossa vida é ir, pé ante pé, por esse fio. Mas, o que nos faz cair para o lado bom ou mau do fio da navalha? Que grão de areia ou leve sopro de vento nos balança para o lado do santo ou o lado do jagunço?

Peço ajuda ao escritor Dashiel Hammett. Já há mil leitores a lembrarem-se de terem visto o filme, «Hammett», que Wim Wenders lhe dedicou ou de lhe ter lido o «Falcão de Malta» («Relíquia Macabra»), a «Chave de Vidro», a «Seara Vermelha».

Os livros de Dashiel são os mais desesperados romances policiais americanos, retratos desencantados do sórdido crime. E antes de os escrever, vejam como os pés de Hammett derrapam no fio da navalha: era filho de um agricultor e aos 14 anos já desconseguira de ir à escola. Foi moço de recados em escritórios, a dar de fino numa fábrica de conservas, a espatifar o canastro como estivador, agente de cargas ferroviárias, seja la o que isso for. Era depressa despedido desses mil empregos e eu sei o que é essa incontinência laboral: entre os meus 17 e 23 anos eram meses, o máximo um ano, a saltar de recepcionista de hotel para escriturário na Missão de Combate à Tripanossomíase (e não é que erradicámos então a mosca do sono em Angola!), ajudante de tesouraria num hospital de medicina física e reabilitação, um quase Bartleby a classificar documentos militares das frentes de combate da lenta guerra d´África.

Nunca experimentei foi esse agudo gelo que trespassou o estômago de Hammett quando lhe fizeram «a proposta». Cansado de ser despedido, Dashiel candidatou-se à agência de detectives da Pinkerton. Acolheram-no. Corria o ano de 1915 e Dashiel tinha 21 anos. Deram-lhe uma missão sórdida: fazer parte das unidades que iam furar e desmantelar greves de trabalhadores. Chegou a infiltrar-se num hospital, ficando na cama ao lado de um sindicalista radical para lhe sacar informação. Também enfrentava, de pistola e faca, o «bas-fond», do que as cicatrizes no corpo e algumas irregularidades no crânio fazem prova. Ou seja, trapaceou, ludibriou, mistificou. Olhando para ele, para essas cicatrizes ainda a latejar, para o seu cortejo de embustes, alguém o achou – eis «a proposta» – um tipo capacíssimo de aceitar 5 mil dólares para assassinar o principal dirigente do movimento sindical.

Hammett viu-se ao espelho: o que fizera da vida dava a alguém o direito de lhe oferecer dinheiro para matar.  O fio da navalha a pôr-lhe os pés em ferida, Dashiel mudou de rumo. Agarrou na massa infecta de atrocidades, traições e pesadelos e fez dela histórias. Não sei se Lillian Hellman, a amante dele por 30 anos, estaria de acordo comigo, mas Hammett não inventou nada: cada linha dos seus livros era suor, sangue e vómito da vida passada. Zero por cento de imaginação, mil por cento de uma puta de vida.

Lillian era uma «vermelha». Os lençóis da cama em que tanto amararam, os beijos, a saliva, outros fluídos fizeram de Hammett um convertido ao comunismo? Uma coisa é certa, três anos após o começo desse revolto comércio amoroso, Hammett deixou de escrever romances. Em Hollywood, a par da militância, entregou-se a uma vida de dissipação, torrando centenas de milhares de dólares em jogo, álcool, a curar gonorreias. E também em processos de assédio e violação. O sinistro fio da navalha voltava a cada noite, em dívidas, evasões de hotéis, bebedeiras atrozes, brigas e desordens.

É essa a história íntima. Para a grande história fica o homem que resistiu, com brio, à caça às bruxas, fiel à sua nova fé. Santo ou jagunço?

Publicado no Jornal de Negócios, Weekend.

Há livros nos ramos do Verão

Os meus livros de Agosto
frutos maduros nos ramos de Verão

Sabem – já experimentaram de certeza –, aquele contentamento doce e silencioso, que nos faz fechar os olhos e nos deixa em paz com a natureza, essa alegria contida que se basta a si mesma? É o que sinto com os meus cinco livros deste mês: não me lembro de um Agosto de cujos ramos se dependurassem livros como estes.

A começar pelo Atlas da II Guerra Mundial. É bom e é monumental, quase o dobro do formato dos nossos outros Atlas Históricos, 24 cm de largura por 31 de altura. E é o mais sistemático atlas da II Guerra: todas as batalhas, todos os exércitos, num livro que é uma revolução gráfica, obra de vários historiadores, com organização de Jean Lopez, numa investigação multidisciplinar de três anos. Para recordar essa guerra que começou há 86 anos no dia 1 de Setembro de 1939, fonte da tremenda onda de dor e morte que varreu a Europa e o mundo.

Da antítese da guerra que é ou deveria ser a literatura, fala-nos o espanhol Felipe Díaz Pardo em A literatura universal em 100 Perguntas. E eu disse «fala-nos» e não «escreve-nos» porque estas 100 Perguntas são a conversa de sonho que sempre quisemos ter sobre «o que tem o vinho que ver com o nascimento do teatro» ou «qual o escritor que melhor usou o monólogo interior» ou «se é possível encontrar Dostoiévski no local do crime». São 300 páginas de sabedoria, surpresas e de um divertissement efervescente: champanhe, ah pois!

E agora olhem bem para o orgulho deste editor: estão a ver-me a ulular de prazer na varanda? Não admira: é o que acontece a qualquer editor que possa publicar, com um cheirinho de «inédito» a enobrecer-lhe o café, o grande Luiz Pacheco. A culpa é toda, e redondíssima, do Nicolau Santos. Foi o Nicolau que convidou o irascível Pacheco a escrever crónica in illo tempore no Diário Económico e no Público. Para isso mandaram cartas, trocaram confidências, traficaram inconfidências. E ficaram provas de tudo. Num precioso livrinho, Bater sempre também cansa… mas às vezes até é pouco, estão reunidos os textos que testemunham a nua – sim, nua – e linda sinceridade e genialidade da escrita de Luiz Pacheco e a sua desassombrada visão da vida e da criação literária. E, poderia lá faltar, a sua – ohhh! – «percepção» de algumas grandes figuras da nossa intelectualidade. Setenta e duas páginas de ouro.

Falta-me falar de dois romances que chegam às livrarias em cima da nossa rentrée literária. Publico, pela segunda vez, Evelina Gaspar. No seu O Destino Português de Sam, Evelina traz na mão um homem real, o artista Sam Abercombry. É um australiano, pintor, que se apaixonou por Portugal e, obsessivamente, pelo nosso mito sebastianista. Vive connosco há 30 anos e é feliz em Portugal! E andamos nós a chorar baba e ranho pelos cantos. Vamos, mas é, ler este romance e dar com Sam saltos de canguru.

Fecho com o meu amigo luso-angolano Onofre dos Santos. Este é o seu quarto romance comigo. Se o título – O Último Romance de Camilo – vos faz pensar que Onofre abandonou os temas angolanos dos livros anteriores, estão perdidamente enganados. Agora, como é que Onofre arrasta o velho Camilo Castelo Branco para África e lhe põe na boca a palavra Angola… Ou será que é tudo um pretexto e Camilo, salvo o caixote que lhe chega de Malanje, nunca sairá de Portugal, Porto e Seide?

São os meus cinco livros de Agosto, frutos maduros pendurados nos ramos do Verão. Um dos pêssegos é Luiz Pacheco. Há editores felizes.

Manuel S. Fonseca, editor

A Rapariga Alta

Eliot em visita a Virginia Wolf. De branco, Vivienne, a primeira mulher.

Não se deixem enganar. No mais recatado, sóbrio e sereno dos seres humanos pode esconder-se um vulcão fremente, labaredas e lava incandescente.

Vejam o poeta T. S. Eliot. Epítome da modernidade, era um verde vale de conservadorismo, quase timidez, vestido com a elegância de um fatinho de quatro peças, como o descrevia Virginia Wolf: chapéu redondo, abotoadíssimos casaco, colete e calças.

O erotismo era um cavalo alado que jamais pensaria visitá-lo. Eliot casara virgem e tão mal, com Vivienne Haigh-Wood, que não só a noite de núpcias, conta a lenda, foi dormida num cadeirão do convés do barco da lua de mel, como depois, em 1928, convertido ao anglicanismo, essa forma pela qual os ingleses nacionalizaram o catolicismo, o poeta fez voto de castidade.

Vivienne não escondeu sequer a infidelidade ao poeta de «Waste Land». Bertrand Russell era visita da casa e, no que filosoficamente entendia como uma contribuição para a terapia do casal, proporcionava penetrantes favores à dama com que Eliot não tinha, lá por baixo, a mínima química.

O que nenhum deles sabia é que no passado de Eliot se escondia uma mina de erótico ouro. Escrevera, entre 1908 e 1914, um livro nunca publicado, «King Bolo e a sua Grande Rainha Preta». Eram versos de uma sexualidade desgovernada e cómica. Narrava a viagem de um explorador colonial, Colombo, e o seu encontro com o Rei e a Rainha de Cuba. Havia versos com «um par de bolas peludas» outros com «um grande e nédio pénis preto» que rasga uma prostituta «da rata ao umbigo».  Num dos poemas, está Colombo morto e trazem-no à rainha que «com um garfo de ostra / trespassa de Colombo o umbigo / e logo Colombo ergue o traseiro / e na mesa defeca

Só os amigos poetas, como Ezra Pond ou Wyndham Lewis, conheciam – e muito apreciavam – esse fundo vulcânico de Eliot. Em 1915, Eliot pensou publicar os inflamados poemas na revista de vanguarda «Blast». Lewis, que era o director, disse que só o faria se ele eliminasse as palavras que terminavam em «…oder», «…ona» e «…neleiro». Sobrava o quê? O honesto Eliot recusou.

Vejamos, eu nasci em 1953. Nesse ano, já Vivienne tinha morrido, Eliot tinha duas «amantes», se assim lhe podemos chamar, uma na América, paixão dos tempos universitários, Emile, e a outra inglesa, Mary, com quem nunca jantava dois dias seguidos. Ambas queriam casar: comunicou-lhes que a ideia de voltar a viver com alguém lhe parecia um pesadelo e que se ia recolher a um mosteiro.

Mas quatro anos depois, em 1957, uma mulher dá à vida dele a volta que muita gente precisava de dar ao bilhar grande. Valerie Fletcher era a editora da obra de Eliot na Faber & Faber, casa que o publicava. Sete anos de convívio desaguaram em casamento – ela com 30, ele com 70 anos.

Para Eliot foi o paraíso. E não foi tarde demais. O puritano Eliot desamarrou o adormecido vulcão. É preciso dizer que Valerie era uma mulher alta para o tempo. Tinha um metro e setenta. Eliot, resgatando a musa dos anos de juventude, canta as delícias desse encontro com a «rapariga alta»: «Quando a minha rapariga alta se monta no meu colo / Ela vestida de nada, eu de nada vestido, / as nossas partes do meio tratam dos seus negócios /e eu posso acariciar-lhe as costas e as longas pernas alvas. / Ficamos felizes os dois. Porque ela é uma rapariga alta.»

E Eliot conta-nos mesmo «Como São os Seios da Rapariga Alta»: «Os peitos dela são pêras maduras a balouçar /sobre a minha boca / que se ergue para morder.»

Com a rapariga alta, nunca é tarde para se chegar ao paraíso.

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend.

Fucking music

O que pode um borra-botas como eu aconselhar a quem sofre a responsabilidade de mandar? A um Montenegro que leva uma nação perplexa e meio-doida pela mão, a um José Luís Carneiro que tem os estilhaços de um velho pote chamado PS para colar?

Na minha insensatez só posso aconselhar paixão. A mesma grande paixão que motivou David O. Selznick, o imenso produtor desse filme grandioso chamado «E Tudo o Vento Levou».

Já depois de ter filmado «E Tudo o Vento Levou», Selzick apaixonou-se por uma actriz, Jennifer Jones. Tenham Montenegro e Carneiro a mesma paixão por este pobre país! Selznick inventou um filme de cow-boys para a sua amada, um filme de tiros, bandidagem está claro, mas acima de tudo um filme de amor e morte e do que, naquele tempo era uma sensualidade escaldante. E se Jennifer transbordava volúpia e aquecimento global!

Para uma cena culminante desse filme, «Duelo ao Sol», Selznick foi ter com Dimitri Tiomkin, o compositor a quem encomendou a música. Pediu-lhe para essa cena uma música que fosse o «tema do orgasmo». «Orgasmo? Mas como é que se toca um orgasmo?» protestou Tiomkin. «Tente. Quero a música de uma boa ‘shtump!» E já perceberam que «shtump» é em seis letras o que designa esse vaivém que em quatro letras faz felizes tantos portugueses e portuguesas.

Fazendo breve uma história longa, sentemo-nos com Selznick e Tiomkin e ouçamos a orquestra tocar os temas que iam dar vida e som ao «Duelo ao Sol». A orquestra tocou o tema espanhol, depois o tema do rancho, o do assalto e Selznick estava nas nuvens com música tão arrebatadora. Chegou, por fim, o tema do orgasmo. Era sensual, fulgurante. Mas Selznick torceu o nariz. «De que é que não gosta, Mr. Selznick?», perguntou o músico. «Gostar, gosto!» começou a dizer Selznick, e agora peço às famílias que metam as crianças no quarto, «mas não é ‘shtump’, não é assim que eu fodo!» Um incendiado Tiomkin passou-se da carola: «Mr. Selznick o senhor fode à sua maneira, eu fodo à minha. Mas isto é mesmo fucking music!» Teremos, em Portugal, compositor para tanto?!

Publicado no CM, em «A Vida Como Ela Não É», a minha crónica de cada 5.ª feira

Quem o matou?

Há quem não resista à sedução do tamanho. Sid Grauman, alva cabeleira de Einstein, era um desses rendidos devotos da grandeza. Usava chapéus quase toldos, guiava uma faiscante banheira americana que jamais caberia numa viela de Alfama. E sobretudo, e assim já ficam a saber quem era Sid, mandava construir cinemas que eram autênticos Taj Mahal: o famoso Chinese Theater, o não menos famoso Egyptian Theater, atracções de Hollywood, nesse tempo em que o cinema não era uma mão-cheia de pipocas, mas sim, uma faustosa ceia gourmet.

Ora, Sid Grauman juntava ao seu lambido gosto pela grandeza, um imparável sentido do espectáculo e de elegância, a que gostava de somar um grão de picante. Convenhamos, o picante dele era igualzinho ao ardente jindungo do meu quintal de Luanda. E o jindungo na língua de Sid eram as elaboradas partidas – «pranks», chama-lhes a danada língua inglesa – que pregava fosse a quem fosse.

Veio visitar Hollywood, David Warfield, um digníssimo actor de teatro, nada dessa estuporada raça de actores de cinema, e Sid foi acompanhá-lo. Sid vestiu-se de mulher e vejam e ouçam: ainda nem os óvulos de que surgiria a geração #metoo sonhavam dançar em ameno útero, face à multidão que os esperava, Sid agitou as saias, e gritou, apontando para Warfield: «Estupro, estupro!»

 Sid tinha a paixão das figuras de cera. Espalhou réplicas de actores pelo Chinese Theater. Um dia, convidou o patrão da MGM, Marcus Lowe, a falar, no seu Hotel Ambassador, a 75 donos de cinemas de toda a América, para lhes apresentar o plano das próximas grandes estreias dessa imensa produtora de cinema, que tinha mais estrelas sob contrato do que estrelas havia no céu. Lowe, entusiasmado, perorou uma hora, até descobrir que estava a falar para extraordinárias figuras de cera.

Ao mesmo hotel, aflitíssimo, pediu Sid que viesse Charlie Chaplin: descobrira uma mulher assassinada num dos quartos. Chaplin adorava Sid, meteu-se num carro e, em muito menos do que uma caixa de fósforos, lá estava a roçar o ombro amigo com Sid, que só queria evitar o escândalo. Chaplin olhou, sangue espalhado por todo o lado, e disse que tinham de chamar a polícia. Sid gritou, rejeitou, negou: nem pensar! E pede a Chaplin que olhe mais de perto o rosto da mulher sobre uma poça vermelhíssima: de ketchup e não de sangue.

Não sei como é possível, mas a verdade é que Sid não gostava de Ernst Lubitsch, esse cineasta alemão que pôs Greta Garbo a rir-se. Por portas travessas, quem sabe se não terá sido o nosso presidente Marcelo a descair-se, Sid soube que o seu Lubitsch de estimação marcara um bilhete de avião de Los Angeles para San Francisco, onde o esperava uma ante-estreia. Ora se havia coisa que Lubitsch odiava – pelo menos tanto como a minha mulher – era andar de avião. Não era só odiar, tinha um medo que se pelava. Já Sid está ao telefone a contratar dois duplos. Melhor, que isto em francês é que é uma língua de prata: Sid contratou dois «cascadeurs», aqueles tipos que fazem, nos filmes, as cenas mais arriscadas. E meteu-os no avião.

No ar, lá mais perto do céu, onde não há oficinas para aviões, as vísceras de Lubitsch a revolverem-se, os dois duplos levantam-se, desatam a correr pelo meio do avião, abrem a porta e lançam-se, de paraquedas, claro, deixando o alemão convulso e com um pequeno ataque cardíaco, que a tripulação teve de atender. Pouco depois, a seguir a jubiloso e orgástico vaivém, um ataque cardíaco pós-coital levou Lubitsch, aos 55 anos, para os braços de Nosso Senhor.  Foi Sid, e esta partida de diabo a sete, que o matou?

Publicado no Weekend/Jornal de Negócios

A bofetada de Baudelaire

Pode uma vida ser plágio de outra vida? Pode a vida de Herberto Helder, poeta português dos séculos XX e XXI, ser plágio da vida de Charles Baudelaire, poeta francês do século XIX? Ambos, Herberto e Baudelaire, cultivaram uma visão romântica, a roçar o heróico, do que deve ser a figura privada e pública de um poeta.  E o que pergunto, dando porventura razão a Platão, é se não há um arquétipo, lá no mundo das Formas, que desce por vezes à Terra e entra num pobre ser humano e o ocupa, como o arquétipo romântico do poeta entrou e ocupou o corpo e o que fosse a alma de Baudelaire e de Herberto!

Baudelaire era, menino e adolescente, o que os franceses chamam «três attaché à sa mére», odiando com vigor e júbilo o padrasto que lhe veio roubar os afagos maternais. Não admira que o padrasto o tenha tentado empandeirar para o Oriente, para Calcutá, viagem que uma tempestade interrompeu, desembarcando-o à força na ilha Maurícia. Durante um ano Baudelaire saboreou as ultramarinas delícias da pele e outras sumarentas fendas e doces colinas dessa África oriental. Ficou-lhe o gosto, já que, regressado a Paris, se deixa arrebatar pelos traços haitianos de Jeanne Duval, com quem há-de partilhar, em convulsão – tanta má fortuna, muito satânico amor ardente –, os vinte anos que não sabe, mas é tudo o que lhe sobra para viver.

O que quero dizer é que Baudelaire, tendo dissipado em 18 meses a opípara herança paterna, foi recebido nos braços tentaculares da pobreza, vivendo na miséria, sem dinheiro, a sua vida de adulto, miséria a que só a evasão pelo álcool, haxixe e ópio oferecia resgate. E talvez não: também terá tocado o céu e o inferno com Jeanne, a amante mulata, e com as putas a quem se dava e que de volta lhe deram a linda prenda de uma senhora sífilis.

Desdenhando os valores burgueses, indiferente a prebendas, provocador muitas vezes – gostava de o ter visto, nesse cavernoso século XIX, a passear em Paris o cabelo com duas madeixas pintadas a azul e verde – uma invencível fidelidade sempre o obrigou: a fidelidade a uma visão puríssima da poesia, uma poesia liberta da moral, cuja elevação estética transfigura o sórdido e a lama em beleza e ouro.

Quem tenha lido a biografia que João Pedro George dedicou a Herberto, no livro que leva o belo título «Se Eu Quisesse Enlouquecia», encontrará no périplo herbertiano esse rasto de Baudelaire e das suas «Flores do Mal»; são pó da mesma via láctea, do amor de mãe ao desprezo pelas honrarias, prontos a esfaquear a objectividade (chamem-lhe verdade, se quiserem) em nome da beleza.

Não se confunda esse etéreo ouro com o pechisbeque de salão. E digo isso a pensar na bofetada que um dia Armand Barthet, então uma celebridade, deu de surpresa a Baudelaire, numa discussão sobre literatura. Chegaram a estar com duelo marcado, que as sensatas testemunhas das duas partes anularam. Barthet tivera êxito com uma sátira a Catulo, «O Pardal de Lésbia», e era conhecido pelo espalhafato – num gesto largo partira uma estatueta a vermelho e ouro em casa de Victor Hugo. O pobre Armand teve um casamento bizarro (logo que descubra o que isso foi, conto) e enlouqueceu. Fecharam-no mesmo num hospício. Conseguiu um dia escapar-se e, com uma lâmina que apanhou, teve a audácia e a horrorosa tenacidade de se castrar. Morreu, a seguir.

Também Baudelaire teve um fim deplorável: a sífilis roubou-lhe a fala. Conseguia apenas articular o termo «cré nom», contracção de «sacré nom de Dieu». Morreu num hospício, pobre e mudo. Hoje, «As Flores do Mal» é dos livros mais vendidos e lidos de sempre.

Publicado no Weekend /Jornal de Negócios