
As nádegas são as de Harry Cohn. Não são umas nádegas quaisquer. Harry fundou há bem mais de um século a Columbia, uma das maiores produtoras de Hollywood. A Columbia foi uma das miraculosas criadoras desse sonho paradisíaco do século XX a que se chamava cinema. As nádegas de Harry Cohn foram a chave desse sonho.
Quem não havia nádegas que o aguentassem era Hitler. Nos anos 30, tudo o que era cineasta, argumentista, actores desandaram do III Reich e da Europa em busca de cadeiras que dessem descanso ao pessoalíssimo posterior. Ninguém tinha cu para Hitler e a solar Hollywood foi o Éden desses particulares imigrantes.
Pelas ruas de Los Angeles escorria génio. Numa casa, o compositor concretista Stockhausen; na outra, o cineasta futurista de Metropolis, Fritz Lang; uma rua mais abaixo, o sinfónico russo Rachmaninov; e lá bem ao fundo, o dramaturgo tão angustiadamente comunista Bertolt Brecht.
Havia, já disse, escritores, cineastas e actores. Mas o que espanta é como a elite europeia dos compositores, vanguarda da música desse tempo, coincidiram naquele pedaço de Califórnia. Venham comigo espreitar a casa do 1250 North Laurel Avenue. Mora aqui, nesta noite de Julho de 1942, Igor Stravinsky, a quem a estúpida Paris apupara há uns anos a sublime Sagração da Primavera. São uma boas onze da noite, já a arrumar os chinelos ao fundo da cama, Stravinsky ouve baterem-lhe à porta. Abre e está um quase desconhecido, de que Igor se esforça por reconhecer alguns traços, na mão um pequeno pote. O homem apresenta-se: é Sergei Rachmaninov. Pede desculpa pela hora tardia e pela intempestiva visita. Desculpa-se oferecendo a Stravinsky um pote de mel igualzinho ao que há em cada episódio da Masha e o Urso com que o meu neto de 4 anos agora me educa.
Rachmaninov diz a Stravinsky: «Ouça, só quero conversar consigo sobre a Rússia. Prometo que não falarei de música.» Sentaram as respectivas nádegas no conforto de uma casa americana e estiveram, noite dentro, a serrar a solidão. Provaram talvez o mel, adoçando a melancolia do exílio. E depois digam que só nós é que temos a palavra saudade.
O paraíso padece de um larvar aborrecimento. Harry Cohn – e já lhe vamos às nádegas – e os outros grandes donos dos estúdios montaram um sistema das 9 às 5 para guionistas, músicos e outros criadores. Eram dias de modorra e pasmaceira. Curtiam, por isso, depois das 5. O argumentista Ben Hecht era um amador de violino. Com outros amadores criou a Ben Hecht Sinfoneta onde só não aceitou Groucho Marx, por ele se apresentar com a indignidade de um bandolim.
Foram ensaiar no salão do andar de cima da mansão de Hecht. Bateram violentamente à porta. Era Groucho aos gritos. Tinha invadido a casa e pedia silêncio. Fecharam-lhe a porta e Harpo Marx, à harpa, comentou: «Está com uma crise de ciúmes!” Iam recomeçar e de novo Groucho irrompe no salão: «Parem com a chinfrineira, amadores de merda!»
Constrangidos, Hecht e a sua Sinfoneta deixaram-se ficar uns minutos em silêncio e ouvem, então, vindo lá de fora o som da abertura da Tannhäuser, de Wagner. Correm e descobrem no jardim da mansão a orquestra sinfónica de Los Angeles, uma centena de músicos, com Groucho Marx a dirigi-la.
O génio escorria pelas avenidas de Los Angeles. Quem descobriu e alimentou tanto génio? Tipos como Harry Cohn. Tinha um segredo? Sempre que a assistir à primeira projecção de um filme, numa audição de um actor, argumentista ou músico, um vivo tremor lhe percorria as nádegas, Cohn sabia que estava perante um grande sucesso. Só isto: um vivo tremor das nádegas.
Publicado no Jornal de Negócios, suplemento Weekend. Todas as sextas, pois claro!






