A vodka do ditador

Convido-vos ao pesadelo. Venham sentar-se à mesa com Estaline. E preparem-se para um dilúvio de vodka. Sim, calcem os confortáveis sapatos de Churchill ou as rústicas botas de Khruschev: ambos passaram por essa dura provação, os pratos a sucederem-se, sopa, peixe, galinha, caça, cordeiro ou cabrito, tudo banhado, como o Atlântico banha da Europa à África, passando pelas três Américas, por um agreste oceano de vodka.

Será a garrafa o diferencial de cada ditador? Salazar, uma cálida manta sobre os joelhos, bebia o seu vinho tinto e estava na cama à meia-noite, já feitas as orações da noite. A essa hora ia Estaline nos primeiros brindes, toda a mesa levantada, a virar copos de vodka, ritual que os convidados tinham de suportar até às cinco da matina.

Venham, vamos todos à datcha de Estaline, em Kuntsevo. Olhem para a sumptuosa mesa na sala de jantar. Daqui, desta mesa, é que se governava a Santa Rússia, jurou Molotov, ministro dos negócios estrangeiros, na verdade um dos mais íntimos companheiros do ditador georgiano. Os convivas tinham de passar por um bizarro desafio, a prova do termómetro. Ali, no ameno calor da sala, tinham de adivinhar que infernal temperatura estava no gelado exterior. Por cada grau de erro tinham de beber mais uma dose de vodka. Era o caminho para o “in vino veritas” e já lá vou.

Cada jantar era um eterno retorno à iniciática prova juvenil de virilidade: aguentar a vodka como um homem. Era também um teste de sobrevivência: se no vinho está a verdade, Estaline procurava a “veritas” dos seus convidados na vodka, na ânsia de lhes soltar a língua e descobrir um enredado complot, uma pequena traiçãozinha que fosse. No gargalo de cada garrafa de vodka desenhava-se a hipótese de um longo, gélido e mortal degredo na Sibéria ou a clemência de um fuzilamento rápido. Cair bêbado, cabeça enfiada no prato, era a desgraça para o incauto conviva, garantiu Khruschev, que sabia do que falava.

A vodka não será a essência da dilacerada e transparente alma russa. Mas na Guerra Mundial, quando os nazis ameaçaram conquistar essa imensa e grandiosa terra-mãe, a vodka aqueceu os resistentes homens e máquinas. Para cada soldado da frente havia uma ração diária de 100 ml de vodka. Mas o horrível Inverno, essa desolação branca, altíssima muralha de gelo e neve que cercava os exércitos, obrigou os generais soviéticos a desviar a vodka para os carros de combate: à falta de anticongelante, misturavam vodka à água dos radiadores para manter os tanques a ronronar. Só os heróis, os que loucamente se destacavam em combate, tinham a ração diária. Eis o que aumentou ainda mais a generosa combatividade de soldados cuja expectativa de vida, em Estalinegrado, era de umas singelas 24 horas.

Volto ao ditador. Era cambuta, como em Luanda se chamava a um homem pequeno, apenas 1 metro e 65, menos três centímetros do que o anafado Churchill, longíssimo dos quase dois metros do general De Gaulle, para falar de dois convivas que ele arrasou em banquetes. Como era possível, interrogou-se De Gaulle, que aquele sólido meia-leca se tivesse levantado 30 vezes para brindar no jantar que lhe ofereceu em Moscovo? E lembro, a cada brinde bebe-se o cálice de vodka que, depois, se volta, boca do copo para baixo, para mostrar que nem uma gota pinga sobre a toalha. Cada gota derramada, além de sinal de fraqueza do bebedor, é um augúrio de terríveis desgraças futuras. Eis o truque do ditador: Estaline fazia batota, a sua vodka vinha cortada, meio-meio, com água, o que também fazia com o vinho. Tal qual os radiadores dos tanques soviéticos.

Publicado no Jornal de Negócios

Dry martini ou o concorrente de Cavaco

Toda a história da literatura cabe numa garrafa de vinho. Ou de whisky. Exagero, porventura. Mas senão toda, pelo menos meia história da literatura cabe numa garrafa de 7,5 ml. Pensem na homérica garrafa de Hemingway, nas garrafas do português Cardoso Pires, no flagrante delitro de Fernandinho Pessoa. Lembro: era etílica, de puríssimo álcool, a cama infame em que se deitaram os poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, no estremunhado século XIX.

E vejam, um americano, o escritor Charles Bukowski, assombrou a França vinícola: num programa de televisão mete à boca uma garrafa de vinho, Chateaux Margaux, sei lá, e ó camarada ó vira ó vira, sem tirar mais da boca, ó camarada, ó vira ó vira, deglute todo o conteúdo, num acto de poesia abjeccionista. Nunca o programa “Apostrophes” assistira a tamanha hipérbole.  

 Faulkner, o romancista de “Palmeiras Bravas”, era apreciador de um rigoroso dry martini – como eu, quando tinha férias, antes de ser editor de livros –, só o geladíssimo gin, límpido oceano oleado por uma impura azeitona e pelo não mais do que aroma de uma gota de martini.  Dizia Faulkner: «Quando bebo um dry martini sinto-me gigante, sapientíssimo, elevado. Tomo o segundo e sinto-me superlativo. Depois disso, não há quem me segure.» O professor Cavaco que me perdoe, mas tem no dry martini o seu maior concorrente: o dry martini abre auto-estradas sem precisar de PRRs ou subsídios europeus. Como disse o superlativo Faulkner e eu mesmo, na minha modéstia, experimentei, bebe-se e o veludo do gin cria no interior do ser humano uma larga e esplêndida via de comunicação, um vácuo que precisa de metafísica e transcendência para ser preenchido, caso de Faulkner, ou para espíritos mais prosaicos, como é o meu caso, de picanha, churrasco, dantescas doses de queijo da serra.

Dorothy Parker não me desmente: “Adoro beber um ou dois dry-martinis. Com três, atiro-me para baixo da mesa. Com quatro para o colo do meu parceiro.” Não admira, por isso, que se diga que muitos escritores americanos que se conheceram e incendiadamente discutiram noite fora, se se vissem à luz do dia não se reconheceriam, já que nunca tiveram a infelicidade de se verem sóbrios.

O álcool mata e é duvidoso que os 15 graus de um bom tinto ou os fulminantes 42,4 de um Laphroaig de 1960, vintage reserve, venham acompanhados por camonianas “Ninfas amorosas, de amor feridas”, essas que olhos marinheiros logo cobiçam. Mas também é verdade, o que o actor e cronista Robert Benchley disse a um amigo que lhe censurava o dilúvio que o via emborcar, avisando-o de que o álcool era “um veneno lento”: “Pois sim – respondeu Benchley – e quem é que aqui tem pressa?”

Quem tinha pressa era Marguerite Duras. Levantava-se e esqueçam lá o cafezinho matinal, Duras ao primeiro contacto com a luz solar precisava de vinho ou whisky. Tenho de contar isto ao Pedro Nabinho, meu sócio na Guerra e Paz e com culpas no cartório: ele, nos tempos do Festival de Cinema da Figueira da Foz, batia-lhe à porta, em Paris, para lhe levar vinhos portugueses. Volto às ninfas. Raymond Chandler, e bastava a leitura de “The Long Goodbye”, o mais belo dos mais belos dos seus livros, para que tirássemos a camisa e a rojássemos pelo chão para que ele nela limpasse os sapatos, confessou: “O álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico. O segundo é íntimo, o terceiro rotina. Depois disso, já é só arrancar à amada a roupa toda.” Ou, como um poeta francês, quase ignorado, escreveu: “Quando o meu copo está cheio, esvazio-o/ Quando o meu copo está vazio, encho-o.” Copo erguido, à vossa!

Publicado no Jornal de Negócios

A alma do fugitivo

Lazare Pytkowicz

Fugir. Todo o ser do pequeno Lázaro se concentra apenas nisso: fugir. É o Verão de 1942. Pé de ferro, mão de aço, o poder nazi, a sombra do bigode de Hitler escurece a Europa, mesmo o Verão de Paris. No Velódromo de Inverno da cidade luz, as milícias francesas, perfiladas e obedecendo às ordens da Gestapo, acabam de amontoar, entre gritos, desmaios e vómitos, doze mil judeus. Há homens, mulheres, crianças, um coro ainda sonoro de mães com bebés.

Foi particularmente quente o Verão de 42 em Paris? O que aqueles cativos sabem, sem comida nem água, é que o Velódromo escalda. E as mães, com os bebés a berrar baba e ranho, querem água para acalmar o sofrimento dos infantes. Há, em frente a uma das portas do Velódromo, uma mercearia. As mulheres empurram os seus guardas de negro vestidos, há um clamor, pedem, imploram, revoltam-se, esgadanham. O pequeno Lázaro, de 14 anos, encosta-se ao motim maternal. As mulheres – são 50, são 100? – conseguem forçar a porta e estão na rua, correm para a mercearia, os guardas descontrolados atrás delas. O pequeno Lázaro desvia-se para a direita. Ninguém tem os olhos nele, que o motim é íman que atrai e cola milícias, mães e bebés. Todo o ser do pequeno Lázaro, o coração, os músculos, a alma, se concentra na corrida de 30 segundos de que precisa para fazer um pedaço da rua Nélaton e virar à esquerda. Arranca a nefanda estrela amarela do seu fatinho parisiense e foge. Vira a esquina e sabe, numa euforia dolorida, que deixou para trás a ignomínia e a terrível morte.

No Velódromo, o pequeno Lázaro deixou pai, mãe e irmã, os Pytkowicz, que há quase 20 anos tinham chegado a Paris, fugidos da Polónia e dos pogroms, esse desporto que era assassinar judeus. No Velódromo pediu aos pais autorização para tentar fugir. A mãe não quis, mas o pai, percebendo um destino funesto no tratamento de gado que já era o Velódromo, deixou-o tentar a sorte.

Para onde irá o pequeno Lázaro, agora? Não pode regressar à casa abandonada, ao silêncio da mesa da sua sala, às flores da mãe que murcham e desfalecem no vaso. Vai para casa do melhor amigo da escola. A família francesa, brava, esconde-o. Levam-no para Lyon, onde a Resistência lhe vai dar família e estudos. Mas o ressuscitado Lázaro recusa: quer combater os nazis. Clandestino, chamado agora Petit Louis, passa a ser o insuspeitado agente de ligação dos Movimentos Unidos de Resistência.

A Gestapo prende-o, já tem 15 anos. Torturam-no e é mesmo Klaus Barbie quem lhe bate. Petit Louis, ardiloso, diz que tem um encontro numa praça de Lyon com uma figura chave da Resistência. A Gestapo acredita. Levam-no e, mal o deixam, para simular o encontro, a alma fugitiva do Petit Louis ressuscita e eis que corre em Lyon como se corresse em Paris. Disparam, não lhe acertam, consegue esconder-se debaixo do assento de um carro.

Queimado em Lyon, a Resistência leva-o para Paris. Volta a chamar-se Lázaro e são as milícias francesas que o prendem em 1944 e o entregam à Gestapo. Está num comboio, com destino à morte. Tem de mudar na gare de Lyon, em Paris. E volta a ressuscitar dos mortos. Na gare, subtil, passa da fila de gado para abate, para a fila dos franceses que passam. Pela terceira vez, Lázaro fugiu à morte.

Depois da Libertação, no liceu, chamam-no à sala do reitor. Um general francês entrega-lhe, em nome da França, a condecoração de Companheiro da Libertação. O pequeno Lázaro, 17 anos, mete a medalha no bolso para que os colegas não se riam dele, e volta ao lugar para sua aula de matemática ou língua francesa.

Publicado no Jornal de Negócios

Os livros de Março: 12

Bom dia, meus amigos e amigos do livro. Pelo vosso ardente amor ao livro, tenham a
santíssima paciência de se deixar levar por estas águas de Março, um rio de 12 novos títulos. 

os meus livros de Março
ricos de Portugal comprem o livro nacional

«Nem mais um anticiclone para os Açores, nem mais um faroleiro para as Berlengas”, eis o espírito com que a Guerra e Paz editores me entregou os livros do mês, como se fossem as águas de Março. Com o 25 de Abril à cabeça. O António Costa Santos traz-nos mulheres com véus em igrejas escusas, incendiários isqueiros proibidos, o fascinante segredo de umas pernas sempre jovens e o livro chama-se Antes do 25 de Abril Era Proibido: a capa é muito boa, mas o miolo ainda é melhor.

Há mais 25 de Abril, já lá vou, não sem que antes o André Osório, tão jovem poeta, nos diga, em verso «O tempo sabe a castanhas, a ameixas, / a figos. Quem pode dizer que fora a infância/ um estado idílico?» É um livro de memórias e perigo, Sala de Operações.

Da poesia ao romance, nas Novas Edições de Jorge de Sena publico o seu romance maior, o maior romance do século XX português, Sinais de Fogo, romance de «liberdade inescapável, a liberdade como maldição irredutível», descoberta do sexo, da consciência política, da criação poética: pessoalíssimo 25 de Abril de Jorge de Sena, muito antes de haver 25 de Abril.

E agora um parêntesis americano: Sobreviver a Esta Noite, de Riley Sager, um rapaz de boa escrita que vive em Princeton, leva-nos para os escarpados territórios do thriller, uma geografia de suspense, medo, um humor vertiginoso. E agora surpreendo-vos: Virgílio Castelo, actor e autor português, faz o mesmo, mas com Deus, num romance que têm de ler, Haja Deus, Se Deus Quiser. Deus farta-se e desaparece. Sabem quando? Exactamente no dia em que, falecidíssimo, Fernando Pessoa se apresenta no céu. Livro sério, mas, e será que se pode dizer, de uma ironia celestial.

Não é um romance, mas o historiador militar Fernando Rita, em Heróis Esquecidos da História de Portugal exalta feitos gloriosos, sacrifício e morte no campo de combate de figuras do passado como o besteiro de Atoleiros, o espingardeiro de Toro, e da ainda tão viva guerra de África, como o combatente de Quissonde, em Angola, ou o furriel da estrada maldita, em Moçambique.

Regressam Os Livros Não Se Rendem, com o apoio da Fundação Manuel António Manuel da Mota e da Mota Gestão e Participações. Do filósofo Roger Scruton, o livro que eu gostava que um dia (um dia!) alguém escrevesse sobre Portugal: Inglaterra, Uma Elegia. Nostálgico, sereno, estóico, Scruton enternece-nos com a sua visão do carácter, da cultura, da lei, do governo, da ruralidade, da religião que são próprias dos ingleses: you can’t take England out of the boy. É lindo.

Com o Atlas do Médio Oriente: as raízes da violência, um novíssimo e actualíssimo volume dos Atlas da Guerra e Paz, os leitores, levados pela escrita de Pierre Blanc e Jean-Paul Chagnollaud e pelos mapas concebidos por Claire Levasseur ficam a saber por que razão o mundo está tão perigoso.

E eis um olhar português sobre esse mundo: o economista António Rebelo de Sousa escreveu Da Reforma do Capitalismo, um ensaio que combina teoria económica com antropologia, história e geografia, confrontando-se com outras grandes teses, como as de Thomas Piketty, por exemplo. Quem não quer espreitar o futuro?

Ora, foi no 25 de Abril de 1974 que começou o nosso futuro. E eu atrevo-me a dizer que a Guerra e Paz tem o mais desempoeirado, livre, desabrido e divertido livro para comemorar os 50 anos dessa imensa explosão. Com organização e umas prosas deste vosso fraco escriba (Manuel S. Fonseca, sim senhor) e com excelentíssimas e irreverentíssimas ilustrações do mestre da bd Nuno Saraiva, 25 de Abril: No Princípio Era o Verbo é um livro para se ver, passar a mão pela quadricromia, e recitar página a página em impetuosa gritaria: estão no livro centenas de frases que, em Abril e no PREC, nesse cataclísmico Verão Quente de 1975, se entoaram nas ruas, se escreveram nas paredes, ou decoraram cartazes. De «Cada voto na AOC é uma espinha cravada na garganta do Cunhal» a «Força, força, Companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço», passando por «Abaixo a foice e o martelo, Viva o Black and Decker» ou «Viva a dentadura do proletariado» e ainda «Viva o próximo governo que este já tomou posse», do fanatismo à irrisão, da nobre militância à desbragada anarquia (e lembro o slogan «Anarquia, sim, mas não tanto» que os espantados e despeitados anarcas escreveram então nas paredes de Portugal) este é o livro que nos faz hoje pensar como foi possível, há 50 anos, o Big Bang português! Quem se atreve a não comprar este livro? Ricos de Portugal, comprem o livro nacional! E ricos somos todos. De espírito, pois claro!

Falei de águas de Março. Ora aqui estão dois livros com que queremos regar e acarinhar a nova chancela, a Crisântemo. De chrysanthèmes en chrysanthèmes, já cantava Jacques Brel, e o primeiro crisântemo é da psicóloga e psicoterapeuta Sílvia Coutinho: com O Poder da Relação um livro que talvez nos lembre o que tantas vezes esquecemos, como amar.

Um crisântemo francês para acabar. A polémica Caroline Goldman, doutorada em psicopatologia clínica, convida-nos a ler o seu As Crianças Precisam de Limites (bestseller mundial, pedem-me que acrescente), um livro que faz em fanicos alguns preconceitos da chamada parentalidade positiva. As Crianças Precisam de Limites tem uma missão nobre: aliviar o sofrimento das crianças perdidas e impotentes face ao caos de um mundo sem balizas. E aliviar o sofrimento dos pais, também.

Manuel S. Fonseca, editor

As orelhas dos candidatos

Imaginem que são primeiro-ministro e se passeiam por este jardim

Imagine, caro leitor, que é eleito primeiro-ministro. Imagine que, no pé esquerdo um sapatinho de Pedro Nuno Santos, no pé direito um sapatinho de Luís Montenegro, se passeia extático pelos jardins de São Bento, a pisar as pegadas de Costa, Cavaco, Salazar e da senhora Dona Maria Jesus Caetano Freire, que embalava o ditador: todos os desejos estão ao seu alcance e acorda nesse seu estremecido seio a mais imaginativa das crianças. Foi o que aconteceu a John F. Kennedy quando chegou à Casa Branca.

John estava pela primeira vez sozinho na Sala Oval. E já estou a mentir: tinha ao seu lado o irmão Bob. Julgo mesmo que citaram Camões. Não sei se foi John ou se foi Bob, mas um deles, encantado, exclamou: “Maravilha fatal da nossa idade!”

E vejam, ligaram a um actor, Cary Grant. Podiam ligar a quem quisessem, a Moscovo, ao presidente Mao, a Marilyn, mas ligaram a Cary Grant. Alguém atendeu e disse ao actor: “Está aqui o presidente dos Estados Unidos a querer falar consigo!” Ouçam a cantada voz de Grant: “Em que posso ser-lhe útil, Mr. President?” Do lado da Casa Branca, só se ouviu o mais deslumbrado dos silêncios. Grant insistiu: “Mr. President?” E o miúdo de seis anos que era o coração de John, saiu-lhe pela boca: “Estou aqui com o meu irmão Bob e queríamos falar consigo.” Grant insistiu, pois não, que dissessem, “em que posso ser útil?”. Apanhados em falta, os meninos John e Bob confessaram: “Mr. Grant, só lhe ligámos por uma razão simples: queríamos ouvir a sua voz!”

A voz de Archie, o verdadeiro nome desse inglês de Bristol, filho de um operário e de uma costureira, era a mais bonita voz de Hollywood, ou seja, nesse tempo, do mundo. A entoação era musical, o sotaque era o mais cristalino mid-Atlantic, invenção das classes altas americanas que imitava a mais nobre pronúncia inglesa. Grant foi um expoente desse sotaque. Nascido pobre (e não nobre), abandonado pelo pai aos cuidados da avó, depois da morte da mãe, que o pai lhe disse que estava no céu, tendo Grant descoberto aos 30 anos que o céu era um hospital psiquiátrico, faminto e em fuga para a América aos 16 anos, nada era natural na sua voz, na sua entoação, na musicalidade estudada com que dizia as réplicas nos filmes. A voz de Cary Grant, esse mistério, esse milagre ofuscante que se pode ouvir em “An Affair to Remember” ou no “North by Northwest”, de Hitchcock, é um prodigioso fingimento do que o actor deveras sente.

Não é o caso do sotaque do meu amigo “O Velho” que, não por acaso, é mais novo do que eu. Do Cacuaco a Luanda as cordas vocais de “O Velho” impregnaram-se do ajindungado sotaque de Luanda, o sotaque caluanda, o mais musical dos sotaques angolanos. Há uns anos, no lançamento do nosso “Pequeno Dicionário Caluanda”, “O Velho” e o Zé Ferreira Fernandes (o segundo melhor sotaque a seguir ao Velho) converteram os seus discursos em verdadeiras árias de ópera, como se “O Velho” fosse um barítono e o Zé o tenor de um “Nabucco” cantado entre o Sambizanga e o Marçal, meus musseques de Luanda. Eu mesmo, roído de inveja, ao fim de três imperiais com “O Velho”, como se o avião em que vim de Luanda para Portugal começasse a fazer marcha atrás, redescubro os requebros e as esquindivas do caluandês da minha infância.

E eis o que quis dizer: que é bom ouvir. John e Bob, todos-poderosos, queriam ouvir uma voz. A surdez de Trump e Putin é maiúscula: o canalha não ouve. E o nosso próximo inquilino do palacete de São Bento? Inspeccionem as orelhas dos candidatos. Votem só em quem tenha nos ouvidos um desejo de criança.

Publicado no Jornal de Negócios

Dez dedos e uma sequóia

conheço o sal…

Jorge de Sena comparou um dia a secular grandeza das sequóias com a risível aparência do arbusto que é o pilriteiro. Digo Sena e sinto-me um pilriteiro. Ao daninho arbusto chamam-lhe também cambrulheiro, escalheiro, estrapoeiro. Nomes nada motivadores. Na minha condição de pilriteiro ou estrapoeiro, ignoro o arbusto e ponho os olhos na sequóia.

Em 1984 ou 1985, Bénard da Costa pespegou-me com uma catrefa de caixotes com uns bons milhares de páginas dactilografadas, se alguém ainda lembra o que é uma página dactilografada. Vinham com agrafos, riscadas a lápis azul e lápis vermelho da censura. Eram os textos lidos nas sessões de cinema das 3.ªs Feiras clássicas, por personalidades da cultura portuguesa. Antes de cada filme falava um mestre.

A ordem era converter o imbróglio em livros que permitissem às gerações futuras saber como a intelectualidade dos anos 50 via o cinema. Estavam ali textos de Vitorino Nemésio, Delfim Santos, Vieira de Almeida entre outros.

Só tive olhos para a sequóia chamada Sena. Os textos dele eram um corpo literário e crítico coerente, um quadro comparativo, tão ao gosto de Sena, da relação dos filmes com o seu tempo social e político e com a literatura e o teatro, recorrendo a ousados paralelos com gigantes do passado que nem o cinema podiam adivinhar, de Caldéron a Shakespeare.

E lá fui eu, com a arrogância de pilriteiro, dizer ao Bénard o que ele queria ouvir: devíamos publicar os textos por autores e o primeiro livro tinha de ser o do pasmoso e inenarrável Sena. O Bénard levantou-me ao colo, deu-me o nihil obstat e mandou-me falar à sequóia mãe, Mécia de Sena.

Fui. Bati à porta do 939 Randolph Road, Santa Barbara, na Califórnia. A porta abriu-se e logo pus um pé na casinha japonesa, amplas janelas, sala forrada a livros e discos, onde vivera Sena.

Descobri que Mécia era um dragão no seu castelo, torrencial na conversa, conhecimento avassalador do meio literário, capaz de armar na sua cozinha americana um jantar para dez convivas, enquanto divagava da literatura ao cinema e à ópera.

 Recordo com ternura, ao meu estilo pilriteiro, o pic-nic que ela e Maria de Lurdes Belchior me prepararam numa das missões espanholas que pontuam a estrada de Santa Barbara a São Francisco. Quem comeu na América um pic-nic com ovos verdes e bolinhos de bacalhau? Ora o meu amor a Sena tem razões mais inconfessáveis e eróticas. Vou confessá-las.

A 10 de Junho de 1977, Jorge de Sena discursou na Guarda. Defendeu a imagem de um Camões de amor e tolerância, um Camões que, “tão orgulhosamente português, entenderia todas as independências se fosse em vida o nosso contemporâneo como ele o é na obra que nos legou”, para glória máxima da língua que falamos.

Sena lançava palavras ao vento e ouviam-nas os meus ouvidos e os ouvidos da Antónia, que viria a ser Fonseca. E ali estávamos os dois, num apartamento da Costa da Caparica, olhos semicerrados ao mar de Junho, cada vez mais a contar os dedos de mão na mão, e a dar dez, já antevendo o poema de Sena em que, duas mãos onze dedos, há um inusitado dedo a mais.

Hoje, 47 anos de evidências e exorcismos, a Antónia e eu já podemos dizer, “Conheço o sal que resta em minhas mãos, / como nas praias o perfume fica / quando a maré desceu e se retrai”.

Levanto os olhos a este Sena. É uma sequóia: convida a sentarmo-nos, amar, ler e adormecermos encostados ao seu vasto tronco, como Mécia me quis dizer com o pic-nic nas missões espanholas de El Camino Real. É isto: ou os livros, poemas e romances, nos entram pela vida e corpo dentro ou não são sequóias.

Publicado no Jornal de Negócios

Onde estava eu em Janeiro de 74, antes do 25 de Abril

Publicado no Diário de Notícias, como parte da série criada por Alexandra Tavares Teles com testemunhos sobre os dias que precederam o 25 de Abril de 1974

No dia 6 de Janeiro eu tinha caído mais ou menos de pára-quedas em Lisboa. Já não vinha a Portugal desde bebé – então Metrópole – há 15 anos. Vinha de Angola, onde vivera uma infância felicíssima e uma adolescência de um erotismo tropicalizante. Cheguei a Lisboa com a mesma tanga de Tarzan com que eu em África saltava de liana em liana: o pequeno saguim que eu era estranhou, está claro, o frio, desconhecido e descontente Inverno. Aterrei na Faculdade de Direito, descobrindo que, selva por selva, preferia os meus chimpanzés aos dinossauros que ali encontrei. Os dinossauros davam aulas, os gorilas estavam à porta. Abro uma excepção, havia dois jovens professores, os únicos simpáticos saguins do meu género, que valiam o esforço de sair da cama e dar corda aos sapatinhos da Padre Francisco Álvares – ao lado do Jardim Zoológico, está claro – até à Alameda Universitária. Eram os jovens Marcelo e Jorge, um viria a ser o mais fotografado Presidente do mundo, o outro um desconcertante constitucionalista. O futuro mostraria que eram, aliás, ainda melhores do que eu pensava.

Lisboa, nesse Janeiro de 1974, era uma cidade em que se ouvia, quando a brigada reumática deixava, o Venham Mais Cinco de José Afonso (não me admira que o MFA o tenha escolhido para segunda senha da Revolução, que só não foi porque a Censura o tinha proibido entretanto, tendo o Grândola sido segunda escolha), mas também o Chico e Caetano da Morena de Olhos de Água, e eu, ainda a querer ser desviante e iconoclasta, me inclinava para o Grand Wazoo, de Frank Zappa, e para a intragabilidade do Variations IV, de John Cage (um tipo, aos 20 anos, ou é a rasgar ou então que se lixe lá a vida!). Todos comprados na Opinião.

De dia, a cidade era cinzenta, muito mais vetusta do que o meu professor de Latim, no Salvador Correia, em Luanda. Mas à noite, ó que transformação, da Alga ao Porão da Nau, a cidade era um “lobisomem em Londres”, que nos fazia esquecer os confrontos na faculdade entre o pré-MRPP, que dava pelo flamejante mote Ousar Lutar, Ousar Vencer, e o já escarrado PCP que o sorumbático lema Unidos Venceremos  tão bem revelava.

A 6 de Janeiro, ou talvez uns dias antes, recebi, dentro de um envelope escrito com letra de 3.ª classe, o meu primeiro Avante!  clandestino, em papel-bíblia. O regime iria estremecer, um mês depois, com O Portugal e o Futuro, de Spínola, mas estrebuchou e não caiu com o falhado Golpe das Caldas, a 16 de Março. Pensando que a ditadura era de ferro, meti-me, nesse mês de Março, num avião e voltei a Angola. Ia, e não sabia, para a Independência. Eis como o 25 de Abril mudou a minha vida, coisa que a 6 de Janeiro jamais adivinharia. Jamé!

O terrorismo já vem de longe

O remorso mordia-lhe a grandes dentadas a alma. A cada noite de 24 de Dezembro o cavaleiro Pierre Picot de Limoëlan fechava o seu ajoelhado corpo francês na capelinha do mosteiro da Visitação, na cidade americana de Georgetown, e rezava toda a noite. Martirizava-o a memória do atentado contra Napoleão Bonaparte, a 24 de Dezembro de 1800.

Napoleão jantara cedo. Josefina queria ir à Ópera, assistir a um oratório de Haydn. A mesma Ópera onde, em Outubro, quatro conspiradores jacobinos, que planeavam matá-lo, tinham sido presos. O futuro Imperador, então primeiro cônsul, essa função a que aspiram Montenegro e Pedro Nuno Santos, partiu antes de Josefina, num coche, acompanhado de guarda a cavalo. O cocheiro não estaria certamente bêbado, mas já anteciparia na sua alegre cabeça a Fórmula Um dos séculos a vir, e deu-lhe para ultrapassar os cavalos da guarda.

E agora vejam, a França da sangrenta Revolução de liberdade, igualdade e fraternidade ainda não está pacificada. Um movimento monárquico, os Chouans, continua de erectas armas em brasa: os bretões não são fáceis de sossegar. Limoëlan, a quem a Revolução guilhotinou o pai, é escolhido para eliminar Napoleão. Chega a Paris com dois companheiros, Pierre Saint-Régeant e o veterano François-Joseph Carbon. Compram uma carroça e uma égua. Na carroça, montam um dispositivo que ficou conhecido por “máquina infernal”: um enorme barril que prendem com cintas metálicas, enchendo-o de pólvora, balas e metais. Escolhem a rua de Saint-Nicaise, esquina com a Saint Honoré, de que Carbon se lembra por ter ali enfrentado as tropas de Napoleão. Uma canhonada atingiu-o, deixando-o disforme para o resto da vida: o único espelho em que se quer voltar a ver é o cadáver de Napoleão.

O dispositivo está montado. Limoëlan precisa, agora, que alguém fique a segurar as rédeas da égua. Vê uma miúda, Marianne, de uns 14 anitos. Convence-a, com umas moedas traidoras. Carbon e Saint-Régeant acenderão a mecha ao sinal de Limoëlan.

E eis que, em vez dos cavalos da escolta, Limoëlan vê uma carruagem dar a curva a toda brida. Hesita. Será Napoleão? Já a carruagem passou e agora sim, vem a escolta. Limoëlan dá sinal. Os celerados monárquicos acendem a mecha, e fogem, deixando lá a desgraçada Marianne. Mas já é tarde: a bomba explode como se fosse o fim do mundo, ainda parte vidros na carruagem do imperador e na de Josefina, mas o poder sai indemne. De Marianne, que Limoëlan enganou, o corpo desfez-se: um braço foi parar à cornija de um prédio vizinho. Há nove ou vinte mortos inocentes, as contabilidades dividem-se.

Napoleão não parou. Embalado por um suave Bordeaux (ou seria o Beaujolais nouveau?), acordou de um sonho com a explosão, imaginando-se a ser bombardeado pelos austríacos na batalha de Tagliamento. O grande e delirante Sigmund Freud haveria de analisar, com austríaca pertinência, esse pesadelo imperial. Na Ópera, Napoleão é ovacionado. Não parou, nem voltou atrás para cuidar de mortos e feridos. Guilhotinará os culpados, aproveitando para trinchar o pescoço a muitos adversários inocentes.

Só Limoëlan consegue fugir para a América. Torna-se padre e a imagem de Marianne assombra-o. De joelhos cravados no chão, cabeça curva, podemos ainda ouvi-lo: “Por minha culpa, por minha tão grande culpa!” Bem pode, por séculos e séculos, rogar à Virgem, a todos os santos e a vós irmãos, que tendes a paciência de me ler. Limoëlan morreu aos 58 anos, em Charleston, a cidade que daria, um século depois, nome a uma dança frenética, a dança que Marianne nunca dançou.

Publicado no Jornal de Negócios