David Lynch

Toda a gente sabe que Sailor e Lula são dois seres alados. Aí vão eles pelo céu: levam, um a puxar de cada lado, uma alma. Talvez seja a de David Lynch. A alma de Lynch, se é que é uma alma, é um azulíssimo oceano de humanidade. Voa? Voa.

Morreu David Lynch. Mas como é que viveu? O que se pode esperar de um tipo que nasce em Missoula, Montana, que aos dois anos se muda para Sandpoint, Idaho, a seguir para Spokane, Washington, e logo Durham, North Caroline, ou para Boise, Idaho – e podia continuar nunca mais acabando –, numa peregrinação infindável, nómada, transumante. Pode haver mais liberdade do que essa deambulação cigana?

Fez filmes. Como? O que vestia no plateau? Um casaquinho de pele de cobra?  Seria esse o símbolo da sua personalidade, da sua leve e deliciosamente gaga, mas irreprimível liberdade pessoal?

Há uma orelha perdida no grande jardim que é o cinema do mundo; cães ladram; passam carros de bombeiros; uma voz, esse impossível objecto, canta a cappella Llorando por tu amor num palco de cabaret; um louco respira hélio para uma máscara, olhos postos entre as pernas abertas de uma mulher; um cérebro escorre de um homem amarelo. Desta audácia é que Lynch fez o seu cinema.

Eis o cinema: a bruxa boa diz-nos: «Se tens um autêntico coração selvagem, nunca deixarás de lutar pelos teus sonhos!» E a querida Lula diz a Sailor: «Juro-te, meu amor, tu tens o mais doce dos caralhos. É como se até falasse, quando está dentro de mim. Como se tivesse uma pequenina voz só dele.»

Admiram-se que Sailor corra e salte, de carro em carro, Chevrolets, Cadillacs, Mustangs, Buicks, Chryslers, Dodges, para acabar a cantar Love Me Tender à «skinny woman with breasts that stood up and say “Hello”»?

David Lynch, ser alienígena, que veio como um escuteiro de visita breve à Terra, foi-se embora. Conduz agora um Buick em direcção à Lua.

2 thoughts on “David Lynch”

  1. Que homenagem bonita a quem a merece. David Linch era de facto um ser estranho e alienígena que passou pelo planeta Terra. Que, paradoxo incontornável, rescendia a humanidade. Seja onde for que ande. E mesmo se não andar, fica ad eternum na história do cinema. E, por bem ou por mal, na vida de alguns humanos, os que com ele privaram em directo ou através da tela. Se a passagem neste mundo for uma espécie de missão, parece ter cumprido.

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