
Os soldados, que defenderam na fausta selva o nosso infausto Império Colonial, levavam debaixo da farda, colada ao peito, uma medalhinha da virginal Senhora de Fátima. Agora abram a camisa da farda americana de Gilbert Roland, actor de Hollywood que foi, no ecrã, Cisko Kid. Durante a II Guerra Mundial, Gilbert serviu no Air Corps do exército americano e levava colada ao peito a cuequinha que lhe dera Greta Garbo. Assim, sim, ganham-se guerras!
A Garbo, essa esfinge que a Suécia deu ao mundo, comoveu-se ao saber que Roland se alistara: meteu-o na sua cama, levou-o, presumo, ao nirvana, e deu-lhe no fim, como talismã, o par de delicadas cuecas tombadas nesse húmido plaino abandonado que a morna brisa dos dois bem aquecera. Nunca, está claro, a Gilbert lhe raiou a farda o sangue.
Detectaram vagos ecos de Pessoa por aqui? Não foi acaso, que este vosso cronista não cede a facilitismos culturais sensacionalistas! Pergunta pessoana: quantos heterónimos se escondiam atrás dessa Garbo de cara amarrada e de pau?
Um realizador caixa-de-óculos que muito estimo, Rouben Mamoulian, filmou-a na “Rainha Cristina”. Era uma quase adaptação da peça de Strindberg, nesse tempo em que Hollywood fundia, em inspiradora selvajaria erótica, o acme de duas culturas, a da elite europeia e a de massas americana. A rainha fazia-se passar por homem, beijava na boca uma aia, e acabava apaixonada pelo inimigo, na figura de um nobre espanhol, que começou por ser Laurence Olivier, que a Garbo logo despediu ao ensaiarem o primeiro beijo, trocando-o pelo seu ex-amante John Gilbert. O que interessa é a cena final. A rainha e o espanhol fogem num barco, mas duas setas atingem o amado, que lhe morre nos braços. Cadáver deitado no convés, a câmara fecha-se, em close-up, sobre o rosto da rainha.
“O que devo fazer?” – perguntou a Garbo ao realizador, antes da cena. Não sei se o aconselhou a Virgem de Fátima ou a morna brisa das cuequinhas de Garbo, que Mamoulian também aspirou, mas eis o que ele lhe disse: “Não faças nada, nada de acting, não penses em nada, não pestanejes sequer, nadinha, como se tivesses uma máscara em cima da cara.”
É um dos mais arrebatadores close-ups do cinema: pelo rosto indecifrável de Garbo passa uma procissão de adjectivos e de estados de alma: a amargura da perda, o estoicismo de quem se oferece ao futuro, a serenidade de quem aceita o seu destino e a sua missão. Digam e está lá.
Essa quase heteronímia, atrevo-me a dizer, esquinando leve, levemente, o conceito, é o coração de Greta Garbo. Faça-se a lista dos seus amantes e, ao lado de John Gilbert, de Mamoulian, de Orson Welles, do nosso viril Roland, surge uma lista de mulheres, sendo os seus amores sáficos celebrados em todos os estudos queer. Junto mais um ponto a essa orgia lésbica: os dois papéis que a Garbo mais quereria ter feito no cinema eram, de um lado São Francisco de Assis (com barbas) e, do outro, o Dorian Gray do romance de Oscar Wilde. E sim, a Garbo tem razão, o que ela juntaria de doçura, mistério, beleza e dissipação da beleza, aos dois.
Afronta por afronta, acabemos na cama e com um par de cuecas da Garbo na mão. Fotografada por Cecil Beaton, homossexual retinto e convicto, Garbo descobriu nele o amante perfeito, porventura o único, louva-se Beaton, a dar-lhe rouca e arfante satisfação: “Pelo facto – explica ele – de eu ser inesperadamente violento e ter uma energia desbragada e licenciosa.” Eis a mulher mais bela do mundo: queria estar sozinha, dormiu com homens e mulheres, e só um gay sem freios a levou ao êxtase.
Publicado no Jornal de Negócios
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