Um comunista na Disneylândia

Queriam ver o comunistazinho. Veio Hollywood em peso. “Respeite os leitores, comece pelo principio”, exige Lúcia Crespo, minha editora, e eu travo a fundo. As primeiras coisas, primeiro.

O presidente da América, Eisenhower, convidou Nikita Khrushchev, presidente da gigantesca União Soviética, a visitar a pátria do capitalismo. O redondo Nikita não se limitou a aceitar. Queria viajar pelo país: viria por 15 dias. Siderado, Eisenhower aceitou.

E agora que a minha editora se distraiu, volto já a Hollywood. Era onde Khrushchev mais queria ir. A 20th Century Fox, o estúdio que tinha Marilyn sob contrato, convidou-o. Chegaria a L.A. e almoçaria no Café de Paris, a luxuosa cantina do estúdio. Sei do que falo: almocei lá mais vezes do que Nikita Khruschev, se não me levam a mal a bazófia.

A mim, não veio ninguém ver-me, mas para ver Nikita havia mais de mil candidatos às 400 cadeiras do Café de Paris. Spyros Skouras, o presidente, só autorizou actores e realizadores: não podiam trazer os cônjuges. Entra Nikita e a mulher. Hollywood, de pé, aplaude-os. Com mais cortesia do que veemência. A pequena Liz Taylor subiu para cima de uma cadeira para ver o “funny old guy”. Henry Fonda tem um ouvido atafulhado com um indiscreto auscultador: está o ouvir o relato do jogo de basebol entre os Dodgers e os Giants.

Frank Sinatra e Bob Hope fazem companhia à senhora Khrushchev, Nina. Ela, enternecida também com Gary Cooper, diz-lhes que gostava de visitar a Disneylândia. Dali a pouco são os discursos e um sobressaltado chefe de polícia diz ao embaixador americano que Disneylândia nem pensar! Não garante a segurança. No percurso para o Café de Paris alguém atirara um tomate à limusina do soviético. Sem acertar, embora, mas em campo aberto seria um perigo. Não há segurança, não há visita, lamenta o embaixador, o que os soviéticos ouvem e logo passam a Nikita.

Discursa o anfitrião. O grego Skouras faz o elogio da América. Chegou ali sem um chavo, suou, lutou e é hoje, graças ao sistema de mérito, presidente de uma grande companhia. Khrushchev interrompe-o: “Comecei a trabalhar mal aprendi a andar. Nas minas para capitalistas franceses e alemães, mas com a revolução sou hoje presidente da URSS!” A sala ri. Skouras não desarma: “Sim, mas como eu há milhares de presidentes na América. Quantos presidentes como o senhor tem a URSS?” Ainda a sala não parou de aplaudir, já Khrushchev responde: “Temos 15 países na URSS, cada um tem um presidente como eu. Quantos há na América?”

Vejam Marilyn Monroe deliciada. Foi a primeira vez que chegou a horas ao estúdio. Chegou, não viu ninguém, pensou que se atrasara como sempre e já se tinham ido todos embora. Ouve a conversa amena, cheia de risos e não adivinha que Khrushchev se vai zangar.

“Dizem-me agora que não podemos ir à Disneylândia, que não é seguro. Têm lá rockets nucleares? Há uma epidemia de cólera? Os gangsteres tomaram conta daquilo? Então e os vossos polícias, capazes de levantar um touro pelos cornos, não podem ir lá expulsá-los?”

O desânimo invade a sala. Nina diz a David Niven que é uma frustração: “Como explicaremos isso ao nosso povo?”. Sinatra vira-se para Niven: “David, foda-se a polícia! Diga à velha que nós dois os vamos lá levar esta tarde!”  

Khrushchev acalmou-se. “Ah, fiquei de cabeça quente. A culpa é deste amigo grego, que me picou!” E já os dois, carecas, baixinhos, gordos, dão valentes palmadas nas costas. Khrushchev, um metro e sessenta, 100 quilos, um império na mão, e se com alguma coisa sonhava era ver a Disneylândia.

2 thoughts on “Um comunista na Disneylândia”

  1. O Manuel tem mas é de dizer à sua editora que, mesmo quando começa lá à frente, os seus textos têm muito quid. E como eu sou leitora, deve valer. Suponho.

    Like

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Twitter picture

You are commenting using your Twitter account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.