
Ouçam, ouçam. E como é a voz de Jackie Kennedy, peço que se sentem primeiro. Jackie e John vieram em visita de Estado a França. Jantam com De Gaulle e com André Malraux, o ministro da cultura, nesse sumptuoso clarão que é o Chateau de Versailles. E eis o que Malraux acaba de perguntar à sedutora Kennedy: “O que fazia antes de conhecer o John?’”
Passa um fulgurante segundo, a boca colorida de Jackie abre-se: “Era virgem!” disse ela, com riso e ponto de exclamação.
Nesse fulgurante segundo de virtude, talvez Malraux tenha esquecido a fresca tragédia: poucos dias antes, ao volante de um Alfa-Romeo descapotável, tinham morrido os seus dois filhos, estraçalhando-se contra uma árvore, nas mil curvas da Côte d’Azur. O carro oferecera-o Clara Saint, menina de 23 anos, milionária de origem chilena, noiva de um dos rapazes.
Paris era, nesse fim de Primavera, começo de Verão de 1961, uma cidade invencível. Animava-a um inconcebível amor, uma doçura libertina, um talento que não escolhia pátria. Clara dissera aos irmãos Malraux: “Não vão agora, vão perder os russos do ballet Kirov.” “Viremos a tempo dos Kennedy”, protestaram eles, sem adivinhar que mentiam.
Não sabiam, nem Clara, que os Ballet Kirov trariam uma raridade de que o Ocidente ainda não soletrara o nome: Rudolf Khametovich Nureyev. Era um menino e nem era o bailarino principal, mas em Paris uma alegria vermelha e branca, hipnótica, tomou-lhe conta das coxas, do torso, dos movimentos invacilantes. Clara estava lá nessa noite. Foi com Pierre Cotte, um bailarino francês, aos bastidores. Arrebatada, talvez apaixonada, levou Nureyev para a noite de Paris. O russo escapou-se aos KGB, que vigiavam a companhia, e reconheceu essa galáxia de que lhe falara o seu jovem amante, o bailarino alemão do leste Teja Kremke. Viu as luzes vagabundas, a música sem dono dos indomesticados sons, a contente e desangustiada madrugada. Soube, então, que devia seguir o conselho do amante: ficar no Ocidente.
Nureyev saiu todas as noites e todos os dias, deixando de cara amarrada os bufos do KGB: fez coisas simples, como chorar a ver no cinema o “West Side Story”, rezou na Madeleine, sem se lembrar que era ateu. De Moscovo, vieram ordens para o despacharem: já! Mas o êxito estratosférico de cada noite em Paris recomendou prudência. O Ballet Kirov ia para Londres. No aeroporto de Bourget fariam a diversão, metendo Nureyev no Tupolev para a União Soviética, esse ligeiramente fanado Sol da Terra.
E vejam: os KGB acabam de explicar a Nureyev que Krutschev o quer numa gala especial: Londres, niet! Nureyev esboça um protesto. Reforçam: a mãe de Nureyev está mal e ele tem de a ir ver. Veio ao aeroporto, despedir-se dele, o bailarino francês amigo. Nureyev murmura-lhe um “salva-me”, e acrescenta um “vão mandar-me para a Sibéria”. Cotte telefona a Clara. A libérrima Clara vem de escantilhão. Terá falado com Malraux, que lhe explica como se faz. Os polícias franceses dispõem-se no bar. Nureyev terá de lhes pedir asilo: não podem ser eles a arrancar Nureyev à vigilância dos chuis soviéticos. Clara, a pretexto do último beijo, sussurra o esquema a Nureyev e sai de cena.
O bailarino faz, então, o pas de deux da sua vida, deixa surpreendidos os KGB, e grita, em inglês “I want to stay in France. I want to stay in France”. Franceses e KGB empurram-se, já Nureyev está isolado numa sala. Tem a solidão de um conhaque à frente e 45 minutos para pensar. Escolhe o que se sabe. E penso: aqueles dois KGB talvez nunca mais tenham voltado a uma sala de ballet.
Fantástico! Parece que estou a ver a cena como no filme!
Enviado do meu iPhone
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Olá Adelino, um abraço caluanda.
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Vi o filme e é mais ou menos fiel à sua história.
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Juro que não vi o filme. Mas li uma entrevista da Clara e mais umas coisas sobre a morte do Malraux namorada dela.
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Eu vi o filme, a cena do aeroporto é semelhante ao que conta; para a Sibéria devem ter ido os dois inaptos KGB!
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Sim, os KGB devem ter ido a banhos. Abraço
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