O Verão de 1990 foi quentíssimo.
Estava, Leão, quase a fazer anos, em Julho, e ganhava a vida a escrever. A crítica de cinema cada vez mais me aborrecia de morte. Só me apetecia escrever restos de biografias, páginas cor-de-rosa que revelassem escândalos, amores proibidos. Dei comigo a escarafunchar na vida de Truffaut. E o velho “Expresso”, magnânimo, deu-me duas páginas na revista. Afinal, era Verão.

O romance de Truffaut
Manuel S. Fonseca
As expressões «o cinema de François Truffaut» ou «a vida de François Truffaut» carecem de sentido. O cinema foi a vida dele e Truffaut, tudo o que viveu (consta que foi muito), viveu-o como pura ficção, o que nele quer dizer «como cinema». Em particular, as histórias de amizade e as histórias de amor que a seguir se evocam.
Por exemplo, na primeira longa-metragem, Os 400 Golpes, o cineasta agarrou num rapazinho e fez dele actor, moldando-o até o converter no seu «alter ego». O rapazinho chamava-se Jean-Pierre Léaud e revivia no ecrã o que fora a adolescência de Truffaut.
Uma amizade de ferro
Truffaut não estava sozinho nessa visão romântica que confundia biografia com criação e cinema com vida. Nos «Cahiers», Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette tinham uns pelos outros uma amizade que parecia de ferro. Por exemplo, quando Godard filmou O Acossado – filme-manifesto da «Nouvelle Vague» – na ficha técnica o argumento foi atribuído a Truffaut, e Chabrol aparecia como conselheiro técnico. Nem tudo era mentira, embora nada fosse verdade. Era uma combina de putos rabinos para enganar o produtor. Em cima de cinco histórias tiradas da revista «Detective», Truffaut escrevera pelo seu punho: «Podem servir de base a um argumento.» A tanto se resume, segundo fontes fidedignas, a sua autoria do argumento. A assessoria técnica de Chabrol era igualmente fantasma, mas com esses dois nomes Godard sossegou o produtor desconfiado e já o produtor pôde seduzir um distribuidor que desse o avanço para cobrir o magro orçamento do filme.
É o tipo de cumplicidades de que a história da «Nouvelle Vague» está cheia. É claro que, com a distância – e já passaram mais de 30 anos [agora mais de 60] sobre esses acontecimentos – cai-se na tentação da lenda, apesar de Rohmer ter escrito que «nunca deixaria dizer a ninguém que os 20 anos tinham sido o mais belo momento da minha vida». Esses anos, lembra Rohmer, «foram, se não tristes, pelo menos cinzentos. Quando nos perguntavam: ‘De que é que vivem?’ gostávamos de responder: ‘Nós não vivemos.’ A vida era o ecrã, era o cinema.»
O mesmo vale para as histórias amorosas de cada um. Quando namoraram ou casaram, o cinema teve sempre a última palavra. A vida amorosa de Truffaut, por exemplo, vergou-se mais ao sopro da fêmea do que uma cana de bambu. O que nem sequer é incoerente com o que ele pensava das mulheres: «Ser mulher é já um emprego, do qual Deus é o patrão.»
Truffaut casou cedo e, diziam as más línguas, «casou com a filha do seu pior inimigo». Madeleine era, com efeito, a filha do produtor Ignace Morgenstern. O coração e o cálculo parecem ter-se misturado neste como noutros passos da vida de Truffaut. E a suspeita aumenta se se souber que, pouco depois, o realizador se envolveu, numa relação paralela e duradoura, com outra mulher, Liliane David. Os inimigos acusaram-no de viver uma situação extremamente escabrosa; ele achava-a extremamente pura. Está tudo explicado (ou exorcizado?) num dos seus filmes mais ambiciosos do começo de carreira, Jules e Jim, história de um «amor puro» partilhado por dois rapazes e uma rapariga que vivem juntos, «como a mais natural das coisas», situações «extremamente escabrosas e extremamente puras».

Um amor clandestino
Foi imediatamente a seguir ao sucesso obtido em Cannes, com Os 400 Golpes, que Truffaut conheceu Liliane. O casamento com Madeleine e o sucesso em Cannes – festival a que não poupara ataques desabridos enquanto crítico – abriram a Truffaut as portas que intimamente sempre desejara abrir. É pelo menos o que sugere o seu biógrafo Gilles Cahoreau: «Rejeitado, marginal durante toda a sua infância, ele encontra, em adulto, o refúgio que procurara na respeitabilidade burguesa. É o fenómeno inverso de Godard: Truffaut tinha vontade de entrar no ovo.» A relação com Liliane foi uma forma de preservar, no quarto das traseiras, a marginalidade (ou a clandestinidade) perdida. O romance começou em Saint-Tropez, onde alguém os apresentou. Mas não era a primeira vez que se viam. «Tinha tido ocasião de o encontrar, dias antes, em Cannes», afirma Liliane. «Um amigo comum apresentou-nos. Passámos um quarto de hora com ele, o tempo de beber um café. Não dissemos quase nada, mas passou-se qualquer coisa, uma breve troca de olhares.» Não mencionaram o facto de já se conhecerem. «Foi como um segredo tácito. Eu achava-o amoroso e ele tinha, sobretudo, aquele olhar de que ninguém se esquecia. Apesar de ter os olhos pequeninos…»
Os olhares, exactamente como no cinema. E, exactamente como no cinema, os carros. Truffaut adorava o Ferrari de Roberto Rossellini, como venerava o 4 CV de André Bazin. Não admira que tenha convidado Liliane a regressar a Paris com ele, de carro. Quando chegaram a Paris descobriram que, ainda por cima, eram vizinhos; daí em diante, «por tudo e por nada, ele saía de sua casa, dizia que ia comprar o jornal… e vinha ter comigo», conta Liliane.

Estarei eu a sugerir que Jules e Jim «explica» todo o romance de Truffaut? Nem tanto ao mar… No cinema, Truffaut tentava converter a história de dois homens e uma mulher que viviam juntos toda uma vida, num «filme de amor o mais ‘puro’ possível e isso graças à inocência dos três personagens, à sua integridade moral, à sua ternura e, sobretudo, ao seu pudor, graças ainda à forma de amizade entre as duas personagens masculinas.»
Nem o romance de François-Madeleine-Liliane teve a mesma inocência, nem o cineasta de Jules e Jim deixou passar para o seu filme o «sentimento do impostor» que o assaltava na vida. Truffaut tinha um medo desgraçado de ser «apanhado»: obrigou, e é só um exemplo, Liliane a mudar de casa, para a Rive Gauche, para evitar encontros inoportunos. Mas não tinha só «medo de ser apanhado»; cultivava esse medo: temendo ser descoberto na rua, mandava Liliane caminhar à sua frente, acompanhada por Jean-Pierre Léaud, que lhes servia de pau de cabeleira, enquanto ele vinha atrás, em geral meio escondido por um jornal que fingia ler… Que Truffaut cultivava este sentimento de clandestinidade é tanto mais óbvio quanto sempre se recusou a aceitar que a sua aventura era conhecida e que Madeleine, em particular, soubera de tudo antes do nascimento do seu segundo filho.
Comovente traição
Truffaut bem gostava que Liliane tivesse sido actriz nos seus filmes. Mas o pudor reteve-o. Preferiu metê-la nos filmes dos amigos. Em O Acossado de Godard e em As Boas Mulheres de Chabrol. Quase se arrependeria, no caso de Godard, que era «oblíquo» (disse-o Truffaut) em histórias de mulheres. Godard convidou-a sem meios-termos a ir para a Suíça fazer esqui. Liliane deu-lhe uma nega. Godard insistiu: «Mas Truffaut também foi para a montanha.» «Não é a mesma coisa, respondeu Liliane, ele foi trabalhar.» Dégueulasse, Godard armou-se em personagem de qualquer um dos seus filmes: «A verdade é que ele já não a ama a si. Ele foi com a Marie Dubois.» E pediu asilo em casa dela por três noites, jurando que não tentaria tocar-lhe. Ela deixou-o ficar. Quando se foi embora, agarrou em dois duplos álbuns, um de Mozart, outro de Beethoven, rasgou-os ao meio, e deu metade de cada um a Liliane. Três dias depois, voltou a convidá-la para a Suíça. Liliane – por desafio, diz ela – acabou por ir. Foram de carro como Karina e Belmondo no Pierrot le Fou. «Ele recomeçou a falar de Marie Dubois. Foi chato e sinistro durante toda a viagem.» Na manhã seguinte, Liliane estava pelos cabelos e voltou sozinha para Paris. Contou tudo a Truffaut, mas era como se não lhe estivesse a dizer nada que ele já não soubesse. Quando um dia, em violenta troca epistolar, se zangaram, Truffaut não deixou de lembrar a Godard: «Eu sabia que tinhas tentado seduzir Liliane dizendo-lhe: ‘François já não te ama, está apaixonado por Marie Dubois que entra no seu filme’ e eu achei isso lamentável, mas comovente, sim, porque não, comovente, no limite.»
O romance de Liliane-François-Madeleine não estava feito para acabar bem. Como aliás o fim de Jules e Jim antecipava. E um ano depois de Jules e Jim – filme triste no seu todo e divertido nos pormenores – também o romance de Truffaut acabava, com a separação prosaica das partes. Madeleine partiu para Londres, divorciando-se mais tarde. François Truffaut foi para o Japão. Liliane Dreyfus casou-se. «Só para o irritar» disse ela. E acrescentou: «François foi uma grande paixão na minha vida. E creio que também contei muito para ele, porque, ao longo dos anos, conservou essa espécie de amizade, fidelidade e ciúme a meu respeito. Era um desses homens que verdadeiramente nunca conseguimos deixar.» E de quem é que um homem ou uma mulher se hão de separar se não daqueles que nunca verdadeiramente conseguem deixar.