
Cantora de boleros, mexicana e predadora por opção, Chavela Vargas viveu uma vida desenhada para filme. E o cinema fez-lhe justiça: nos filmes de Almodóvar, que tão bem lhe pilha a música, e num velho documentário que lhe produziu o meu amigo Alvaro Longoria, por exemplo. Não são filmes, são ramos de flores.
Mais tarde, e por gentileza de outro amigo, o António M. Costa, fui ver um novo documentário, Chavela, que duas americanas em ponto de rebuçado lhe dedicaram. Não tenho opinião, por já há algum tempo ter deixado de ter opinião. Tenho só sensações, aliás, uma só sensação que partilho fervorosamente: ficaria toda uma santa noite só para ouvir o que a intempestiva Vargas diz. Ela fala e é como se a palavra fosse paixão, como se um substantivo sofrimento fosse a única qualidade do mundo, verbo da salvação.
A voz de Chavela não tem flores ou desfolhadas doçuras de pétalas – é sempre uma voz de faca e drama. É essa poderosa voz que transfigura o documentário de Daresha Kyi e Catherine Gund, investindo-o permanentemente da surda latência do amor insatisfeito, da raiva do vazio e da solidão, do conflito auto-destrutivo. É uma voz tão plena de amor que se morde a si mesma, com um apetite irresistível pela jugular, soltando um rio macbethiano de sangue, traição e desejo de macabra fusão de vida e morte.
Que voz era a voz de Chavela? Não sei se diga rouca, se diga transgressora. Por muito que goste dela, e gosto tanto, Chavela não é a minha cantora de boleros favorita, mas é a que tem a biografia mais excitante.
Mais homem do que mulher, Chavela vestia calças, poncho vermelho, pistola à cinta. Num tempo em que as mulheres não conjugavam o verbo sair, saía à noite, charuto na boca, com o alcalde de su ciudad y otros amigos pelas mais nocturnas das ruas, emborrachava-se tanto como ele e os outros e disparava, antes ou depois, sobre o que eles disparassem. Terá dormido com mais mulheres do que o alcalde y otros amigos todos juntos o que, mesmo que não seja verdade, também não é uma rematada mentira. Womanizer sem desculpa, foi o que foi.
Fez um tremendo sucesso com as suas rancheras, mas o que a ela me faz voltar e tantas vezes, é a sensibilidade dos boleros.
O êxito fê-la saltar da ciudad para Hollywood, mesmo que no começo só pela pequena quinta que foi Acapulco. Não deixou, por isso, de ser o homem que era, mulher portanto, roubando dos outros homens belas mulheres que nunca quiseram ser homens – logo ela que em pequena nunca tinha brincado com bonecas.
Dizem que beijou a boca fresca de Ava Gardner que a ela (ou ele?) se terá rendido de tiro e queda. Boa pontaria, bem se vê. Já li que foi numa festa em Los Angeles e que Chavela roubou Ava a um bouquet de pretendentes. Chavela conta outra história. Foi em Acapulco, o que este documentário confirma, num imenso bar, e alguém lhe pediu que indicasse o caminho da casa de banho a uma Ava Gardner a cair de bêbeda. Chavela levou-a pela mão e disse-lhe: “Filhinha, agora vais sempre a direito, sem te desviares, até àquela porta e estás no corredor da casa de banho.” Foi homérico ver Ava a fazer uma linha recta, subindo cadeiras e trepando pelas mesas, para não se desviar um milímetro do caminho. Ficaram amigas, como se diz que foi amiga de Elizabeth Taylor.
Frida Kahlo viu-a também. E ouviu-a e sentiu, logo confessando tremores e olhar nublado: “…es erótica. Acaso es un regalo que el cielo me envia” escreveu a pintora em carta descoberta há pouco e que acusam de apócrifa.
Será, mas apócrifa é tudo o que não é a estarrecedora interpretação da canção que a Frida sempre La Chabela dedicou. La llorona que se pode ver e ouvir abaixo.
Chavela tinha 93 anos quando morreu. Continuava a gostar de armas e a dizer que quando se faz o que se gosta se deve fazê-lo a noite inteira.