
Vejam, peço que levantem os olhos e vejam, antes de começarem a ler. Quem corre copiosamente nu pela áleas do Jardim de Allah é Gary Cooper. A patética nudez realça o assombroso espécime que o macho homo sapiens chegou a ser. Daquela corrida nua em diante foi sempre a cair até à decadência destes dias de queixa, culpa e impotência.
Não sabemos para onde corre o descalço e exposto Gary Cooper, o herói de “Adeus às Armas”, se para os braços de Hemingway, se para a convenção do Movimento Europa e Liberdade, desapontando Pacheco Pereira. Sabemos que corre pelas nocturníssimas áleas do Garden of Allah, peculiar hotel de Hollywood.
Congelemos a rutilante nudez de Cooper. Terá sido nesse mesmo dia? Harpo Marx passara a manhã, numa das áleas desse Garden of Allah, a massacrar a sua harpa. Nascera o sol às 5:30 e logo Harpo começara a dedilhar, com a extemporânea veemência de André Ventura, o Prelúdio em Dó Sustenido Menor de Rachmaninov.
Já devia ter dito, mas emendo agora: o Garden of Allah era um hotel de 25 bangalós, com frente para a Sunset Boulevard. Há de dormir aqui o escol de Hollywood, Greta Garbo, Bogart e a Bacall, Marlene, Marilyn, Ava Gardner e Sinatra, Tallulah, Tarzan, Scott Fitzgerald, Orson Welles, Dashiell Hammett. Custa até acreditar que Marcelo não tenha lá dormido também.
Nessa manhã, quem dormia, no bangaló ao lado de Harpo Marx, era o pianista e compositor Rachmaninov. Tocava piano pela noite dentro e Harpo já recalcitrara e estrebuchara na recepção: mudem o russo do piano para léguas de mim.
Não o ouviram. Agarrou, por isso, nos primeiros quatro compassos do Prelúdio e atacou-os, fortíssimo. Ao fim de duas horas já não sentia os dedos, mas repetia, repetia, num abominável incansaço. Estrondo fremente no bangaló ao lado: Rachmaninov batera com os punhos no piano como se quisesse resgatar a insolvente TAP com um cataclismo sonoro. O marxismo de Harpo fora implacável: nesse mesmo dia o russo mudou de bangaló. Harpo não sabia, mas Rachmaninov aborrecia aquele Prelúdio, obra sua que achava menoríssima.
E vejam, Gary Cooper entra com toda a sua natureza no bangaló de Tallulah Bankhead, rouca actriz de Hitchcock, que fez o mais escasso dos filmes, “Lifeboat”, morcela de bravura (o que faço para evitar expressões francesas) toda filmadinha num barco salva-vidas.
Tallulah foi o expoente da tradição de permissivo deleite que a fundadora do Garden of Allah, a actriz do cinema mudo Alla Nazimova, inaugurara. Nazimova fizera no hotel, a que era então a maior piscina do mundo, com a forma do Mar Morto onde nascera. Nessa piscina toda a nudez era estimulada. Nazimova, beleza de desdobrados gostos, consolava-se nos chamados “sewing circles”, a que chamarei, em vez de prosaico nome de “círculos de costura”, os “círculos de ponto cruz”. Nessa linha de orgias sáficas, Tallulah, republicana princesa da libertinagem, cruzou agulhas e croché com Barbra Stanwick e Joan Crawford, o que não a refreou de alvoroçadas expansões com o nuíssimo Cooper ou com Weissmuller, o Tarzan, ao luar da piscina, nesse caso mal chamada Mar Morto.
O Garden of Allah, sem protestos da Unesco, destruíram-no em 1959: foi terraplanado o património de três décadas de nudez, whisky e martinis, delírios orgásticos. Sobrará sempre a imagem da formosa Tallulah, descalça, segura e toda nua, com um gentil macaco empoleirado na cabeça, a abrir a porta, ao moço dos correios que lhe trazia um telegrama. Largou-se a correr, vestido, o moço, dessa mesma porta por onde, nu, entrara Gary Cooper.
Publicado no Jornal de Negócios
Talvez que Rachmaninov e Harpo estivessem a dar música a Tallulah… um mais pianinho, outro apostando no harpejo…
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Um dedilhado hotel, enfim…
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