
O que é a História? Um lenço a que nos assoamos? A esquiva lágrima que um dedo disfarça e limpa? Um pingo de saudade que exibimos, ora com pudor, ora com orgulho?
Só sei que hoje é o dia 25 de Abril. Nesse dia de 1974 eu tinha 20 anos: a esse dia, sem reservas, nem recriminação, entreguei de mão beijada o mundo em que eu vivia. Soube, depressa, que esse meu mundo, a minha Luanda colonial, terminava ali e que, dali em diante, as minhas memórias de infância e de adolescência deixariam de ter espaço-tempo, recobertos por outro tempo, outro espaço, outras sonhos de outros seres humanos.
Esse era o dia que eu queria que chegasse desde os meus 15 anos, com mais madura consciência, desde os meus 17 anos. Perdi muito, mas não lamento nada do que perdi. E talvez não tenha perdido nada, tão viva, tão adolescente continua a ser a memória daqueles dias longínquos, à deriva num tempo e num espaço que já se extinguiu. No dia 25 de Abril de 1974, em Luanda, dia de alegria, de esperança, começaram dois dos anos mais esplêndidos da minha vida, de tanta aventura e de tanta dádiva. Se choro, não é o passado menino e emotivo que choro. Se choro, e já tão pouco ou nada choro, é o presente, que não foi capaz de realizar os dois dedos de felicidade com que sonhei para a minha cidade, nem deixa deslargarem-se os mil risos que deviam encher a noite e a boca do povo de Luanda.
E depois há Portugal. Agora, 47 anos depois, há 45 anos a ser português de Portugal, o que eu queria é que o 25 de Abril, neste pedaço de Europa debruçado sobre o mar, não tivesse importância nenhuma. Não ter o 25 de Abril importância nenhuma quereria dizer que a nossa forma de vida em democracia, as nossas formas sociais e económicas, eram adultas e inteiramente desenvolvidas, quereria dizer que já vivíamos num presente com futuro.
Do que eu gosto no 25 de Abril é da porta aberta, dessa promessa de horizonte a perder de vista para o futuro. Do que eu gosto no 25 de Abril é do passado que ele erradicou, repressivo, inquisitorial, de caxias e peniches feito.
O 25 de Abril livrou-nos desse passado, como quem se livra de todo mal, ámen. Do que eu não gosto no 25 de Abril é dos seus donos de Verão Quente, repressivos, inquisitoriais, tão inchados de superioridade moral e ideológica que teceriam outros aljubes se fossem eles a mandar. O mal que alguns donos do 25 de Abril fizeram ao 25 de Abril.
O que cumpriria o 25 de Abril era ele não ter importância nenhuma, toda a nossa energia posta em vivermos com gozo o presente, sabendo que Portugal era um país rico, criativo, a transpirar ciência e artes: isso sim, deviam ser as conquistas de Abril. À sombra do 25 de Abril nasceram cardos que decidem quem vai ou não vai na procissão: nem o 25 de Abril nos livrou desse mal, ámen.
Em 25 de Abril de 74 eu tinha 27 anos e era militar na Guiné-Bissau; gostava de ter estado em Lisboa para participar de armas na mão no dia “inteiro e limpo” que eu desejava desde 67 no âmbito das lutas académicas contra o Estado Novo; não foi possível, outros o fizeram por mim.
LikeLike
Fizeram-no bem, caro Albertino.
LikeLike
Mais uma achega; conheci o Salgueiro Maia em Bissau, em 1973, em vésperas dele regressar a Portugal com a sua Companhia de Cavalaria; mal sabia eu em que altos voos ele estava embrenhado, que o haveriam de guindar a um lugar na História, como herói acidental! Longa vida ao 25 Abril!
LikeLike
Longa vida ao 25 de Abril de Salgueiro Maia
LikeLike