
Atormentam-me as injustiças. Sobretudo se lhes dou involuntário acolhimento, uma vez que comprovadamente sou pura bondade, mesmo mais do que os corações de compota que são os Fransciscos, o de Assis e o que agora está em Roma, se me desculpam gracinha. Para injustiças já bem basta o que eu disse da burguesia no meu orgástico, porém precoce, período anarco-maoista dos 20 anos e que, 40 anos de gabinetes calafetados, uns cargos assim-assim e um Audi de caixa automática, ainda não conseguiram redimir e apagar.
Enfim, a vida arma a todos as mais ínvias armadilhas, mas ter eu proclamado que o penteado à Lulu é obra e graça de Louise Brooks, quando afinal foi Colleen Moore que no cinema o inventou e lhe deu fama, pôs-me num magoado estado de espírito dostoievskiano.
A famosa franja desenhou uma nítida linha de horizonte sobre mil e uma lindas testas de mulheres, horizonte que era mais do que escolha cosmética e já lá vou. A esse penteado de franja geométrica, cabelos cortados direitos onde a cabeça acaba e o pescoço começa, a língua inglesa chamou-lhe bob cut, a francesa coupe au carré, a italiana caschetto ou acconciatura, a portuguesa um corte à Beatriz Costa, o que muito facilita a compreensão até a um habitante da Tasmânia.
Ora o problema não é linguístico, é só de reposição da verdade histórica. Colleen Moore foi actriz porque o pai fundador do cinema, D.W. Griffith, devia um favor ao tio dela. O tio facilitara, digamos assim, a passagem do controverso “Birth of a Nation” na censura. Griffith pagou: pôs a miúda a fazer perninhas nos filmes de Tom Mix. Não foram as pernas, mas sim a cabeça de Colleen a levá-la ao esplendor e luz perpétua. Para ser a protagonista de “Flaming Youth”, Collen fez um bob cut. A famosa franja era, naqueles anos 20, uma afirmação de desdém pela mortal chatice das convenções sociais. Usavam-na as rebeldes flappers, com muito rouge na cara, vestidos de terna é a noite e decotes de “é este o lado do paraíso”. Cheira a F. Scott Fitzgerald? Cheira, pois. Foi ele, o autor dos livros cujos títulos parafraseei, que conferiu dignidade literária a essa esfuziante abertura ao pecado: “Fui a faísca que acendeu esta juventude em chamas. Colleen foi a tocha. Que coisinhas pequenas nós somos para ter provocado tamanho turbilhão.” Ou não fossem, Fitzgerald, as coisinhas pequenas o sal da terra!
Tenho a certeza que minha mãe ignorava os alicerces(e o resto) da franja, ou não andaria de tesoura em punho a pôr as filhas todas nesse lindo estado de rebeldia social desde a mais tenra infância. Mas, pode crer, Manuel, que lhe sou eternamente grata – para lá dos esplendores da luz perpétua e tudo – por me desvendar a existência originária de tal penteado. Abusei do corte à Beatriz Costa o tal que toda a gente sabe o que é no aconchego do mundo português.
Muito agradecida
LikeLike
Quem diria, Bea, que eu ia mexer com o seu passado capilar 🙂
LikeLike