
Do roubo é que nasce todo o bem. Entendam-me: não falo do rapinanço, golpada, abafação ou esbulho. Falo do roubo altruísta, do roubo engordado pelo robusto valor calórico dos mais altos ideais.
Vejam o semblante de espanto de Paris ao fim da tarde de 22 de Agosto de 1911. Nessa manhã, um pintor viera ao Louvre para reproduzir a “Mona Lisa”, pondo-se nos sapatinhos de cetim de Leonardo Da Vinci. Estava lá a parede, mas a “Mona Lisa” fora, parece, a banhos. O pintor voltou à tarde: só lá estava a mesma envergonhada parede, quatro pregos inúteis. O museu soube então que a “Mona Lisa” tinha desaparecido.
Roubara-a um italiano, pintor de paredes e pedreiro, vago retratista. Por patriotismo. Vingava a apropriação cultural de que culpava Napoleão, invasor da pátria de Verdi e Berlusconi. Descolonialista avant la lettre, o italiano, se não punha um pé, punha ao menos a mão no privilégio francês e, roubando a “Mona Lisa”, redimia a avassaladora opressão que exsudava do mal lavado imperador corso e dos seus exércitos, herdeiros da astúcia de Asterix e da força bruta de Obélix.
E eis que Paris e o Louvre, com imperial arrogância napoleónica, nem sequer olham para o pequeno italiano. Preferem acusar um poeta, Guillaume Apollinaire, autor do intocável romance “As Onze Mil Vergas”, lembrando eu os mais dados ao artesanato que o termo “verga” é aqui usado num sentido que só de forma muito remota se aplica à cestaria.
Ora, não bastando arrastar um poeta pelo Sena da amargura, logo é também acusado o andaluz Pablo Picasso. E vejam, eu que sou um férreo defensor das límpidas artes, tenho de estar de acordo com as opressivas autoridades: Apollinaire e Picasso roubaram! Um secretário de Apollinaire, aproveitando do Louvre as suas certas facilidades e descuidos, trouxera algumas estatuetas fenícias que dera a Apollinaire e que logo o generoso poeta repartiu com Picasso. Ao lerem a notícia do roubo da “Mona Lisa” no Paris-Journal, coração, cabeça e estômago de Apollinaire e Picasso tiveram a mais anti-artística das convulsões. Ungidos pelo amor às eternas artes, resistiram a afogar as estatuetas no Sena, esse estreito riacho que, pingo a pingo, atravessa Paris. Fizeram entrega anónima no correio do Paris-Journal, pedindo a restituição das estatuetas ao Louvre.
Foi a missão secreta de Apollinaire. Logo o apanharam. A minha militante rectidão moral obriga-me a interromper: esse roubo só trouxe bem ao mundo. Não juro que lhes devamos os arrebatamentos eróticos de Apollinaire, mas devemos às gamadíssimas estatuetas fenícias a fealdade maravilhosa das “Demoiselles d’ Avignon”, a assombrosa geometrização do mundo a que em qualquer tasca de Montmarte se passou a chamar cubismo.
Mas onde estava a “Mona Lisa”? Abençoado roubo, está já em Itália. E não consigo calar uma certa exaltação metafísica: o Salon Carré do Louvre, onde se pendurava antes a “Mona Lisa”, encheu-se de admiradores, extáticos, contemplativos do lugar agora vazio da tela de Da Vinci. Alguns deixam flores. Mesmo Franz Kafka, que não se imaginaria num museu, veio, qual metamorfose, deleitar-se com essa ausência: a fama e proveito de que hoje goza “Mona Lisa” não se deve a Da Vinci, deve-se a um ladrão, o italiano Vincenzo Peruggia.
Preso ao tentar vender a tela, o militante e descolonizador Vincenzo só laborou num erro, obviamente insignificante face a tão patriótico desígnio: Napoleão nunca roubou a “Mona Lisa”. Foi Da Vinci que a ofereceu a Francisco I, rei dessa França onde viveu os últimos anos. Ora… minudências!
Publicado no Jornal de Negócios
Quando estive em França fui várias vezes ao Louvre e de duas delas passei para ver a Mona Lisa; não era possível estar parado em frente do quadro como reproduz a fotografia (não será uma cópia!?); era a correr, em bicha pirilau e não se podia se quer analisar o sorriso da criatura, nem tirar fotografias; os chinocas eram tantos a empecilhar o caminho…
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Eu tive mais sorte no Louvre. Ainda vi a Mona Lisa mais pertinho e num tu cá tu lá com ela que quase a convidei a vir jantar, amigo Albertino.
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