Mudar: de coisa em coisa

Sumbe 1975

Já começo a ter uma ou duas coisas para contar. Vi uma nesga de mundo, saí à rua dois ou três dias. Aconteceram coisas. E houve mesmo coisas que mudaram. Algumas coisas mudaram mesmo muito. Lembro-me de algumas. Hoje trago-vos três dessas coisas que eram de uma certa maneira quando eu nasci e que, hoje, são de outra maneira, para não dizer que são outra coisa. Vamos então, sem maneiras, à coisa.

O regresso triunfal da biografia

Era um género imprestável. Pior, com o triunfo do texto e o apagamento do autor os estudos literários espezinharam o interesse e o valor da biografia – o autor, como o homem ou como Deus, estava morto, e o texto, numa miraculosa autogénese, escrevia-se a si mesmo!

Em História, das ameias dos estudos estruturalistas, levantava-se bem alto o estandarte do sistema – os sistemas de poder, os sistemas sociais, os sistemas económicos, os sistemas de propriedade ou até alimentares. Mencionar a biografia era o retorno do recalcado, o retorno de uma ideia de história vergonhosamente centrada em heróis, reis ou santos.

A longa noite da repressão da biografia acabou. Hoje, a explosão da biografia reintroduz a emoção nos romances e nos poemas – não é indiferente que Shakespeare tenha conhecido o Hamlet do seu contemporâneo Thomas Kyd ou que a abundância de fantasmas, vingança e loucura, que tanto o inspiraram, tenha sido colhida na The Spanish Tragedie or Hironimo is mad again exuberante tragédia do mesmo Kyd, revista por Ben Johnson. E as majestosas biografias como a de Ian Kershaw sobre Hitler, o que Robert Conquest escreveu sobre Estaline, a que Gilbert dedicou a Churchill, a de Salazar por Filipe Ribeiro de Meneses, a de São Luis, que Jacques Le Goff escreveu,  refazem a História, a forma como os nossos olhos tombam sobre a História.

O muro

Tinha acabado de fazer oito anos quando os soviéticos e os alemães do Leste começaram a construir os 155 quilómetros de muro com que transformaram Berlim Ocidental numa ilha encarcerada em cimento. Fui lá nos anos 80, Berlim Ocidental era a esquizofrenia em forma de cidade: uma vida nocturna de uma liberdade e criatividade ímpares na Europa e uma claustrofobia de angústia e chumbo. Do outro lado, a Leste, o medo subliminarmente atravessado pelo fio de sonho da fuga.

A pressão, esforço e impulso de João Paulo II, Thatcher e Reagan, que culminaram no famoso discurso “Mr. Gorbachev, tear down this Wall”, criaram o clima político favorável à mudança. Depois, pelo que hoje podemos ler como uma ironia do destino europeu, os húngaros retiraram as cercas metálicas nas fronteiras com a Áustria e os alemães do Leste vieram desembestados, aproveitando para fugir. O regime comunista alemão fechou ainda tudo o que podia fechar, mas o insustentável peso da repressão empurrou multidões de alemães orientais para os checkpoints e para o muro. Como pica-paus picaram, partiram e destruíram o cimento da vergonha. Foi um mar de liberdade a juntar outra vez a cidade dividida. Maré alta, maré alta.

O colonialismo caiu na lama

A minha infância e adolescência são coloniais. Vivi num mundo admirável de inocência e crueldade. Cedo soube das diferenças sociais, que o factor rácico evidenciava com brutalidade. Era um mundo de contradições – um encontro maravilhoso de culturas na minha cabeça e no meu corpo – um mundo de morte política anunciada. Demorou, desde que cheguei a Luanda, 18 anos. E um dia, com o fim da já penosa ditadura marcelista, capitães e chaimites na rua, a liberdade dos portugueses, no dia 25 de Abril, desencadeou o processo que levou à independência de Angola. O dia 11 de Novembro de 1975 vivi-o no Sumbe, com o povo e as tropas do MPLA, em recuo para Luanda perante a cavalgada da Task Force Zulu sul-africana.

Tudo o que se passou depois é História, uma guerra civil sangrenta, dilaceradas convulsões que levaram a prisões, torturas e mortes como nunca Angola vivera. Mas esse dia, essa ideia arrepiante de ver uma nação nascer e ver a dignidade de um povo ser soberano, esses olhares de plena conquista da sua humanidade que vi em rapazes e raparigas, homens e mulheres angolanos, essas embargadas vozes que agora podiam dizer com adjectiva e substantiva verdade “esta é a minha terra”, essa hora, na noite de Verão angolano de 11 de Novembro, o mar do Sumbe ali à frente, as metralhadoras a dispararem para o ar o seu fogo de artificio – tão lindas, as tracejantes – essa hora guardo-a como o momento encantado em que eu acertei a hora com o relógio da História.

Estas são três coisas que eu vi mudar. Lembro-me de mais umas trinta coisas. São muitas coisas. Mas, talvez volte. Coisa a coisa.

2 thoughts on “Mudar: de coisa em coisa”

  1. O regresso da biografia, a queda do muro e do colonialismo.Desconhecia que a biografia fosse de modas, pensava-a em todas as épocas; o muro, aquele lá que separava as duas alemanhas, caiu efectivamente, todos vimos na Tv; do colonialismo sei que também caiu, mas há por aí muito espírito colonial.
    Esperamos mais coisas. E que não caiam todas ao mesmo tempo ainda assim não haja um tremor de terra, Cruzes, credo.

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