Esta é a varanda em que recebo as visitas dos amigos. Quem visita a Página Negra já está careca de saber: entra-se pela porta da cozinha e, um copo em cima da mesa, conversa-se ao ar livre, na varanda. Mesmo no Inverno, esta varanda é um sítio aprazível, sobretudo se tivermos a sorte de apanhar com a visita do Diogo Leote, meu kamba expansivo e genuíno. Nunca sabe é donde é que ele vem – se de um concerto rock ou pop, se de um filme no cinema Ideal, Cinemateca ou Nimas, se de um lançamento avant-garde ou do Estádio da Luz (em liguagem carinhosa, a Catedral).
O ecletismo do Diogo é o ecletismo mais bonito que eu conheço, porque é de amor a tudo. O Diogo tem, em todas as disciplinas da cultura e do espectáculo, mil concubinas. Sussurra-lhes ao ouvido, uma leve carícia no braço nu, um beijo no lóbulo da orelha, a todas trata com tão amorosa gentileza que um tipo fica a roer-se de inveja, um atómo de despeito a pôr-nos a língua em brasa. Eis o Diogo Leote, meu kamba. Dele, até o Pai Natal é amigo.
May the Force Be With Them
Diogo Leote
“Dizem que Rovaniemi na Lapónia é a sua residência oficial”. Estava lançado o mote para a celebração do Natal em família. Não contando com o autonomeado mestre-de-cerimónias (isto embora lhe faltassem atributos para se assumir como o MC que os juniores reclamavam), estavam ali vinte e duas cabeças pensantes, dos seis aos setenta e quatro anos de idade. Os mais jovens, sequiosos de levar à prática os seus instintos competitivos, os graúdos com uma vontade quase envergonhada de pôr à prova supostos conhecimentos adquiridos em toda uma vida adulta de livros, jornais e noticiários. Ou talvez tudo se resumisse à mais elementar das questões existenciais: de um lado, jovens a querem passar por velhos, do outro “cotas” a fazerem de jovens, uns com uma senha de acesso livre a um mundo ainda proibido, outros embebidos num entusiasmo juvenil desamarrado das censuras prévias que a idade se autoimpõe. Todos de igual para igual, unidos na convergência de interesses que permitiram a mediana das idades (aí pelos 30 anos) e um sorteio na organização das equipas orientado pela representatividade das diversas faixas etárias.
“Natal em espanhol, francês e inglês”. Eis que um dos adolescentes, enquanto se engasga com a pronúncia de uma das derivações linguísticas da palavra, toma consciência, rejubilante de euforia, de quão universal pode ser a mensagem das festividades natalícias. Mas não está só. Logo de seguida, “o pai de Luke Skywalker e da Princesa Leia” e “o único na Aldeia gaulesa que não pode tomar a poção mágica” arrancam das mais imberbes das vozes, duas delas no sexto Natal apenas, um orgulhoso “eu sei” que, quase que vou jurar, tingem de uma vergonha não confessada um ou outro dos mais idosos. Segundo consta, até o Pai Natal, lá em cima, já na sua viagem de regresso, terá sido obrigado a travar a fundo a marcha das suas renas para agradecer a todos os que, cá em baixo, continuam a permitir-lhe a sã convivência com os universos de Lucas, Goscinny/Uderzo e Walt Disney.
O jogo prossegue sem que ninguém desarme. Sucedem-se epifanias, abrem-se horizontes, reencontram-se amores perdidos, descobrem-se paixões. À “escritora que ninguém sabe quem é” respondeu um dos machos presentes, certamente inquietado pelo chamamento do mais feminino dos mistérios, com páginas e páginas, logo no dia seguinte, de leitura voraz da Amiga Genial da Senhora Ferrante. Outro, desconsolado por ter não ter dado o devido valor em vida a uma outra senhora de voz sofrida, que “cantou a reabilitação numa casa de vinhos antes de morrer”, adormece nessa noite a ouvir a pobre da Amy Winehouse. Um outro ainda, subitamente alertado para os perigos que espreitam atrás da ignorância crescente que desperta a pergunta “num Estado de Direito, quais são os três poderes sempre separados?”, volta a ler Montesquieu com a sofreguidão de quem teme não poder voltar a fazê-lo. À lembrança do “ano do último campeonato do Sporting”, vê-se escorrer uma lágrima furtiva. Um sopro de alívio faz-se ouvir quando o MC pede à sala que se identifiquem “as 3 instituições da Troika que tomaram conta de Portugal entre 2011 e 2014”. E, ao anúncio do “casal que no cinema estava de olhos bem fechados e que acabou separado”, pressente-se alguém a tremer de nervosismo – logo desfeito pela forma hábil como um sorriso fintou a polémica dissimulada na pergunta seguinte, formulada através de uma expressão tão delicada (estavam crianças a participar e não havia salas de acesso reservado) como “onde podemos ver as pilinhas do Robert em Portugal?”.
As respostas dão lugar a reações desencontradas, ali uma explosão de alegria equiparável a um golo de levantar o estádio, acolá a frustração de uma palavra debaixo da língua que se deixou fugir, mais além um sentimento de injustiça pela álea própria de um jogo que também é de sorte e azar, noutra banda ainda a sensação do dever cumprido, ou de superação de expetativas, de quem sente estar a ser testado por outros. Mas, por mais diversas que sejam as reações, em momento algum, ao longo das cerca de duas horas e meia de jogo, se vislumbra o mais leve sentimento de indiferença ou de apatia, ou se evidencia qualquer sinal de cansaço ou monotonia. A razão para o empolgamento parece bem simples de decifrar: são vinte e três cabeças, dos seis aos setenta e quatro anos de idade, todos unidas por laços de sangue ou afinidade, e imbuídas do mais puro prazer de entretenimento de um quizz.
O mestre-de-cerimónias, no entanto, consegue ver mais do que isso. Num curto vislumbre, vê, ali mesmo, a solução para todas as desavenças familiares e para todas as incompreensões da gap generation, o antídoto para os problemas crónicos do abandono ou desinteresse escolar, numa palavra, o elixir miraculoso para a ausência ou défice de comunicação do mundo moderno. Iluminado pela extraordinária revelação, o mestre-de-cerimónias quer anunciar, primeiro aos presentes, depois ao mundo inteiro, o poder transformador do conhecimento e da palavra. Tem consigo pelo menos vinte e dois apóstolos dispostos a espalhar a boa nova.
Tem? Teria, não fosse o Mestre-Cerimónias ter acordado do sono retemperador que só a noite de Natal é capaz. Acordou para o mundo, hèlas. De um mundo sem apóstolos, sem o Pai Natal e sem os super-heróis que, umas horas antes, no quizz de faz-de-conta familiar, fizeram de vinte e três irmãos, pais, filhos, avó e netos, genros, noras e primos, um universo particular. Ficou a ilusão, cogitou o falso mestre, já sem cerimónia nenhuma. A ilusão do exemplo de motivação e inspiração de um simples jogo de encantar, feito do saber das coisas passadas, da sua marca no presente e, quem sabe, da sua capacidade de influenciar o futuro. Quem sabe no próximo Natal o deixariam voltar a arrastar uns quantos primos no faz-de-conta. E talvez, em anos vindouros, mais e mais primos e famílias o acompanhassem pelo mundo fora. Ou não. A dar ouvidos ao mundo, dizem que cada vez mais perigoso, não é de pôr de lado a possibilidade de a atividade dos mestres-de-cerimónia, assim como a de todos os que os inspiram – escritores, músicos, atores, cineastas, dramaturgos, artistas em geral -, acabar proibida para dar lugar a uma única e universal ficção, com um guião pré-determinado. Uma ficção que, nesses tempos negros que aí virão, se confundirá com a própria verdade. Mas isso é o que se diz por aí. O Mestre-Cerimónias não vai em conversas. Prefere continuar a acreditar no Pai Natal, com pelo menos outras vinte e duas almas. May The Force Be With Them.
Não sei se o número vinte e dois contém poção mágica, mas o certo é que estou disposta a acreditar no mestre de cerimónias como ele acredita no pai natal.
Um bom texto de Diogo Leote. Como sempre.
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