
O que é uma ilha? Qualquer ilha é um círculo de solidão, redonda solidão cercada de mar por todos os lados. Quando ouvimos a palavra ilha sacamos logo do coldre uma pistola que antes de disparar ainda pergunta “o que é que eu levava para uma ilha deserta?” Como se as toneladas de areia e solidão de uma ilha, as palmeiras que o vento finta, pudessem ser humanizadas pela bagagem do náufrago metafísico, bagagem de livros ou filmes, uma música favorita ou um ocioso tabuleiro de xadrez.
A ilha exerce uma suave pressão sobre a cabeça de um homem: quando ele dá conta já não dá conta e só deseja ser um Robinson Crusoé. O que é que eu leria se fosse Robinson Crusoé? Quereria ainda ler as páginas de culpa e redenção de Lord Jim? Leria contos de outras ilhas e de outros mares, contos dos mares do sul de Somerset Maugham? Ou entretinha-me em terra, dedo a dedo e perverso, com uma Lolita de Nabokov? E se eu não era – oh! se era – Robinson para, numa sexta-feira, ler do falecido poeta a Morte sem Mestre!
E os filmes da minha ilha deserta? Eu quereria ver, ilha sobre ilha projectada, a Saga de Anatahan. Revia, outra ilha, fluvial, no Mississipi plantada, a ilha do Mud, a correr pela orla de uma infância que fingiria ser a minha. Ou não via ilha nenhuma e enfiava-me ou fervia (ou fervia e enfiava-me) no apartamento de Marilyn, géiser da ilha de Manhattan em que ela morava em The Seven Year Itch. Mas como é que se projectam filmes numa ilha deserta? Projecta-os de cor, frame a frame, a nossa cabeça, porque uma ilha aperta-nos tanto o crânio que a nossa cabeça escurece e se faz cinema.
Confesso: já tive a minha ilha deserta. A mais deserta das minhas filhas foi a do Mussulo, à frente de Luanda, quando lá voltei, em 86. O filme era o de uma guerra civil de silêncio e agonia. No Mussulo, onde, com ele a mulher, filhas e amigos, me levou o meu avilo Jorge, havia ecos da velha canção, Ressurreição, cantada por Diá Kimuezo e nem uma nota de Coney Island Baby de Tom Waits. O lauto lusitano almoço pediu sesta e dormi na imóvel água tépida entre o Mussulo e a costa — amniótica doçura, a de assim deitado, dormir dentro da água do mar. Acordaram-me os peixes a fazer-me cócegas nos pés. Depois, fui sozinho, linha recta até ao outro lado, o do oceano. A sufocante ilha deserta, um cheiro intenso e bom, de peixe seco e mandioca assada. Um cheiro quente, espesso, cheiro dessa estóica humanidade que nem sabe o que epicurismo seja, dizia-me o que sempre soube, que em nenhuma ilha se está sozinho. Sentei-me com o homem sozinho, um velho pescador. Com a infinita gentileza de um cota, meu mais velho, dizia-me, xé minino. E falámos. Tá mau, nem madeira, nem alcatrão, nesses anos de má guerra só tinha cola, rede e umas raspas com que tapava rachas da canoa de ir à pesca. Não se queixava nem pedia. Dizia só, xé minino, com uma serenidade de Quintus Horatius Flaccus. Como o romano, também este angolano, nobre e independente, fora filho ou neto de escravo liberto. Estava ali sentado, como Horácio em Tibur, uma canoa a sua poesia, a sua casa de campo uma ilha. Uma ilha aperta-se-nos à cabeça como as desesperadas mãos do nosso amor e, sem darmos conta, já somos Robinson Crusoé.
Bela praia sim senhor, ao Mussulo só fui uma vez, quando fui para Angola e em trânsito para Benguela, em Dezembro de 87. Em Benguela também tínhamos belas praias, além da Morena, a Baía Azul maravilhosa de águas azuis turquesa e a mais intimista da Caotinha, além da Baía Farta menos cosmopolita com suas fábricas de caranguejos gigantes, bons para degustar umas Heineken bem fresquinhas.
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Adorei a Baía Azul. Estive lá.
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