Ah, bom Deus, a nostalgia que se me atravessou. Foi há uns quatro ou cinco anos, estava a ver o Tree of Life, do Malick, e não é que no Texas, na small town onde também o filme se passa, irrompe um magnífica carro a despejar nas ruas o DDT da minha infância. Ah, Malick de um raio, que subiste cem metros na minha já tão alta consideração. Explico tudo já a seguir.

Eu já dizia eu. E corria como o Mantorras, essa nostálgica gazela de Catete. Eu corria, ruas de Luanda, entre a Fernando Pessoa, a Alberto Correia e a Almeida Garrett. Às vezes, a perder o fôlego, até ao Largo Cesário Verde. A toponímia é mais mentirosa do que a lua e esses nomes europeus eram nomes de ruas de São Paulo da Assumpção de Loanda, cidade africana que a esquadra brasileira de Salvador Corrêa de Sá e Benevides retirou à mão pirata e holandesa para a devolver à restaurada nacionalidade portuguesa, quando Angola não tinha, ou se julgava que não tinha, nenhuma.
Quando o eu que já era eu corria, eram também outros os fumos do tempo, mas ainda não eram esses os que me faziam correr. Não obstante, o já meu pequenino eu era mesmo pelo fumo que corria. Por nuvens dele como vão ver.
Aqui há atrasado, descobriram-se 750 novos insectos em todo o mundo. Julgo que, naqueles alegres dias dos anos 60, se imaginava existirem alguns 4 milhões de espécies. É, para qualquer espírito decente, uma obscena e múltipla ameaça. Moscas e mosquitos eram sinónimo de doenças, febres altas e palúdicas, malária, tifo, o diabo e delírios a quatro e a mato. Quatro milhões de espécies é muitíssima espécie e, se não se podiam exterminar todas, era legítimo exterminar algumas. Em Luanda, para epifânica alegria do meu tão pequenino eu, exterminava-se a mosquitada com DDT. O DDT, acho que nem seria preciso dizê-lo, é o napalm dos insectos, o cheiro a vitória das manhãs da minha infância.
O DDT vinha num carro que entrava pelos dias de sol incandescente, sem Valquírias imperiais nos altifalantes. Um carro só, com bizarro depósito atrás, anunciado pelos gritos das sentinelas do bairro que nós éramos: “Carro do fumo, carro do fumo!” E o DDT, indiscutido pesticida, saía espesso, em nuvens gloriosas, imaculadas. Enquanto as mães, já armadas em classe média, corriam a fechar as cheirosas casas de alecrim e alfazema, nós, mais lumpen do que pequenino burgueses, tirávamos as camisas e mergulhávamos naquele algodão doce. Bebíamos DDT, respirávamos DDT. O Dicloro-Difenil-Tricloroetano entrava-nos pelos poros, narinas, robustos pulmões, enquanto à nossa volta os inimigos, não sei quantas espécies de insectos voadores, rastejantes, tombavam sem remissão. Morriam. Massacre.
A vitória era certa. Teríamos dado cabo deles, da mosca tsé-tsé, da barata repelente, do mosquito raivoso, se não tivessem, claro, proibido o DDT, o clorobenzeno que valeu o Prémio Nobel da Medicina ao suiço que lhe descobriu as letais qualidades.
Cada mês que passa, inventariam-se (ups!) 750 novos insectos. Calcula-se que daqui a 445 anos esteja fechada e rigorosamente selada a catalogação de todos as espécies inventadas ou por inventar. Serão vários mil milhões de espécies e dominarão o mundo. Proibido o DDT, nada pode deter o triunfo sibilino dos artrópodes. Mas nem o que a convenção de Estocolmo proibiu, nem tão pouco 445 anos de insensata catalogação não insecticida, me podem negar ou roubar o que o “eu que já era eu” experimentou na Luanda de guerras pesticidas: eu inalei, eu cheirei! E tinha o suave e doce cheiro da vitória.

Boa ideia esta de acompanhar os posts com música. Que a mim nada me lembra mas gosto de ouvir.
Do DDT tenho outras memórias. Em comum só mesmo o depósito de insectos mortos. Aquilo era um ar que lhes dava.
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Já vê Bea que a limpar insectos ninguém rivaliza connosco 🙂
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Era sempre um dia diferente – quase dia de festa – quando chegava, ao Cruzeiro, o carro da TIFA. Aquele cheiro agarrava-se a nós e agarrou-se muito mais à minha memória …
Quem haveria de dizer que o fedorento carro do fumo (que tantos insetos matou), faria nascer um post tão simpático.
Obrigada, Manuel.
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De vez em quando, um fumo dispõe bem 🙂
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