Um lugar onde se come

Se chegássemos a cavalo, quem se admiraria? Tudo aquilo cheira a muito antigo e cheira bem. É, está escrito na ementa, «um lugar onde se come». É o Musso & Frank Grill. Fica na Hollywood Boulevard, entra-se e somos recebidos por um pequeno regimento de empregados vestidos com as casacas vermelhas e os laços negros de 1919. Movem-se numa aparente doce lentidão, mesmo se em segundos nos chegam à mesa.

O Musso & Frank é uma lenda nascida com o cinema mudo. Seres pré-históricos como Mary Pickford, Valentino, Greta Garbo, Chaplin vinham aqui almoçar e jantar todos os dias. Além da sala aberta, nas laterais há pequenas cabinas mais reservadas. A 3 era a de Marilyn, a 1 era de Chaplin. Toda a gente, mesmo das cabinas, vê e é vista por toda a gente. Ouvem-se as conversas. Por exemplo: «Foi em minha casa que o Roberto engravidou a Ingrid Bergman.»

E foi num jantar de três horas que David Lynch e Mark Frost ali engravidaram de «Twin Peaks», inventando à mesa os primeiros 18 episódios. Johnny Depp era o pirata que se vinha sentar toda a tarde, ao lado do velhíssimo telefone público, o primeiro telefone público pago de Los Angeles, para onde Lauren Bacall telefonava à procura de Humphrey Bogart. O jovem Depp, sedento de papéis e fama, dava aquele número aos agentes e atendia sempre que o telefone tocava.

E vem da rua, de 1919, um alarido e estrondos. São os cavalos de Chaplin, Fairbanks e Valentino a galope: o último a chegar paga a despesa, os exaltantes cocktails e o célebre fettuccini à Alfredo. A receita, a única no mundo a respeitar o original, trouxeram-na Mary Pickford e Douglas Fairbanks. Jantaram fettuccini no famoso Alfredo, em Roma, e quiseram saber como se fazia, levando a competente nega. Voltaram na noite seguinte e ofereceram a Alfredo uma colher e um garfo em puríssimo ouro, e hoje o Musso & Frank é o guardião fidelíssimo desse fettuccini sumptuoso.

E se nos sentarmos com Chaplin na cabine 1 sabemos a razão da escolha: é a única com janela para a rua, o que o autoriza a ver o cavalo que tantos jantares grátis lhe deu. Já Mick Jaegger e Keith Richards chegam de limusina com uma exigência: tem de ser o velho Sérgio Gonzalez a atendê-los. Sérgio, bem nos seus setenta, só já faz três almoços por semana, mas se os Rolling Stones telefonam a marcar, a gerência chama-o. Para servir quase sempre o mesmo aos Stones: iscas de vitela com cebolada, fritura média, a que juntam puré de batata e ervilhas.

O velho Sérgio lembra-se de um cliente, sempre bem vestido, que o acarinhava com um «Então, paizinho, como está». Era um vendaval de ternura e Sérgio respondia abraçando-o e dando-lhe um beijo na testa. O cliente morreu, veio tudo nos jornais, e Sérgio descobriu que se tratava do afamado gangster Mickey Cohen.

E ouço, na cabine ao lado, um frequentador honorário: «Estava naquela mesa o Gore Vidal, já em cadeira de rodas, ao lado um tipo muito mais novo e nervoso, amante dele. Rebenta uma discussão entre os dois, o gajinho levanta-se, raivoso, e vai à vida. O Gore fica ali pendurado, de cadeira de rodas. Eh pá, fui ter com ele e levei-o eu a casa.»

No Musso & Frank, a ementa conserva os pratos de 1919, uma casa de bifes com sabores internacionais, que ainda tem rim de cordeiro com bacon, sanduíche de língua de vaca ou o germânico sauerbraten. E tem fantasmas: andam por ali em lençóis brancos, Steinbeck, Hemingway, Faulkner, T. S. Eliot, Aldous Huxley, Dorothy Parker. Correm atrás de uma nua Marilyn.

Eu fui lá algumas vezes, nunca a cavalo, mas sentei-me, em 1986, no banquinho vermelho de Steve McQueen ao balcão.

Publicado no Jornal de Negócios, no Weekend das sextas!

O Pacto que começou a guerra

Este ano celebramos os 80 anos do fim da II Guerra Mundial. Um acontecimento escancarou as portas da guerra: o pacto que Hitler e Estaline assinaram, pelas mãos dos seus ministros von Ribbentrop e Molotov.

Uma coisa me espanta: por que razão não há praticamente nenhum livro na edição portuguesa sobre esse Pacto nefando?

Fui tentar saber as razões e escrevi este livro.

Chega às livrarias no próximo dia 25. Mas já está em pré-venda no site da Guerra e Paz Editores: https://shorturl.at/TG2E0

O melhor amigo

Bem sei que a exaltante ideia do «melhor amigo» ganhou um nefando mau nome nos últimos Invernos do nosso descontentamento. Notas de euros a marcar livros e obras em apartamentos em Paris puseram o «melhor amigo» sob suspeita. Autorize-me o leitor, porém, um esforço metafísico para resgatar das trevas cavernosas a angélica figura do amigo. Venham comigo a uma praia do Hawaii.

Ali, na fímbria do mar, estão os cineastas Steven Spielberg e George Lucas. Acreditem ou não, estão de calções, peito ao léu, a rebolarem-se na areia enquanto constroem castelos efémeros. Juntíssimos como só os melhores amigos conseguem estar juntos. Um ano antes, Lucas tinha vindo visitar Spielberg ao Alabama, a um monumental plateau montado nuns abandonados hangares da Força Aérea americana. Filmava-se «Encontros Imediatos do Terceiro Grau». Lucas acabara a rodagem do seu primeiro «Star Wars» e estava tão pessimista e angustiado como André Ventura ao saber dessa coisinha virtuosa e edificante que foi e é «a cena das malas, meu!»

Ao ver a grandeza do cenário onde Spielberg filmava, deu-lhe um abraço e jurou: «Tal como já fizeste com o «Tubarão», este «Encontros Imediatos» vai arrasar. Eu é que estou desgraçado. Ninguém vai ver o meu «Star Wars»!»

Spielberg foi buscá-lo ao chão onde já Lucas jazia, desumilhou-o, e lançou-lhe um desafio: «Bora lá, a uma aposta: das receitas destes nossos filmes, cada um dá ao outro 2,5% do que ganharmos.» Lucas agradeceu, sentiu-se até melhor.

«Encontros Imediatos» teve um êxito notável, com uma receita bruta de 300 milhões de dólares, mas «Star Wars» estreou-se com cifrões galácticos: milhões de espectadores, a receita já nos «billions», logo ali mil e seiscentos milhões de dólares. Os dois amigos fizeram o «acerto de contas» e George passou a Steven um ridículo cheque de 40 milhões de dólares. Ainda hoje, de vez em quando, em Dia de Acção de Graças, Spielberg vê cair no seu modesto mbway mais um milhão e qualquer coisa, resultado do estrondoso falhanço que Lucas augurava a «Star Wars». Eis o que, diria eu, fortalece uma amizade.

E o que queria dizer é que há mesmo entre os cineastas daquela geração, os chamados «movie brats», Steven, George, Scorsese, De Palma e Coppola, uma comunhão acima do sulfuroso ciúme. Todos ajudaram Lucas: Spielberg apresentou-o a John Williams, que compôs a prodigiosa música do filme; Brian De Palma inspirou o texto de abertura de «Star Wars», a cruzar como uma nave o ecrã, de baixo para cima, e encurtou o texto inicial para três parágrafos. E há mais dádivas entre eles: Spielberg filmou, para o «Scarface» de De Palma, a cena de tiroteio com Al Pacino de pulposa metralhadora na mão, no cimo de uma escadaria; Scorsese trocou com Spielberg «A Lista de Schindler» pelo «Cabo do Medo».

E quando cada um deles estreava um filme que passava a ser o filme mais visto de sempre, «Star Wars» para Lucas, o «E.T.» para Spielberg, compravam uma página inteira de publicidade da revista «Variety», com elogios ao amigo de fazer corar uma menina de 15 aninhos.  

Voltemos à praia, ao Hawaii. Steven acabara de se espalhar com o «flop» que foi «1941». Enquanto constroem castelos de areia, George diz a Steven que tem uma ideia para uma trilogia: um arqueólogo aventureiro que se chama Indiana Smith. Mas tem de ser Steven a dirigir os três filmes. Spielberg torce o nariz: «Só se os guiões já estiverem escritos.» Lucas mente: «Estão escritos os três!» Spielberg aceita, mas com uma condição: «O arqueólogo tem de se chamar Indiana Jones.» Castelos de areia numa praia do Hawaii.

Publicado no Weekend / Jornal de Negócios

Linhas de fogo, letras de lume: os livros de Fevereiro

Gostamos da mesma coisa. Agora que faz frio, amanhã quando fizer calor, é nesta almofada que deitamos a nossa cabeça: obrigado por serem amantes de livros.


E aqui estamos, no Inverno que não tem de ser o do nosso descontentamento, na penumbra do lento tempo que passa, olhos na doce proliferação das ervas e das infatigáveis e peregrinas águas, mais um livro na mão. Os meus livros de Fevereiro chegam com linhas de fogo, letras de lume.

Celebraremos os 80 anos do fim da II Guerra Mundial ao longo de 2025. Começamos por onde se deve começar, pelo começo. E o começo foi ditado na escura noite de 23 de Agosto de 1939, quando Hitler e Estaline, nazis e comunistas, assinaram um pacto. Oito dias depois Hitler sangrava a Polónia e logo a seguir os soviéticos retalhavam, braço dado com os nazis, essa nação independente. Porque é que Estaline não disse «não é não» a Hitler? Um livro, de Manuel S. Fonseca (confesso, sou eu), O Pacto Nazi-Soviético, oferece uma narrativa, perguntas, respostas, e todos os documentos, os públicos e os secretos, bem como os discursos de Hitler e de Estaline. Uma conclusão inescapável: esse pacto foi o tapete vermelho para a monstruosa guerra.

Noutro livro, do historiador Claude Quétel, Hitler, Verdades e Lendas, há respostas a 20 perguntas essenciais sobre a figura dantesca que gerou o maior horror do século XX: de onde vinha o seu ódio ao judeu (hoje, de novo, em voga), que vida privada tinha, e se poderia ter sido travada a sua ascensão?

Não é um livro de guerra, mas é de paixões. Na nossa colecção de Atlas Históricos, uma obra que é uma oração: Atlas das Religiões: Paixões identitárias e Questões Geopolíticas, de Frank Tétart: leia e veja, em mais de cem mapas, o nascimento do hinduísmo, judaísmo, cristianismo e do Islão. E como se expandiram e como hoje se misturam com a política, radicalismos e a guerra. Meu Deus, a que deus ou deuses precisaremos de rezar?

E tenho aqui na palma da mão três romances para amenizar, espero eu, a hostil floresta dos conflitos e da guerra. De Machado de Assis, recuperamos o tão irónico e dicotómico, fratricida ou talvez não, Esáu e Jacob. Há 16 anos sem uma nova edição entre nós, pintámos-lhe a capa de amarelo torrada: é boa, mas o miolo, de ressonâncias bíblicas, é muito melhor. 

A Brigada da Culpa, a estreia de Rui Galiza, inventa um Portugal distópico e autocrático tomado por um movimento que impõe a «reparação história» e obriga a que todos e cada um assumam a culpa, a sua tão grande culpa. É ficção, e no entanto cheira aqui a um esturro que anda por aí a passar-nos pelo nariz.

Por fim, de João Nuno Azambuja, vencedor do Prémio UCCLA-Revelação Literária, chega Breviário da Vingança, uma digressão de conspiração, intriga e assassínios na Roma de Tibério, no caldo histórico em que irrompe uma tribo estranha de deserdados da vida: os primeiros cristãos. Aurínia, uma menina de 6 anos, é a chave oculta de uma trama com todas as regras do romance histórico.

Os testemunhos são como as criancinhas: deixem vir a nós todos os testemunhos. No que parecem histórias fugazes acaba sempre por estar o eterno drama humano. Todos ouviram falar de Gisèle Pelicot, a brava mulher que se resgatou do inferno da «culpa da vítima» devolvendo o vitupério ao criminoso, neste caso ao marido que a violou acolitado por um bando cobarde. E Deixei de te Chamar Papá é o testemunho de aço de Caroline Darian, a filha de Gisèle e desse pai tenebroso: não há perdão à face da terra que a faça aceitá-lo, sequer reconhecê-lo. 

Os Labirintos Insondáveis do Suicídio, do jornalista Luís Henriques Antunes, com testemunhos das famílias, dos especialistas e de quem já passou por tentativas de suicídio, responde a esta pergunta: o que leva alguém a matar-se? Ou a esta tão dolorosa: o que sente a família de quem se matou?

Sete anos depois da 1.ª edição, relançamos o testemunho vibrante de Luís Osório, Mãe, Promete-me Que Lês, uma carta à própria mãe, um diálogo de uma franqueza que não teme a mais nua exposição.  E agora, deixem-me contar, e cantar de alegria, o nascimento de uma nova colecção. Chama-se A Minha Estante. É um risco? É. E grande. Começamos com dois livros que são o espelho do que A Minha Estante será sempre: livros que nos respondem à pergunta «o que sabemos sobre isto?» e nos dão informação, conhecimento e síntese, tudo com ciência, elegância e sem violência, contrariando este tempo de triunfo de ignorante desinformação e mil «fake news».  Os livros têm capas de uma tão sóbria claridade que só me apetece dar-lhes beijos. Eis os primeiros dois títulos: História do Japão, de Michel Vié, que nos leva da cidade imperial à renovação Meiji; e As Guerras de Religião, de Nicholas Le Roux, relato das conspirações e massacres entre católicos e protestantes, no século XVI, guerra religiosa que assolou toda a Europa. O melhor é mesmo comprarem uma pequena estante: há mais livros A Minha Estante a chegar nos meses e anos que aí vêm. São os meus onze livros de Fevereiro, para ler enquanto do céu cai a infatigável e persistente chuva.

Já a Rita Fonseca prossegue e persegue a saga dos novos cow-boys. Com Perdida e Atada, de Lyla Sage, a minha filha Rita foi instalar-se no Rancho Rebel Blue para assistir ao ódio à primeira vista da  imparável Teddy e do consciencioso Gus. Já sabem como é que ódios à primeira vista acabam? Não estejam assim tão convencidos, sobretudo se surgirem cavalos, vacas, laços, pasto, e os suede fringe cow-boys jackets, que eu sempre quis usar quando era miúdo, em Luanda, e ia ver filmes ao Miramar. Já não se projectam filmes no Miramar? Então leiam, se faz favor, Perdida e Atada, e ofereçam-me um desses suede fringe cow-boys jackets, que o miúdo que ainda aqui me mora já merece.

Manuel S. Fonseca, editor  

Calças púrpura, balalaica branca

Aqui de calças brancas, mas foi pouco depois desta magnífica celebração em Luanda

Eram para aí umas sete da tarde, e eu nunca vira uma tão faiscante polícia de choque. Deslizava, rumoroso, o que nem sabíamos que seria o último ano da Primavera marcelista; do céu escuro deslargava-se uma nervosa chuvinha miúda. Um frio do caraças, devia ser Janeiro. Eu era, em Lisboa, um parolo africanista de 19 anos, com camisas de cor garridas e umas escandalosas calças púrpuras – o artista antigamente chamado Prince deve ter andado por ali e, juntando a chuva e as minhas calças, composto e cantado então o «Purple Rain».

Ali era o Largo do Rato e aquilo era uma manif proibida. Mais uma com que o passa-palavra do Ousar Lutar, Ousar Vencer, esse homúnculo do futuro MRPP, me arrebanhara, fosse contra a guerra colonial, fosse contra a repressão na faculdade. O que eu nunca vira fora uma polícia de choque tão robusta, o esquadrão tão bem montado, os tão extensos bastões, que logo tiravam a vontade comparativista da ancestral e viril altivez do «meu é maior do que o teu». Eram umas escuríssimas sete da tarde, o alcatrão do Largo do Rato reflectia as luzes da cidade, como mais tarde, em Las Vegas, Coppola imitaria no seu «One From the Heart»: uns cem polícias de choque musculavam o começo da noite.

A minha primeira manif fora na Praça do Chile. Lá íamos, com ar de turistas acidentais, a assobiar «A Banda» do senhor Buarque de olhos azuis, prontos para ver, ouvir e dar passagem. Talvez cantar coisas de amor.

Um operário – um tipo vestido inteirinho de azul, casaco de tecido rude azul, calça grossa azul, as manchas de óleo da oficina ou da poeira da construção, só pode ser um operário – apanhou duas pedras soltas da calçada do passeio que enfiou no largo bolso do casaco. Na Praça, mal chegámos, vimos na Rua Morais Soares, erecto – e talvez a minha vadia memória me atraiçoe, talvez não fosse erecto –, em cima de um jipe, o notório Capitão Maltez. Era o comandante daquilo tudo: estavam à nossa espera.

Gesto tocante: estavam sempre à nossa espera, prontos a prodigalizar-nos vigoroso carinho e um aquecido conforto. Alguém terá gritado a palavra de ordem, duas pedras cruzaram como drones os ares, o que terá deixado vazio o bolso do operário. A prestável polícia varreu em segundos a pequena e frígida Praça do Chile, já eu e os meus amigos corríamos como espectros, a safarmo-nos dos PIDES «undercover», que medravam do chão em todas as manifs. E não é que me espalho, surfando de peito o sujo chão da rua, o que deixou a minha maoista balalaica branca em estado acusatório. Levanto-me e enfio-me numa pastelaria que havia, do lado direito de quem desce a Almirante Reis para o Martim Moniz, entre a Praça do Chile e a Portugália. Peço depressa ao balcão a desgraça diarreica de um rissol e um galão e olho para o lado. Quem, Jesus, Maria, José, é que ali estava? Eh pá, eu conheço este gajo!

A tomar o seu café, esse abençoado filho de Benguela, que dava pelo nome de Rui Jordão e era então – antes da pérfida infidelidade de que nem sob tortura direi uma palavra – a mais maravilhosa gazela do Benfica, ao lado de Eusébio e de Nené. Foi uma visão: a guerra colonial, a PIDE, a insípida e cinzenta ditadura evolaram-se, indo esconder-se na lâmpada de Aladino de onde tinham saído.

O que faria ali o senhor Jordão? Acabou de tomar o café, sim. E creio que me sorriu, espantado com a minha suja balalaica branca. Talvez pensasse no velho ditado popular: «Oi, roupa branca em Janeiro é sinal de pouco dinheiro!»

Fosse como fosse, calças púrpura, balalaica branca, a ditadura, como eu, caiu logo depois na lama.

Publicado no Jornal de Negócios, no tão suave Weekend

O amor de Lynch

Ele fuma. E não, o que explica David Lynch, de “Eraserhead” à série “Twin Peaks, The Return”, não é o tabaco, é a sanita. O posterior de David gosta de sanitas inteligentes. As suas preferidas são as Ove Decors: modo de luz nocturna, o assento deliciosamente aquecido, controle remoto e, oh! meu bom deus, vários módulos de cuidadosa lavagem, que nem um bidé.

Lynch explica: “É a tecnologia moderna a funcionar — numa sanita! Com uma lâmpada de espectacular luz azul-lavanda. Lava-nos. Seca-nos. Faz a coisa toda.

É o que, agora que está morto, Lynch acaba de me dizer. “Olá, David!” E aqui estamos os dois a tomar café. Logo ele que ainda gosta mais de café do que eu. E conto-lhe o quanto lamento que nunca tenha vindo à Vila Alice, o meu bairro colonial de Luanda.

Ouvi alguém jurar que os filmes de Lynch eram a prova provada de que ele denunciara o pesadelo por trás do sonho americano. Mentira, protesto eu. A cabeçorra de Lynch era uma cabeça de criança e na sua delirante cabeça de criança pesadelo e sonho são indistinguíveis.

Do que ele gosta é de subúrbios, por isso teria gostado da Vila Alice e de se ter sentado comigo a enfiar formigas, besouros e gafanhotos no meu frasco de vidro preferido. Ou talvez tivesse ajudado a tirar das minhas costas nuas, agarrando-a com delicadeza, a esponjosa barata que um dia lá foi parar em vôo. Ou a pisar uns moles caracóis negros que preguiçavam no capim em dias de chuva. Está tudo roubado a todas as infâncias de subúrbios, no começo de “Blue Velvet”, nesse relvado que pulula de vida, de mil insectos, esses extraterrestres silenciosos e rastejantes que vigiam o mundo.

Segundo café, terceiro cigarro, e Lynch não se contém: “Somos expelidos do ventre da nossa mãe e a vida começa.” (Na Vila Alice, os termos não eram bem estes, mas adiante.) O cinema de Lynch quer ser um tributo de amor a essa vida povoada de psicopatas, refeições bizarras, assassinos, tanto sexo, bruxas más e canções tão boas. Ora, parafraseando o famoso Cristo, em verdade, em verdade vos digo, cada filme dele começa por uma ideia: “Eu amo a ideia pela ideia e amo o que o cinema pode fazer por essa ideia” reforça Lynch. Já bicas vão quatro, cigarros seis.

Os filmes de Lynch são filmes para detectives. Não me entendam mal: são filmes para toda a gente, porque todas as pessoas têm em geral bom espírito detectivesco, todos gostamos de investigar, esmiuçar pistas e descobrir soluções. O David ri-se e conta-me que um dia lhe fizeram este pedido:

– Teoricamente poderia dar-nos chaves para abrir os sentidos ocultos dos seus filmes?
– Teoricamente, sim!
– Quer então fazê-lo agora?
– Não!

E sobre o amor acrescenta: “Amo o cheiro de tabaco. É simples, amo. Odeio o cheiro de maconha.” Lynch não fez drogas: o seu LSD ou crack foi a Meditação Transcendental. A linha estética de Lynch é a humanidade: o amor dele à humanidade é tão grande que quer e gosta de levar a natureza humana ao extremo. Mas recusa fazer arte a partir do sofrimento, ser o artista enrolado na sua própria dor, um visionário obscuro e profético: “Por razões de saúde, estou proibido de pensar nesse tipo de coisas”, explica.

Lynch faz dois tipos de filmes: no final de “Eraserhead”, “Blue Velvet”, “Wild at Heart”, “Twin Peaks”, “Mulholand Drive”, explodimos eufóricos, ou melhor, implodimos numa alegria que só é alegria por ser perplexa. Já no final de “Elephant Man” e de “Straight Story” desfazemo-nos em doçura. Lembro-me: foi Lynch que disse mais ou menos isto. E agora, dez bicas, um maço de cigarros depois, quero é experimentar a sanita dele.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios

Solidão e anti-solidão

Trubin, guarda-redes do Benfica, era o rosto da solidão. No meio da baliza, no Estádio de Leiria, uma fulgurante solidão vestida de amarelo chupava, como um buraco negro, toda a vida em redor, adeptos, bancadas, jogadores, mesmo o mais invisível dos apanha-bolas.

A solidão de Trubin era, por obra e graça de Jorge Luis Borges, poeta argentino cego, tão abominável como abomináveis são espelhos e cópulas ao reproduzirem seres humanos. Trubin não era só a solidão do guarda-redes no momento do penalty: ali, como os espelhos e as cópulas, os penalties repetiam-se em “looping”, numa cíclica, sísifica solidão.

Mas quero é falar da anti-solidão. Um dia, em Luanda, os mais-velhos Ó Cê Marques e Zeka Lima e Cruz disseram aos putos que eu e o Nelinho Ramos éramos: “Bora lá, ver as 6 Horas do Huambo. Bazamos daqui a meia-hora.” Era uma viagem de 600 km e não havia cá auto-estradas, esse palavrão anti-desportivo que ofende o bom condutor. E o Ó Cê Marques conduzia literalmente de luvas, embora o bólide fosse do Zeka: um Seat 850, especial por ter mais 10 cavalos, famoso na Universidade de Luanda pelas suas palas vermelhas.

Conheci, então, a estrada gárrula. Não houve um átimo de segundo, 600 km para lá, 600 km para cá, que uma palavra não enchesse. A tempestuosa nuvem de solidão que vinha dos morros, do mato, do planalto, batia na chaparia e não conseguia furar a nossa barreira de conversas. Seriam os 10 cavalos suplementares do Seat a inspirar os mais velhos e sábios Orlando e Zeka?

Voltaria ao Huambo, para a recruta de cadetes, chegada de remessa de mancebos luandenses, que as mais vivas moças do Huambo saudavam como bem-vinda, cantando em uníssono uma marcha de que não quero recordar mais do que o primeiro erecto e dissoluto verso: “Caralhim, caralhim, caralhim…

Durante três meses, com o Da Guia, meu camarada de recruta, vínhamos cada fim de semana a Luanda: 1200 km em pouco mais de 48 horas, numa imparável Honda 300 (ou CB350?). A mesma estrada, mas agora, de corpo oferecido ao vento e ao sol: um rumoroso rio, o mato, o planalto, os morros entravam-nos por cada poro. A viagem, não sei se de Pégaso ou de Centauro, que é a viagem de moto, exsuda de solidão: os gritos que piloto e pendura possam soltar, são gritos que o infinito come e que nem o norueguês Munch saberia pintar. Nenhuma angústia, apenas e só uma reverberação do grito de um Deus em êxtase com a velocidade humana e o prodigioso equilíbrio do centauro de duas rodas.

E entre a solidão e a anti-solidão, foi a viagem ao Bié, ao Cuíto, já eu e o Nelinho Ramos adultos, sem os mais velhos Orlando e Zeka. Ida e regresso foram 1430 km feitos na fímbria do pós-apocalipse, na guerra civil de 1976. Viajámos num Citroen boca de sapo. E vejam, o Citroen segue, fulgurante, pela estrada despedaçada, pontes caídas, grandes crateras a roubarem o alcatrão. E pergunto: o que viam no Citroen, e nos dois inopinados habitantes, os faplinhas das patrulhas de estrada: os novos argonautas ou a barca de Caronte?

O Nelinho, caluanda avisado e diplomata, municiou-se de «gasosa». A «gasosa» mais apetecida pelas patrulhas das FAPLA na estrada era o tabaco ou a bebida. “Komé camaradas, estamos aqui, na trincheira? Esse carro manda estilo. Dá já aí uma ajuda na nossa solidão!

O Citroen era a anti-solidão. E esses jovens de 20 anos, kalash na mão, granada no cinturão, eram a anticorrupção. O tabaco ou a bebida, na boca deles, eram um anseio de conversa, uma palavra na sua chana de silêncio.

Trubin acaba de defender o sétimo penalty. Sísifo pode, enfim, descansar.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios

David Lynch

Toda a gente sabe que Sailor e Lula são dois seres alados. Aí vão eles pelo céu: levam, um a puxar de cada lado, uma alma. Talvez seja a de David Lynch. A alma de Lynch, se é que é uma alma, é um azulíssimo oceano de humanidade. Voa? Voa.

Morreu David Lynch. Mas como é que viveu? O que se pode esperar de um tipo que nasce em Missoula, Montana, que aos dois anos se muda para Sandpoint, Idaho, a seguir para Spokane, Washington, e logo Durham, North Caroline, ou para Boise, Idaho – e podia continuar nunca mais acabando –, numa peregrinação infindável, nómada, transumante. Pode haver mais liberdade do que essa deambulação cigana?

Fez filmes. Como? O que vestia no plateau? Um casaquinho de pele de cobra?  Seria esse o símbolo da sua personalidade, da sua leve e deliciosamente gaga, mas irreprimível liberdade pessoal?

Há uma orelha perdida no grande jardim que é o cinema do mundo; cães ladram; passam carros de bombeiros; uma voz, esse impossível objecto, canta a cappella Llorando por tu amor num palco de cabaret; um louco respira hélio para uma máscara, olhos postos entre as pernas abertas de uma mulher; um cérebro escorre de um homem amarelo. Desta audácia é que Lynch fez o seu cinema.

Eis o cinema: a bruxa boa diz-nos: «Se tens um autêntico coração selvagem, nunca deixarás de lutar pelos teus sonhos!» E a querida Lula diz a Sailor: «Juro-te, meu amor, tu tens o mais doce dos caralhos. É como se até falasse, quando está dentro de mim. Como se tivesse uma pequenina voz só dele.»

Admiram-se que Sailor corra e salte, de carro em carro, Chevrolets, Cadillacs, Mustangs, Buicks, Chryslers, Dodges, para acabar a cantar Love Me Tender à «skinny woman with breasts that stood up and say “Hello”»?

David Lynch, ser alienígena, que veio como um escuteiro de visita breve à Terra, foi-se embora. Conduz agora um Buick em direcção à Lua.