A infância é uma vírgula

A jovem de Marraquexe tinha, disse ele, as ancas estreitas de um rapazinho e os seios de uma rija pureza pontiaguda. Mas antes que o insondável perfume feminino nos atordoe, deixemos cair nesta crónica a sonâmbula vírgula da infância.

O pequeno Richard nasceu quando Hitler bombardeava Londres. Era um bebé indesejado, cujo nascimento deixaria a mãe solteira em apuros. Um casal, os Blair, ambos estéreis, adoptaram a criança, criando-a a partir das três semanas. Mas os muito progressistas Blair, que já tinham escapado às perseguições de Estaline, na Guerra Civil de Espanha, onde se tinham batido contra os fascistas, tendo descoberto que não há beleza nenhuma em matar seja quem for, não tiveram melhor sorte com Hitler. Uma das bombas voadoras largada pelos pilotos nazis arrasou-lhes o atónito apartamento em Londres. Um pingo de sorte: não estava ninguém nem o pequeno Richard em casa.

Os Blair, como os meus sempre bem informados leitores sabem melhor do que eu, são Eileen e o seu marido Eric, o autor de «1984», livro que assinou, como «A Quinta dos Animais» e outros, com o pseudónimo de George Orwell. Os Blair levaram Richard para o campo, a viver numa solidão pujante de natureza, de sons maduros, águas e ventos selvagens, dando-lhe de bandeja uma infância que gesticulava de felicidade por dentro.

Mas acho que estou a ir depressa demais, sem dar tempo ao mistério e ao assombro. Vejamos, Eileen estava anémica e perdia sangue. Decidiu, contra a vontade dos médicos, fazer mesmo uma histerectomia. Morreu na mesa de operações. O pequeno Richard perdia assim, em menos de um ano a sua segunda mãe. O que faria agora o desengonçado George Orwell, quase um metro e noventa, com a figura destrutiva, absorvente, totalitária, de um pequeníssimo ser que rasteja?

Orwell ficou devastado com a ignóbil morte de Eileen. Sabia quanto ela queria aquele bebé e o que ansiava pela vida no campo, após tanta guerra. Orwell tomou uma decisão: seria praticamente mãe e pai.

E é difícil imaginar um pai melhor do que Orwell: dava liberdade a Richard para correr os campos. Com botas fortes, por causa das cobras. Faziam caminhadas juntos, levava-o a pescar e quase morreram afogados, quando saíram de bote com mais pescadores e foram apanhados num redemoinho que lhes virou o barco, sendo salvos no último minuto, como no cinema. Orwell escreveu a um amigo: «O miúdo adorou cada minuto daquela luta, salvo quando caiu à água.» Uma foca, curiosa como um deus, esteve sempre a observar a quase tragédia dos dois.

Orwell fazia-lhe, como o meu pai me fez, brinquedos em madeira, e Richard estava em cima de uma cadeira a vê-lo construir um quando caiu sobre uma jarra que lhe deixou uma cicatriz para a vida. Numa festa, apanhou o cachimbo do escritor, encheu-o de tabaco, e acendeu-o à frente dos convidados, tentando fumar e acabando enjoado na cama.

Aos cinco anos, Richard vê o pai retrair-se, quase não lhe tocando mais. O pai desaparece e um mês depois sabe pela BBC que morreu de tuberculose George Orwell. Pelo alarme e transtorno da tia, percebe que aquele Orwell é o seu pai Eric e que está morto.

Richard, que se dedicou aos tractores e à agricultura, como Orwell previra, é hoje um defensor da memória do escritor e da relação dele com Eileen, batendo-se contra as tentativas de cancelamento, que apontam aos antepassados terem tido escravos, e que o acusam de mulherengo, como na viagem do casal a Marraquexe, quando, como presente de aniversário, lhe pediu que o deixasse ir para a cama com a jovem do primeiro parágrafo. «Por amor de Deus, força com isso», sussurrou Eileen.

Publicado no Weekend, suplemento das sextas-feiras do Jornal de Negócios

Nascem livros das mãos como lilases da chuva da Primavera

Com a ajuda compassiva de Séneca e de T. S. Eliot deixo-vos a newsletter com os meus livros de Abril

A nossa pequena vida e o nosso pequeno mundo diluem-se como a miragem de uma cidade irreal. Agarremo-nos como náufragos aos cabelos húmidos da ficção. Neste Abril (o mais cruel dos meses, chamou-lhe alguém), escolho como meus livros esse terrível O Jogo Mais Perigoso, que a prosa certeira e implacável de Richard Connell armadilhou entre caçador e presa. É uma caçada, um jogo mortal: mas quem caça e quem é caçado? Junto-lhe o agitado Amok, do prodigioso vidente que foi Stefan Zweig, livro que nos agarra em peso pondo-nos na fímbria do sacrifício e à beira do alto penhasco do suicídio.

São duas perturbantes narrativas a que se junta o angolano José Luís Mendonça, vencedor com mérito do prémio Guerra Junqueiro. Escreveu agora Um Pássaro na Lua, seu segundo romance na Guerra e Paz, história quase sobrenatural de Kahitu, que nasceu com a síndrome de tetra-amélia, sem braços, nem pernas, mas chega a presidente de Angola. Se queremos falar de tolerância, comecemos por este tão mágico romance de Mendonça.

E agora paremos um minuto, para falar com a figura cordial de António Saraiva. Foi sindicalista e acabou patrão dos patrões. Era preciso fazer-lhe a biografia. Pedro T. Neves assina este António Saraiva, Um Certo Perfil, a que o Presidente Ramalho Eanes acrescenta o prefácio. A Jaba Recordati e Nelson Pires foram nossos bravos parceiros neste projecto.

Há vários anos que, com a Sociedade Portuguesa de Autores, editamos a colecção «o fio da memória». Hoje a colecção transfigurou-se. Entrou nela um pequeno livro, Uma Mesa de Pingue-Pongue e um Pequeno Lago, de que é protagonista Gonçalo M. Tavares. Em diálogo com José Jorge Letria, Gonçalo M. Tavares revela-se. Deixa-nos ver que já foi o rapaz que gostava de «treinar futebol à chuva», que gosta de ter frases «viradas do avesso», e que na infância lhe saiu a sorte de ter uma biblioteca «de filme, com dois pisos e uma escadinha». Sim, também se fala de Céline.

A solo, José Jorge Letria oferece aos leitores as Novas Greguerías. É um livro que nos faz rir, desnorteando-nos. Parecem ser só frases loucas, mas há nelas a paixão do paradoxo, do humor e da intempestiva metáfora, como se a realidade tropeçasse na linguagem: «Quando o mar se evaporar os peixes ganharão asas» ou «A girafa diz à pulga: “Conheço a selva muito por alto.”» são apenas dois exemplos da arte retórica deste livro de engenho e arte.

E se a conversa é de lilases e jacintos, venham comigo à China. Shen Fu foi um simples funcionário público no século XIX. Amou a sua mulher. E a beleza batia nos dois como o sol espanca as manhãs de Verão. Escreveu um livro soberbo de graça, com pingos de erotismo e digressões por leves montanhas e por rios distraídos. O Fio Inconstante dos Dias, Memórias de Uma Vida Flutuante é hoje um (belo, muito belo) clássico traduzido em todo o mundo. Faltava Portugal. História de amor, história de sofrimento: uma pérola comovente.

Continuo assim: Jesus, o Jesus histórico, nasceu fora do casamento. Era um bastardo, um «mamzer», por isso um excluído. O historiador e teólogo Daniel Marguerat escreveu Vida e Destino de Jesus de Nazaré. Num ensaio de alta exigência histórica e filosófica, Marguerat investiga, como num romance policial, a vida de Jesus e o essencial da mensagem que dela resulta: a pureza não é o que entra no ser humano, é o que sai dele! É da colecção Os Livros Não Se Rendem, de que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações são os grandes mecenas.

Da novíssima colecção, A Minha Estante, chega a História de Jerusalém, assinado pelo arqueólogo francês Michaël Jasmin. É uma expedição a quatro mil anos de vida dessa cidade que já escutou mil sermões de fogo. Cidade Santa – ou será maldita? – magnética, centro dos três explosivos monoteísmos, este pequeno livro é a sua fascinante antecâmara.

E acabo com o livro de uma filósofa portuguesa, Mafalda Blanc, vencedora do Prémio Pen Club para o ensaio. Da Ontologia à Poética é o segundo livro que escreve para a Guerra e Paz. Centrado na sua paixão por Heidegger, Blanc alarga os seus temas ontológicos e metafísicos a Hegel e a Hölderlin, interrogando-se sobre o Ser, o Sentido, a Poética.

Termino, agora sim. Sei que são estes os meus livros de Abril, mas sei lá bem, como perguntava Séneca «que lugar é este, que reino, que território do mundo? Onde estou? Sob o nascente do sol, ou sob o pólo da Ursa glaciar?» Não sei, sei que leio.

Ora, perdido que esteja, não me esqueci da Euforia, a chancela nova e fresca, que já namora os tops. O que a dona da chancela, a Rita Fonseca, este mês descobriu foi que um casamento de conveniência tem tudo para dar certo. Se acham que não, experimentem ler Fica Comigo, o romance de Sara Cate (steamy, diz ela!). Mete bilionários (tri?) e exibicionismo. Digam lá se não é actual?

Manuel S. Fonseca, editor

A ruiva inabalável

«Essa cabra!» Foi o que, levantando-se de um salto do seu leito de morte, exclamou Walt Disney, quando alguém no hospital mencionou, inadvertido, o nome de Maureen O’Hara.

Ruivíssima, tão ruiva como a minha amiga Helena, Maureen era uma irlandesa incandescente, nascida no bairro de Ranelagh, em Dublin, a 17 de Agosto de 1921. À sua beleza incendiária, Maureen juntava um carácter nobre e inabalável. Disney tinha-a contratado para ser a vedeta de um dos seus filmes e quis quebrar o acordo. Em tribunal, Maureen fê-lo mastigar e engolir cada folha do raio do contrato (desta vez, juro que estou a falar em sentido figurado). E explicou: «Prefiro que o Walt me chame cabra em vez de cobarde, como ele foi.»

Nessa altura, já Maureen era uma veterana batida, mas as suas batalhas nos tribunais americanos começaram cedo e chamo à colação duas, que bem poderiam ter sido contadas a Donald Trump quando infante e a sua educação era uma possibilidade.

Maureen precisou, para trabalhar em Hollywood, de se naturalizar americana. Teria vinte e poucos anos. O juiz mandou-a ler um textinho em que declarava «renunciar à sua lealdade à Grã-Bretanha». Maureen recusou. Exigiu renunciar, sim, à sua lealdade à Irlanda. Ora, os tribunais americanos só reconheciam os irlandeses como ingleses. Ela explicou: «Não tire, Excelência, aos meus filhos o orgulho em terem tido uma mãe irlandesa.» Não vergou e foi a primeira vez que um tribunal americano teve de reconhecer um irlandês como irlandês.

A segunda vez em que um tribunal se lhe rendeu, foi no caso com a revista tablóide Confidential Report. Vinha na primeira página que ela fora apanhada, num cinema, o Chinese Theatre, em Hollywood, a fazer acrobático sexo numa das filas do fundo. E, toque xenófobo; com um latino. Num julgamento célere, em seis semanas, Maureen arrasou o tablóide e provou que à data estava a filmar em Madrid.

A glória artística de Maureen O’Hara passou pelo olhar de John Ford, esse Homero da narrativa cinematográfica, e pelos braços de John Wayne. Durante 20 anos trabalharam juntos e há pelo menos duas obras-primas, «The Quiet Man» e «The Wings of Eagles», que fazem deles uma Santíssima Trindade a merecer vida eterna.

John Wayne não hesitou mesmo em dizer: «Como amigos, a companhia que prefiro é a de homens. Mas há uma excepção: Maureen O’Hara.» Ora, era exactamente com John Wayne, em 1952, estava eu a um ano de nascer, que Maureen se preparava para uma das mais belas cenas que os meus pobres olhos já viram, a do beijo roubado e que se deixa roubar, numa noite de tempestade como só na Irlanda. Ford, era o realizador, e meteu naquilo todo o vento, trovões e relâmpagos que tinha à mão. A cena exigia um impossível controle físico dos actores, o vento a bater-lhes no rosto, nos cabelos. Ford, irritado, gritou para Maureen: «Aguenta-me esses malditos olhos abertos!» Maureen, e foi por isso que lhe louvei o carácter inabalável, respondeu-lhe à letra: «O que é que um careca como tu sabe de cabelos a espetarem-se-lhe nos olhos, meu grande cabrão!»

O pessoal no plateau gelou. Nunca ninguém se dirigira ao Grande Criador de forma tão lírica. Ford, que amava Maureen, desatou-se a rir. Num dos dias seguintes vingou-se. Wayne devia arrastar Maureen pelas ruas da vila para, casamento falhado, a devolver à família. Ford mandou atapetar o chão com a caca de um rebanho de ovelhas. No fim da cena, Maureen fedia que até em Lisboa cheirava. Ford repetiu a cena durante todo o santo dia, não a deixando tomar banho. Disse ela: «O que podia eu fazer, senão rir-me também?»

Publicado no Weekend, suplemento do Jornal de Negócios

A escada para o céu

Claro que já dormi, como os Led Zeppelin, no mesmo hotel de Nova Iorque, o Plaza, mesmo em cima do Central Park. Estive lá com o Emídio Rangel, a expensas de Francisco Pinto Balsemão, the best of the bosses. Não tive foi a sorte de coincidir com os Led Zep. Mas contaram-me que a um canto escuro, ali perto da magnífica sala de chá, o guitarrista Jimmy Page e um David Bowie a cair da tripeça, e de visita, se sentaram siderados a ver num televisor, em loop, um filme curto do inglês Kenneth Anger, uma dúzia de brancas e reluzentes linhas na mesinha de vidro em frente, o chá de pituitária da preferência dos dois.

Ah, o filmezinho que estavam a ver era o «Lucifer Rising», um ritual satânico, com música composta por Bobby Beausoleil, condenado a prisão perpétua, por homicídio ordenado por Charles Manson.

Na Luanda colonial, era tudo diferente. Dois amigos meus de um movimento católico progressista organizaram um festival rock no cinema Avis. A grande vedeta foi o Grupo 5, onde brilhavam o cantor Very Nice e o guitarrista Filipe Mendes (que se haveria de chamar Phil Mendrix). Se não foi em 71, foi em 72, e o Grupo 5, ouvidos os cristianíssmos anseios dos organizadores, aceitou um cachet manso e humilde. Mas vingaram-se: foram-se ao Mini Morris amarelo de um dos meus amigos e escreveram a tinta preta e em desajeitadas letras de quarta classe: «Jesus ama-te». Nas duas laterais do Mini, que assim circulou meses na cidade.

Espécie de apresentador, eu subi ao palco, com uma mensagem contra cultural enfeitada de teologia da libertação. Só consegui fazer duas aparições. Os uivos, as cuspidelas, as piadas de fazer corar a Cicciolina mataram no ovo o que era para ser uma carreira que ofuscaria o Billy Cristal dos Oscars.

E agora que já fui a Luanda, volto à velha e boa América e vejamos. Já dormi no Plaza, sim, mas nunca dormi num hotel – e é que nem sequer consegui ainda descobrir que hotel fosse – onde fizessem o que fizeram ao Jimmy Page, o líder dos Led Zeppelin.

 Entrem comigo no quarto. Vemos que Jimmy está muito mais nu do que quando a mãe o pôs neste mundo. Deitaram-no em cima de um carrinho capaz de trazer ao quarto um jantar gourmet, champanhe, caviar, um refinadíssimo tártaro, um soufflé à l’orange en coque. E vejam, vejam, agora estão a cobrir-lhe a nudez de chantilly – quem nesta santa vida não quereria ter a sua nudez refrescada, adoçada e emulsionada pelo alvo creme que é o chantilly? Já o levam, corpo todo chantilizado, pelo corredor e entram numa suite. Peço desculpa por não vos abrir a porta. Está lá um bando de «groupies»: elas querem lamber Jimmy da cabeça aos pés.

Lamberam, não lamberam? Sei que isto só pode ser um hotel da América profunda. Nem Nova Iorque, nem L.A. se dispõem a tanto. Mas o que quero protestar aqui é a minha mais que terna e exaltada devoção pelos Led Zep. Nunca os lamberia, mas dancei, grunhi e gritei com Whole Lotta Love, Rock and Roll, Black Dog, fiquei preso por finos arames aos dedos de Deus com a única balada deles, o Stairway to Heaven, que fizeram de propósito para encantar George Harrison.

Os Led Zeppelin tinham, como todos os tipos brancos que vêm da pobreza, um deslumbramento com a hipérbole: fizeram explodir os decibéis do rock ´n rol, inventando o hard-rock («cantam notas que só os cães aguentam ouvir», queixavam-se os críticos), e elevaram a decadência do estilo de vida das bandas rock à destruição de quartos, pistolas prontas a disparar num avião ou à orgia em que o moby-dickiano baterista John Bohman morreu com uma overdose de vodka. Compraram a escada para o céu.

Publicado há umas semanas no Weekend, do Jornal de Negócios

O insubtil tio Enver

Há na minha cabeça um alvoroço de garfos e relâmpagos e a culpa é do meu amigo Paulo Nogueira, o mais português dos brasileiros, cuja prosa, qual irreverente magnólia, floriu no extinto O Independente, perfumando a crítica de filmes e livros. O Paulo é, agora, meu autor. Trocamos emails e comovidas mensagens, de cá para lá e de lá para cá desse irredutível oceano Atlântico, que eu quero propor a Trump que se passe a chamar Golfo de Portugal e a que o Paulo insiste em chamar Golfo do Brasil.

Ora o Paulo, na sua última mensagem, desencantou do galinheiro marxista um nome gélido, o do insubtil Enver Hoxha. Não é nome que fervilhe hoje em nenhuma memória. Relembro: foi presidente da Albânia 40 anos, da sua acção resultando a triunfal sociedade comunista que erigiu 750 mil bunkers em 28 mil km2 e atingiu um lugar no pódio na competição entre as nações de todo o mundo, como a terceira mais pobre, com um rendimento mensal por habitante que andaria pelos 10 euros (por mês, por mês, que o povo aguenta!). A paixão pela educação era outro nobre desígnio do tio Enver: depois de ter empalado o clero e as migalhas de aristocracia sobrantes, na louvável tradição estalinista expurgou os seus camaradas, em particular os intelectuais, não querendo no partido ninguém que tivesse mais do que uma boa 4.ª classe.

Tudo isso são minudências susceptíveis das mais equilibristas interpretações, como nos dirá o relativista amoral em que se converte qualquer comunista, quando entalado pelos factos. Para provar que nenhum viés ideológico me enxameia ou impele lembro já o que Jacques Chirac disse, em 1988, na Comissão Europeia, depois de Margaret Tatcher azucrinar a cabeça de toda a gente para ser reembolsada de uns sumarentos milhões de libras. Cuidando que o microfone estava mudo e surdo, mon ami Jacques gera o terror na sala com esta frase cristalina e educativa: «Mas o que quer esta megera? Os meus couilles numa bandeja?» E couilles é mesmo o que redondamente estão a pensar.

Já esse émulo de Mário Soares chamado Mitterrand, que um dia disse «O que seria da francofonia se ninguém falasse francês», foi operado à próstata, com a nação gaulesa de olhos postos na delicadeza do órgão. Volta ao Eliseu e pergunta-lhe uma jornalista se achava que depois de tão fulcral cirurgia se sentia autorizado a permanecer no poder. Miterrand não podia ter sido mais claro: «Não creio que me tenham tirado um lobo cerebral, já que não foi bem desse lado que fui operado!»

Não ficaria em paz com a minha consciência se não trouxesse a este incêndio as labaredas de Silvio Berlusconi. Em 2009, em Abbruzo, um voraz tremor de terra mastigou e engoliu as casas. Silvio veio oferecer conforto à população que dormia a céu aberto ou numas espasmódicas tendas. Disse-lhes Sílvio: «Tentem ver o outro lado e pensem que estão num fim de semana a fazer campismo.»

A irreverência de Sílvio nunca dormia. Era dono de um clube, o AC Monza. Antes de um jogo contra um grande de Itália, a Roma ou a Juve, sei lá, galvanizou os jogadores: «Vocês ganham a estes gajos e no fim do jogo têm um autocarro de putas a encher o balneário.

E volto, querido Paulo, a ti. A ti e à ovovivípara citação do inominável Enver Hoxha, que me lembraste. Foi na mensagem de Ano Novo de 1967 e disse ele aos albaneses: «Povo albanês, tenho duas notícias a dar-vos, uma má, outra boa. A má é que o ano que agora começa vai ser mais duro do que o ano passado. A boa, é que este ano será bem mais fácil do que o próximo.»

Ou não fosse o comunismo uma doutrina sempre em progresso.

Publicado no Weekend, no Jornal de Negócios

Gene Hackman tinha amigos

Agora sei por que não lhe disse «Good morning, Gene». Adivinhei-lhe o tumulto atrás da alheada placidez. Se o tenho interrompido, talvez me tivesse agarrado em peso, mergulhado e afogado na piscina do Sunset Marquis Hotel.

Eu tinha ido a Los Angeles e vim tomar o pequeno-almoço tardio à piscina do hotel. Uma solidão solar, se não houvesse a uma mesa um corpanzil desajeitado, um tipo com uma cara de um metro. Estava ali Gene Hackman. No dia seguinte, voltei à mesma hora. Gene tomava, com aquele vagar que se torna aflitivo em tipos gigantescos, o mesmo pequeno-almoço, emboscado atrás de um jornal.

Tomei, portanto, dois pequenos-almoços com Hackman: só depois soube que ele fora, aos 20 anos, amigo do peito de Dustin Hoffman. Palmilhavam Nova Iorque e lá pelas duas da manhã, Gene largava-o e dizia-lhe: «Tenho mesmo de ir. Preciso.» E ia sozinho a algum tugúrio aberto, provocava quem lá estivesse, só para andar à porrada e desanuviar. Era outro, aliviado, quando voltava.

Precipitei-me. Falei de dois amigos e eram três. O terceiro era Robert Duvall. Dustin e Gene já se conheciam da Califórnia, da escola de teatro que chumbou Gene e o fez zarpar para Nova Iorque. Apaixonou-se, casou-se e aos 28 anos bate-lhe à porta Dustin, com 21. Durante 15 dias pô-lo a dormir no chão da cozinha. Mas era uma violência para a intimidade do casal ter um tipo como Dustin naqueles 30 metros quadrados. Gene agarrou nele e emteu-o em casa de Duvall, que se tornou seu mentor.

Divertiam-se a fingir que eram os Rangers, a mais potente unidade para todos os serviços. Dustin fazia de três Rangers que tinham corrido 10 milhas nus pelo gelo. Robert era o chefe e perguntava-lhe o que sentia: «Nada, chefe, sou um Ranger e um Ranger nada sente.» Robert dava um soco ao segundo Ranger: «Sentiste, soldado?» «Nada, chefe, sou um Ranger!» O terceiro Ranger nu, apresentava-se com uma enorme erecção. Robert, com o sabre, cortava-lhe o pénis erecto. «Sentiste, soldado?» «Nada, esse era o pénis do homem que está atrás de mim!»

Trabalhavam no que lhes aparecesse, em restaurantes, obras, páginas amarelas. Gene fazia mudanças e levava um frigorífico às costas a um 5.ª andar. Chamou Dustin para carregarem caixotes de livros, escadas acima. Ao fim de uma hora, Dustin caiu no chão exausto, num antes a morte que tal sorte. Com Robert, Gene fez uma entrega num prédio de luxo, sujaram a entrada e foram ao camião buscar uma vassoura. Varrido o acidente, mandam a vassoura para as traseiras do camião. A vassoura voa com um dardo e rasga ao meio uma valiosa litografia de Picasso. O dono teve um ataque e, conta Gene, borrou-se nas calças.

Chamem-lhes o que quiserem, mas estes três tipos eram puríssimos e só pensavam no teatro. E em mulheres. Dustin era vendedor no Macy’s e apaixonou-se por uma colega. Pediu ajuda a Gene, que veio vestido de mendigo, a fingir-se meio bêbado, começando a importunar a jovem. Logo Dustin o empurrou, com um «Sai daqui vadio». Gene volta e Dustin bate-lhe, entram pela casa de banho, lá dentro fingem que espatifam tudo, Gene encharca-se no lavatório, saem, Dustin pontapeia-o nas costas e Gene deixa-se cair pelas escadas. A moça horrorizada, foge de Dustin com um «És um bruto, não te quero ver mais».

No mesmo Macy’s, no Natal, Gene trouxe o filho de 18 meses. Dustin sentou-o no balcão e começou a vendê-lo: «Um boneco que anda e fala, só 17 dólares!» Uma mulher gritou: «É para mim! Quero.» Quando o agarrou, ao sentir que era um humano, fugiu espavorida e aos gritos.

Admiram-se que, juntos, tenham tido 19 nomeações e 5 Oscars?

crónica escrita para o Weekend, no Jornal de Negócios, ao saber do passamento de um dos grandes actores de sempre de Hollywood

A primeira vez

Sim, registamos com um sorriso complacente a mão de Emmanuel Macron no braço de Donald Trump e a interrupção a corrigi-lo: “Não, querido Donald, não foram os Estados  Unidos, foi a Europa quem mais ajudou a Ucrânia: 60% de toda a ajuda.

Foge o tempo e amanhã já o mundo se terá esquecido desse reparo de menino espertíssimo ao pai senil.

Do que nunca nos esqueceremos – pelo menos eu – é de uma canção que nos tenha feito estremecer de vida e desejo. “The first time ever I saw your face” é essa canção. Clint Eastwood sentiu, ao ouvi-la, esse estranho tremor cardíaco a que chamamos emoção. Ligou à cantora desconhecida e pediu-lhe a canção para um filme. A cantora, incrédula, desmaiou. Quando acordou, “The first time” era um êxito galáctico. A cantora morreu agora, aos 88 anos. Era a portentosa Roberta Flack: till the end of time my love.

A nádega e a fina agulha

A famosa villa de Nellcôte

Foi uma fuga hiperbólica. Os diabólicos Rolling Stones tinham sido enganados por um austero contabilista e as finanças inglesas queriam trucidá-los. Tal como eu e o meu amigo Rui, em bolandas com a tropa, nos enfiámos clandestinamente no Lobito, nos idos de 74 e 75, os Stones zarparam Mancha abaixo, fintando Sua Majestade, e desaguaram na sumptuosa vivenda Nellcôte, na aldeiazinha que dá pelo delicioso nome de Villefranche-sur-Mer, em plena Côte d’Azur.

Uma velocíssima imoralidade começou a transpirar da mansão de Nellcôte. Era a fortaleza francesa dos Stones. Como se viessem a Fátima, houve uma romaria de Lennons, McCartneys, Ringos, Claptons, mil músicos. Dormia gente pelos cantos. A Keith Richards, que narra sem freios tudo na sua autobiografia, roubaram-lhe nove guitarras. No estúdio gravava-se quando queriam, na truculenta solidão da madrugada. A droga era um fremente atractivo.

Keith conta que lhe dava na heroína com disciplina prussiana: tomava a dose certa e o cavalo era sempre de alto nível. A dose certa e ter droga da boa foi, confessa, a sua salvação: muita gente morre por comer os cogumelos errados. Havia é claro, lembram-se guitarristas e saxofonistas de visita, gente semidespida a passear-se pela casa ou estendendo a nudez sobre um sofá. Eu estou a ver, pelo canto do olho, Nathalie Delon e já lá vou.

Toda a energia de Keith Richards vinha da heroína. Podia ficar três dias sem dormir. No meio do caos de nudez, de visitas fortuitas, de desconexa balbúrdia, Keith Richards saltava o buraco do sono. Conta que o seu respeitável record olímpico foi de nove noites e nove dias, sem que ele soubesse o que era uma cama: em omnivigília como um deus. No Lobito, eu e o meu camarada revolucionário alugámos também um apartamento. Diria: um metafórico apartamento. Era só uma grande sala, com uma mesa redonda à entrada para reuniões revolucionárias, e dois colchões estendidos perto da varanda. Era um apartamento inundado por discussões ideológicas e acções subversivas, um maoismo a rastejar pelo chão de tábuas. Era uma romaria de gente incendiada por amanhãs que cantam, por «luta continua» e «vitória é certa», mesmo uma pistola a rodar sobre a mesa numa tensa e venenosa sessão de crítica e autocrítica.

Sem heroína, o que me salvou foram as paredes. Estavam cobertas de papéis colados, em cada papel uma estrofe, um poema: de Herberto a Ramos Rosa, de Ruy Bello a Rimbaud, de Fiama e Gastão a T.S. Eliot. À centrípeta paisagem maoista, que me ia apertando o tenso coração, responderam os papéis escritos na parede – à máquina, à mão – num movimento centrífugo de resgate: incendiavam-me as noites, punham-me nos dedos ainda tão jovens os cabelos da inocência, a flor lenta de uma rapariga, o seu soneto húmido, se é que eu sei do que estou a falar.

E é aqui que entra Nathalie Delon, que nunca esteve no Lobito, mas se sentou na moto de Bobby Keyes, amigo do peito de Keith Richards, ambos nascidos no mesmo ano. Bobby tinha vindo tocar saxofone com Keith: quando respirou, com os olhos, a boca, as mãos, a poliédrica beleza de Nathalie, foi como se o Anjo do Senhor o tivesse tomado ao colo. Deambularam pelas colinas da Côte d’Azur, beberam tinto, comeram sanduíches de presunto à beira dos bosques, picaram-se com a partilhada fina agulha nas nádegas. Bobby nunca tinha estado tão perto do perigo e da vertigem da transgressão. A sombra de Alain Delon, de guarda-costas inclementes e do tambor de uma pistola transpirava dos ares. E foi Nathalie que o deixou. Com um aviso: nem tentes sequer voltar a falar comigo. Salvou-lhe a vida.

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemente Weekend.