A blasfémia

«Nada é sagrado», sussurra-se nos átrios dos tribunais, para justificar a larga abertura dos tentáculos do humor. «Nada é sagrado», nem anjos, mesmo arcanjos, e é, diz-se, por essa porta escancarada que o humor, o do Ricardo Araújo Pereira ou de Joana Marques, deve passar. Por aí passou tantas vezes o humor do Herman, que só o que era uma anacrónica RTP se lembraria de banir com caricata censura.

E o que é preciso dizer em voz alta – como o diz uma longa tradição filosófica e jurídica – é que a civilização a que pertencemos se funda numa liberdade tão livre que nos autoriza até a mandar Deus, seja ele Maomé ou Jesus, à merda. A civilização que construímos garante o direito à blasfémia. E não garante só esse direito a Joana Marques ou ao Ricardo Araújo Pereira ou ao glorioso Lenny Bruce. O direito à blasfémia é universal: cada um de nós pode rejeitar dogmas religiosos, seja de que religião for, e todas as formas de criação, da poesia ao romance, passando pelo cinema e pintura nos dão sublimes exemplos de magníficos ultrajes.

Ainda temos a memória fresca do sangue derramado, em Paris, por esse jubiloso bando de jornalistas, ilustradores e humoristas do «Charlie Hebdo». Usaram com inteligência e sem freios auto-censórios a sua liberdade de criticar o fanatismo religioso do radicalismo islâmico. Foram cobardemente assassinados. E voltarão a ser assassinados cada vez que, cedendo às anti-sereias do bom senso, da moderação «pois», e do «vá lá» sensato, calarmos o elogio à irreverência, o hino à iconoclastia.

Levantemo-nos – é que não podemos hesitar – como se fosse a cada um de nós que coubesse fazer as alegações finais da defesa do direito à blasfémia. O que está em causa no julgamento de Joana Marques é mais do que Joana: é uma questão de sociedade, a da preservação da liberdade livre de rir e de fazer rir. Ponham um açaimo nessa liberdade e estaremos a profanar a memória que, das cantigas de escárnio e mal dizer às «Dedicácias» de Jorge de Sena, a «O Virgem Negra» de Cesariny, faz a glória da livre criação em Portugal.

Publicado no CM, «A Vida Como Ela Não É»

De olhos postos em quatro letras

Foi quase no último dia da Feira do Livro de Lisboa. Tantos livros e só pensava em mulheres nuas. Ia a descer o Parque Eduardo VII, caminhando em direcção ao brônzeo Marquês de leão à trela, e só pensava, ora vejam, em mulheres nuas. A culpa era do livro de poemas que levava na mão, esse «Bicho Carpinteiro», que as velhas musas ditaram a António Cabrita e que a Bárbara Assis Pacheco ilustrou com treze aguarelas: um escândalo em cores vivas, uma liberdade sexuada, um livro intumescente.

E foi o livro que me arrastou para a mais erótica memória que já me lambeu nessa casa de respeito que é qualquer museu. Aconteceu-me em Viena de Áustria, no Albertina Museum e a exposição era do pintor Egon Schiele.

Conto. Entrei em Egon Schiele, e entrou cada visitante, mesmo o mais pudibundo, pela mulher de saias levantadas. A saia da mulher que Schiele pinta pode ser verde ou vermelha, mesmo azul, mas a paisagem que revela tem sempre as quatro proibidíssimas letras dessa humana fenda que outro pintor disse ser a origem do mundo.

Essa feminina origem do mundo, essa palavra de quatro letras que é a mais impronunciável da nossa língua, abre-se e murcha, oferece-se e nega-se, incha ou seca, em centenas de telas de Schiele. Arrisco: durante um terço da sua vida os olhos de Schiele não fizeram outra coisa que não fosse estarem especados, ou melhor, avidamente enfiados numa juvenil, madura ou exangue e cansada vulva. (Com cinco letras a palavra já se pode dizer!)

Na pintura de Schiele a vulva surge nua, exposta, de um incandescente vermelho. É uma nudez interpretativa, mas impregnada pela tumefacta pulsão da vida: é possível que naquelas veias continue, um século depois, a correr sangue. Percebe-se que estes corpos, por vezes a roçar o grotesco, tenham provocado alguns amargos de boca e esgazeado os olhos dos austríacos que os viram no começo do século XX.

Schiele era o protegido de outro pintor, Gustav Klimt. E Schiele herdou-lhe não só o culto erótico da mulher nua, mas também a amante de 17 anos. Depois, casou com outra mulher, mulher que pintou como tinha pintado a amante pouco mais do que «menina e moça», e como já antes pintara as adolescentes que levaram os juízes a acusá-lo de sedução e abuso: todas levantando muito as saias e de olhos em desmesurada abertura, com excepção da mulher que leva a mão e o dedo para a geografia das quatro impronunciáveis letras, dedo tão mais tacteante quanto mais os olhos se lhe cerram.

Absolvido pelos tribunais, a Europa das artes sentenciou-o à genialidade de que as paredes do Albertina Museum são prova cabal.

E deixem-me falar de um dedo português. O dedo português está indelevelmente enfiado nesse Albertina Museum que acolhe a tão perturbante arte de Schiele. Emanuel Teles da Silva, descendente pela parte da mãe dos Condes de Tarouca, filho do Embaixador português, tornou-se cidadão austríaco e conselheiro de Carlos VI, tutelando com devoção a educação da infanta Maria Teresa, que depois seria imperatriz. Foi o dedo desse Conde de Tarouca que transformou as fortificações de um bastião militar no palácio de que fez sua habitação, o palácio Tarouca, que é hoje o Albertina Museum.

E continuo a caminhar, Parque Eduardo VII abaixo, o «Bicho Carpinteiro» de Cabrita e Bárbara na mão, rubros falos, negras vulvas lá dentro, a pensar que ao pobre Schiele os deuses só deram oito anos de trabalho, entre 1910 e 1918, ano em que a gripe espanhola o ranfou da vida. Em oito anos, de olhos postos para onde esta crónica não se cansa de apontar, Schiele ganhou as asas da imortalidade.

Publicado no Jornal de Negócios por altura da Feira do Livro

Espantada e aflita dor

Inaugurei, esta quinta, no CM, a minha nova crónica semanal. Leva por título genérico «A Vida Como
Ela Não É». Aqui fica a primeira.

Será preciso vir a morte esfregar-nos na cara o seu odor implacável para que se abra em nós, como pétalas de uma rosa matinal, a doçura da empatia e da humaníssima compaixão?

 Na igreja de Gondomar estão duas urnas. Nelas, os corpos de Diogo e André são o que resta do que a irreparável morte roubou. Mas, na igreja, como nas ruas, nas televisões, mesmo no turbilhão dos grandes estádios, o que noutros dias são os fugidios e ásperos espectros velozes, desinteressados, egoístas a tratarem da sua vidinha – vendo, afinal, a vida como ela não é – transformaram-se agora em gentileza, compreensão, solidariedade e dádiva.

Do ponto de vista de Deus, como o genial Hitchcock gostava de filmar, vê-se a alta torre da igreja de Gondomar a picar as nuvens, à sua volta a tão ordenada planície de campas onde repousam gerações de mortos e o seu incompreensível sono. E é nesse torturado espelho da morte, na espantada e aflita dor da (in)despedida que, como uma inesperada erva, irrompe o melhor de nós. Será na morte que, por fim, vemos a vida à transparência?

Matamo-nos no Donbass, massacramo-nos em Gaza, temos bebés e velhos como reféns em túneis de barbárie, esquecemos o Sudão, e essa acelerada combustão dos dias, da vida como julgamos que ela é, parece-se a uma aranha insidiosa que nos entorpecesse o coração e as vísceras. Esse veneno de viúva-negra seca-nos a cabeça: mesmo no silêncio dos mortos do cemitério de Gondomar há mais ternura do que em nós.

E é quando a morte, repentina, morte púrpura, morte abrupta, de chofre, nos bate como um muro de granito, que voltamos, aí e só aí, a deixar-nos invadir pelo sonho, por um encantado idealismo, por um desaustinado amor que tanto funga e tanto se lava em lágrimas.

A Diogo Jota e a André Silva, aos dois irmãos que um tétrico relâmpago roubou, devemos a revelação do melhor de nós, dessa chuva de carinho, de abraços, de choro libertador. Diogo e André foram a enterrar. O que virá a seguir? A vida, sim. Mas a vida como é ou a vida como ela não é?

Livros de Julho pedem óculos de sol

Sei que já têm tudo pronto, como convém, para férias, «o pente, o espelho, o batom, e o creme muito bom» para se bronzearem. Façam-me um favor, a mim e à Natércia Barreto, que tão bem cantava «Os Óculos de Sol»: levem também estes livros.

Para começar, dois livros que têm a gentileza de pensar e nos fazer pensar que há coisas que podemos mesmo mudar: mudem o ser que logo se muda a confiança. Leiam A Auto-Ajuda É Como Uma Vacina. Escreveu-o o economista americano Bryan Caplan e o que diz é que não esperem pelo tempo, cubram vocês mesmos, diz ele, o que Camões chamaria o vosso «chão de verde manto», criem a vossa bolha pessoal de felicidade, de significado e de ligação. Como? Leiam esta Vacina.

E logo a seguir leiam o Manifesto Para um Capitalismo Humanista, um livro edificado sobre três pilares: estado, empresas, sociedade civil. Miguel Pina e Cunha, Milton de Sousa e Adolfo Mesquita Nunes são os autores deste livro que luta e consegue desenhar um círculo virtuoso e de progresso. Esta sim, é «mudança de mor espanto».

E aqui estão dois livros que teriam poupado à Natércia Barreto, popularíssima cantora que deve ter a minha idade, a necessidade de levar «os meus óculos de sol, que levo pra chorar, uh uh»: Sempre Mais Além, de Jorge Ventura é a narrativa sedutora de viagens e aventuras de um velejador, que nos levam por mar e mar, Las Palmas, Bermudas, Cuba, Índia, Suez: é tão redondo e azul o planeta.

Com óculos de sol ou sem eles, mas sempre de e com uma bicicleta, José Poeira é o herói, campeão mundial, de Alguma Coisa Boa Há-de Acontecer-me. Leia a hagiografia que José Carlos Gomes por bem lhe escreveu, e deixe que alguma coisa boa lhe traga o «doce canto» da vitória.

Bem sei que o chão do nosso tempo já «coberto foi de neve fria». A quem ande mais esquecido, a investigadora Sharon Vilches oferece a Breve História da Gestapo, das mais brutais polícias do século XX, por que «do mal ficam as mágoas na lembrança».

«E do bem (se algum houve) as saudades» eis o que, na mesma colecção, A Minha Estante, nos faz querer ler História do Protestantismo, de Jean Baubérot, livro sério e sintético sobre essa tremenda mudança que fracturou o cristianismo, criando a liberdade individual de interpretação, liberdade que à autoridade contrapõe a consciência, mostrando que «todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades».

E a Rita Fonseca vem, em estado de plena Euforia, dizer-me que o mundo editorial «não se muda já como soía». Escolha da Rita, em Obsessão da Morte, a romancista (muito, muito dark) Avina St. Graves cria uma narrativa de inescapáveis fixações, tantas que uma personagem confessa: «A morte é única coisa que me mantém viva.» Entra agora nas livrarias, mas as pré-vendas já puseram, nas duas últimas semanas, o romance no top 10 da Wook. Pelo sim, pelo não, tenham à mão os vossos óculos de sol.

Manuel S. Fonseca, editor

A espingardada de Hemingway

A vocação está na ponta de uma espingarda. Pelo menos para Ernest Hemingway. Mario Vargas Llosa cujo espírito paira agora por aí como uma erótica máquina lírica, descobriu que queria ser escritor – essa pulsão que se diz rasgar as entranhas –, ao ler «Madame Bovary», romance de um senhor francês, dado a crises nervosas, chamado Flaubert. O polaco Joseph Conrad alistou-se na então gloriosa Marinha britânica e aprendeu inglês, língua que foi sua musa inspiradora.

Mas que rumor é esse que faz os escritores estarem de bem connosco e de mal consigo? Poetas e romancistas serão inspirados por um demónio ou eleitos de Deus? E existirá essa chusma de musas, que imagino de maminhas veladas por tules a roçarem-se pelas meninges dos escritores? No caso das escritoras, serão faunos de infantis pilinhas divertidamente erectas e que quando dedilhadas fazem dó, ré, mi?

Não sei se querem vir ver Charles Dickens aos 12 anos? O inglês trabalhava já numa fábrica, num labor que alguns dirão ser uma antecâmara da literatura: colava etiquetas em pequenos vasos de graxa para botas.

Pois não, mas que relação terá com a literatura a indústria de cruzeiros nas Caraíbas? Era onde, em 1941, a saltar da vasta piscina para a sala de fumo de 1.ª classe do luxuoso paquete MS Kungsholm, trabalhava o futuro autor dessa indecifrável intriga que é o «Catcher in the Rye». J. D. Salinger era o director do entretenimento, ou seja, o escritor dentro do aquário: nadavam pelos salões centenas de peixinhos à sua volta e ele escrevia secretas «short-stories». Mostrou-as a Hemingway, quando se encontraram na Alemanha, os dois a fecharem as portas da guerra que Hitler abrira, já Salinger saboreara as praias da Normandia no apocalíptico desembarque de Junho. Hemingway adorou as histórias, o recluso Salinger adorou-lhe de volta a gentileza e a humildade de um Hemingway nos antípodas do mito público: o delicado espectáculo do amor entre dois homens é uma prosa forte que faz delirar a noite.

Mas como é que Salinger e Hemingway desenvolveram a aptidão para lidar com a embriagante máquina de fazer frases que é a escrita? Uma «predisposição de origem obscura» chamou-lhe já não sei quem – ou foi Llosa? –, talvez a mesma que arruína a vida do heroinómano, ou que dava inspiração própria e génio às pernas e aos pés de Pelé, Maradona ou Eusébio.

Talvez não seja nada de lancinante a ligar todos os escritores, talvez seja só a branca luz da leitura. Todos eles leram muito. Todos escreveram também muito. Aprende-se a escrever, lendo e escrevendo. Peço que ouçam o conde de Buffon, matemático, naturalista, filósofo e escritor: «Aqueles que escrevem como falam, mesmo que falem bem, escrevem mal.»

Hemingway aprendeu a escrever no liceu de Oak Park, no Illinois. Duas professoras fizeram-no ler Tennyson, Coleridge, Shakespeare, Dickens, Eliot, do melhor da língua inglesa. Ao mesmo tempo que jogava futebol, tocava violoncelo, fazia natação, Hemingway escrevia no jornal do liceu. O repórter que ele era foi um dia vencido pela imaginação. Precisava de preencher uma coluna sem assunto: inventou um Clube do Rifle dos Rapazes do liceu. Foi tão convincente que lhe pediram uma fotografia da rapaziada para o livro de honra do ano. Hemingway chamou cinco amigos, pediram espingardas emprestadas, e fizeram a foto. Nesse dia, a desabrida imaginação deu a volta à mansa realidade. Era um escritor.

Valerá a pena, perguntou T. S. Eliot, espatifar toda uma vida para, afinal, nada? E eu pergunto, mas quem é que espatifa para nada a vida, Camões ou um Elon Musk?

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend (sai à 6.ª)

O bólide que só virava à direita

O meu amigo Jorge Sá, em Luanda, comprou barato um carro que só virava à direita. E a quem sorria e pense desmentir-me, dizendo que isto são ficções que se me deslargam da cabeça desde que perdi o cabelo, deixo este aviso: eu não tenho um pingo de qualquer tipo de imaginação, o meu encéfalo é uma reles planície prosaica que só se excita com factos. O facto é que o Jorge guiava em Luanda um carro, sei se lá se um Toyota ou um Fiat, que se recusava a virar à esquerda.

A suspensão tinha levado um valente rombo e à tentativa de voltar à esquerda, a carroceria avançava para cima do pneu bloqueando o carro. Ora, isso era para o Jorge um minúsculo e inusitado contratempo. Sempre que era preciso virar à esquerda, ele conseguia-o virando duas vezes à direita.

Proficiente, com o silêncio meio zen com que enfrentava o mundo, o Jorge tinha na cabeça o mapa dessa Luanda que estava a um dedo mindinho de deixar de ser colonial e traçou um milhão de cenários que lhe permitiam circular no obstinado carro de direcção única.

Quem lhe terá aconselhado o insólito bólide? O exímio Nelinho Ramos com quem, de Citroen boca de sapo, de Luanda ao Bié, atravessei em 1976 o túnel de devastação que era a Guerra Civil angolana? Ou terá sido conselho do mais velho Ó Cê Marques, nosso mentor de alta estampa, o único mancebo que circulava em Luanda segurando o volante de um artilhado Seat com a vaidade de umas finas e sumptuárias luvas de pele de dedos cortados, que todas as duias (sim, as baronas, as damas) da cidade cobiçavam acariciar?

Talvez tenha sido eu a salvar o Jorge do suplício de Tântalo, que era virar à direita para a eternidade. Vejamos. O meu amor à estrada começou com o meu primeiro carro anti-nazi, um velho 2 CV. Esse «dois cavalos», descapotável, comprado a meias com o meu amigo Rui, estava tão aberto por cima como por baixo: íamos de Luanda ao Lobito, pelo Sumbe, e víamos o céu limpo sobre as nossas cabeças e, por um rombo no chão, o alcatrão. Chegámos a tentar travar pondo o pé na estrada? Não juro.

Disse anti-nazi e explico. O 2CV estava prontinho para ser dado ao mundo quando os nazis ocuparam a França. Os abençoados engenheiros da Citroen esconderam os planos e os protótipos já fabricados. O 2CV só pisou a estrada, depois da Guerra, e da libertação. O destino do meu dois cavalos foi o inverso: morreu queimado pelos carcamanos e pela Unita que lhe pegaram fogo, deixando-o estorricado ao lado da pastelaria Chá para Dois, no Lobito.

Volto ao Jorge: houve um dia em que um polícia o mandou parar e o quis obrigar a virar à esquerda. O próprio asfalto chorou perante o dilema. A perplexa autoridade, vendo a ordem lógica do seu mundo esvair-se, caiu de joelhos, fechou os olhos e disse ao Jorge: «Senhor faça-se em mim e nessa estrada, segundo a sua vontade! Vire para onde quiser.»

Eu regressara então a Luanda. Para comemorar a independência, comprámos a meias, por umas grades de cerveja e dois quilos de bifes do Lubango, um decadente mas ainda lustroso MG. Britânico, branquíssimo, capaz de virar à esquerda e à direita, num tempo cuja vertigem era ir ao fundo. Ontem, o Jorge veio de Luanda contar-me que, há uns anos, a chapa do chão do MG se rompeu. Tapou tudo com as fraldas de uma das bebés de que é pai. E assim andou mais uns tempos até ir à oficina para um arranjo na chaparia. O mecânico meteu o maçarico à coisa e as esquecidas fraldas arderam, quase consumindo essa obra de arte em que circulávamos independentes, sendo contemplados pelo povo da cidade com o epíteto: «Olha só, os últimos hippies de Luanda!»

Publicado no Weekend esse frágil mas sincero suplemento das sextas do Jornal de Negócios.

Ouvi anjos em Mértola

É tão longe de Mértola a Matala. A Matala fica na Huíla, em Angola, e Mértola é essa pérola alentejana a cujo sono e vigília assiste o Guadiana, ronronando preguiçoso aos pés da alta cama mertolense. E foi em Mértola que há poucos dias foi a enterrar o meu amigo Fernando Venâncio. Nos últimos três anos, eu vi-o – e tanto lhe ouvi a voz cantada – a dialogar com essa novilíngua, que também começo a aprender, a língua da morte.

As línguas, como as línguas do Espírito Santo, estavam-lhe no sangue. De Mértola a Amsterdão, passando por Lisboa, e com paragem no breve apeadeiro que é a Guerra e Paz editores, o Fernando não fez outra coisa que não fosse indagar, provocar, implicar essa língua portuguesa que, com tanta argúcia, roubámos aos galegos: assim nasceu uma língua.

Mas entrem no carro e venham, de Lisboa a Mértola, ao funeral. Está livre o banco de trás. Sentem-se. Ao meu lado, vai o Marco Neves, outro linguista. Saímos com meia-hora de atraso. Estacionar em Mértola não é para meninos, muito menos para velhos. E lá fui a arrastar-me, atrás das pernas jovens do Marco, até chegar à Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, bem no cimo, dentro do castelo.

Aconteceu, então, uma coisa maravilhosa: entrámos de supetão na igreja, como há décadas dizia o imenso Nuno Brás que Eusébio entrava na área, e já um padre perorava junto ao féretro onde o Fernando se deixava, paciente, estar em descanso

 O padre era um africano, com um sotaque, que eu logo percebi ser de Angola. Da Matala? Um homem negro de fala cristalina, excelente léxico, dicção perfeita, uma sintaxe primorosa. E, ao contrário de muito do clero que por aí apascenta e apascenta tão mal, com uma oratória tocante. Centrou-se no mérito da defesa que o Venâncio fazia da língua portuguesa. Senti, então, que o Fernando, na urna, longe do sossego, estava num deliciado bulício, todo derretido, entre ironia e inocência, um sorriso que lhe ia do novilúnio ao plenilúnio, encantado com o que, no musical sotaque angolano – e corrijo, umbundo – lhe lavava pela última vez os ouvidos.

Ali estávamos numa igreja alentejana enfiada num castelo, no topo de Mértola, sobre o rio Guadiana, longínquo baluarte mouro, com um africano nascido a milhares de quilómetros, a louvar um linguista tuga e a dançar, ele mesmo, com elegância na língua, na mesma língua.

Voltou, esse jovem padre angolano, a falar no cemitério, em cima da campa, como só se vê nos filmes de John Ford. Foi, então mais confessional: contou que deixara o pai em Angola, um pai ateu, descrente da eternidade. Confessou o desgosto e disse que a esperança que o movia eram os mertolenses. Deixara a sua casa, a família, os amigos, a bênção dos trópicos para vir missionar, espalhar a palavra daquele que ele chamava o Pai, e que este seu sacrifício valeria a pena só e apenas se os mertolenses lhe dessem, a ele, peregrino perdido, prova de fé e de confiança na doce eternidade.

E eu pasmado, eu ex-colono, eu ex-cristão, a lembrar-me que, ali ao pé, de Sagres – ou foi de Lagos? sei lá bem, já não me lembro do que fiz há cinco séculos –, saíram caravelas para ir missionar e espalhar a fé e agora, em boomerang, um jovem homem negro, inteligente, tão bom demagogo como um Demóstenes, vinha do coração de África missionar a descrente e gentia Europa. Tens de convir, querido Fernando, que não podíamos ter tido melhor despedida: nas aladas palavras deste padre umbundo vinha toda a ironia dos anjos. A ironia de uns anjos irreverentes, dos que tu gostavas, a descer e a pousarem brandos e meigos sobre o teu corpo defunto.

Publicado no Weekend, o suplemento das sextas do Jornal de Negócios

Os presos e uma certa gentil flora

D’Annunzio esteve mais tempo preso do que eu. Mas a prisão do escritor circense que era Gabriel D’Annunzio teve pergaminhos: cinco meses por ser amante da digníssima esposa de um nobre napolitano. E não falemos sequer do Marquês de Seda, perdão de Sade, despejado na Bastilha por sodomizar e envenenar cinco venais rameiras. O que mais se aproxima dos meus tormentos de cárcere foi o que aconteceu ao prolixo Honoré de Balzac: na tropa, provavelmente para se dedicar a um clandestino comércio amoroso, baldou-se à sua missão de sentinela. Preso por duas semanas: ora, amendoins!

Eu não me baldei, escrevi. Escrevi a dizer não! Não vou, é que nem que Vossas Excelências fossem tenentes. Explico melhor: tinha ficado em Angola para ver e saborear o que era uma independência. Há, numa crónica de Nelson Rodrigues, uma jovem mulher tuberculosa que está a meio passo da morte. Tísica, magérrima. E é Carnaval. Pede à família, ao médico, para vir à rua – sabem que ela vai morrer, mas que vá. E ela, porque nunca tinha sido beijada, procura um beijo. O primeiro e o último beijo. Beija e morre. Eis o que eu queria: ver, apalpar, beijar uma independência. Fiquei. Pagaria caro a minha erótica perversão.

Voltei a Portugal, situação militar irregular, porém amnistiado, e dirigi-me ao quartel da Graça. Reinspeccionaram-me. Um jovem médico sensibilizado com a minha miopia declarou-me inapto para a tropa. Passam-se três anos e recebo uma carta a convocar-me para a recruta em Mafra. Já eu e a Antónia, passada a fase da papa Nestum da última crónica, começávamos a ver a vidinha virar uma tão linda manhã.

Convencidíssimo, mais do que Paulo depois do tombo na estrada de Damasco, de que a tropa era uma pessoa de bem, escrevi uma carta: «Queridos generais, devem ter-se enganado, estou inapto e a pagar a taxa.» Com prosa de Belzebu, vem a tropa e diz-me: «Mancebo, houve um engano; tal como ninguém, nem Heraclito, se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio, também ninguém pode ser inspeccionado duas vezes. Apresente-se!»

Disse-lhes que não ia, viessem buscar-me. Vieram. Um jipe levou-me ao Quartel-General, pernoita na Trafaria, ala para Coimbra e Viseu, com quatro soldados que paravam para beber copos comigo. Por fim, julgamento no tribunal militar de Coimbra. Levei advogado e amigos para testemunhar, um deles, monge beneditino, dizia aos soldados na audiência: «Rapazes, virem as G3 para os juízes, que eles merecem!» Mas a tropa não perdoa e fui condenado a três meses de prisão.

Esperava-me a prisão de Tomar, onde viria a estar o Otelo. Acolhido em fraternidade pelos militares presos, ganhei logo galões: eu era «o professor». O director autorizou-me máquina de escrever e reservou uma sala para que redigisse os trabalhos finais de Filosofia. Convidavam-me, o oficial e o sargento de dia, para jantares melhorados. Era 1980: entre os presos havia quem tivesse descoberto ali a escova de dentes. Mas a verdadeira razão do apreço da população prisional era a minha capacidade de escrever ou melhorar as cartas às namoradas. E, sobretudo, cartas a pedir o envio de uma nota de dez, vinte escudos, a uma gentil flora feminina que escrevia aos presos com uma certa propensão para erotizar a reclusão, as grades e a rija abstinência. Antes quebrar do que torcer, levei até ao fim a minha recusa. Um velho sargento paciente e prático explicou-me, então, que «não é assim que se fazem as coisas: você vai lá com umas garrafas de Johnnie Walker, das pretas, e logo se resolve.» Foi esse o fim prosaico da minha aventura militar.   

Publicado no Jornal de Negócios, no tão simpático Weekend