Quando acabam as canções

Ali ia eu atarefado com a minha morte, as rodas da maca entoando uma música mórbida e a riscar o asfalto das áleas do hospital Curry Cabral. Era de noite e levavam-me, estrelas e lua a decorar o céu de Dezembro de 2020. Arrependo-me de não ter pensado que era à última vez que as via, às estrelas e à lua. O que me rasgava a cabeça era um cometa de ironia: nunca ter visto no cinema um tipo ser levado de maca num hospital pelo meio das árvores, entre terra e céu, os esgazeados olhos postos no cosmos.

 Estava agarrado a essa originalidade, a achar que o travelling que embala o Al Pacino, no «Carlito’s Way», do De Palma, era um menino ao pé do meu deslumbrante plano-sequência, que tomara o Scorsese, quando entrei no bloco dos cuidados intensivos.

«Estou a descer», pensei. Desce-se para a morte e ao passar da maca para a cama, mil tubos, o pólo norte enfiado no nariz – o gelo que é respirar-se junto à barriga da eternidade – convenci-me que estava nas caves hospitalares, o que a minha desaustinada mente via como antecâmara da definitiva e perene escuridão.

Sabia que ia morrer. Nesses dias, no mundo, e para que conste, nós humanos morríamos como tordos. Gostava de ter tido, então, a desprendida serenidade de um D. H. Lawrence, que, olhos nos olhos da morte, disse: «Penso que é hora de me darem alguma morfina!». Na minha rasteira trivialidade, de mim para mim, disse: «Que chatice!» A intranscendência de um «que chatice» precedeu a minha ingloriosa rendição. Desisti e deixei-me ir à morte. Fez-se escuro e eis o que quero dizer: a morte vem de dentro de nós. Estava uma sala asséptica, as ronronantes máquinas com apneias de pis e pis, pi e pi e pi, uma limpeza pristina de antes do big-bang, e dentro de mim só escuridão e monstros.

De onde vinham os gigantescos fantasmas com capas de Batman, de onde vinham os Polifemos voadores que pareciam ceifar-me a cabeça e furar-me os olhos, de onde vinha essa mistura de extraterrestres com titãs, essas naves voadoras incansáveis que, de repente, eu comecei a abater – que irritação com Deus, que irritação com o portentoso Além me fez empertigar e sacudir esse obscuro Hércules sem rosto que já me agarrava pelas nádegas como quem leva um presunto?

  Não sei em que ponto foi dos cinco dias e cinco noites em que a parafernália galáctica dos pesadelos me furava o peito e o ventre, me sugava as entranhas, mas sei que no meio desses mil rostos sem rosto da morte – e nenhum era a Senhora de Branco, que alguns disseram tê-los visitado – um humilde acorde musical soou.

Uma canção modesta veio de visita à minha escuridão. Não sabia cantá-la, mas como uma agulha espetou-se-me esta expressão, «o inteligente». Estavam os Darth Vaders num hipersónico coro assassino à minha volta, quando na minha cabeça se formaram os versos completos «e diz o inteligente / que acabaram as canções».

Eis a rutilante má-criação com que voltei à vida: «Acabaram, mas é o caralho.» Com a «Tourada» do Fernando Tordo, versos do Ary dos Santos, eu soube que as canções não tinham acabado. E enquanto cantava, dentro de mim, que as canções não tinham acabado, os monstros, Titãs, Polifemos, Darth Vaders, enfiavam o rabo entre as pernas, Deus e o portentoso Além batiam em retirada.

Voltei, radiante e tão fraquinho. Só então descobri que o bloco dos cuidados intensivos era num andar superior – já lá voltei a vê-lo – o que mostra que afinal só sei que nada sei sobre a morte: a morte talvez não seja um caminho a descer; a morte talvez seja sempre a subir, ascensão de que somos os persistentes alpinistas.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios

Livros, luxo, calma e volúpia

Esta é a newsletter que mando a quem gosto, mas sobretudo a quem muito gosta de livros. Dedico esta newsletter ao editor Guilherme Valente, meu amigo, que me passou o testemunho, pondo sobre os meus débeis ombros a tremenda responsabilidade de dirigir, a partir de agora, a GRADIVA.

Os meus livros de Outubro

Talvez seja o mais bonito, o mais lúcido e o mais angustiado Outubro que já tive como editor.

Deixem que comece pela paixão: um dia, na casa californiana de Jorge de Sena, a senhora dona Mécia emprestou-me o exemplar de From Ritual to Romance, o maravilhoso ensaio antropológico de Jessie L. Weston. Nunca lhe devolvi o livro, mas hoje ofereço aos leitores portugueses a edição dessa preciosidade que aparece em filmes como Apocalypse Now ou The Doorso Mito de uma Geração. Chama-se Do Ritual ao Romance e ensina-nos que o que pensamos e fazemos vem de um tempo antiquíssimo. Somos, ensina-nos Jessie L. Weston, muito mais pagãos do que os cristianíssimos cavaleiros da Távola Redonda poderiam pensar. Querida Dona Mécia, devolvo-lhe, agora, o seu livro, finalmente publicado em Portugal, nesta edição da colecção Os Livros Não se Rendem, que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações vão levar a toda a rede nacional de bibliotecas.

Tão bonita a Cartografia do Desejo que Alfredo Cunha, um dos nossos maiores artistas fotógrafos, quis oferecer aos leitores portugueses. Há uma edição muito limitada, em capa dura, grande formato, papel de deuses, impressão quase inefável, e há uma edição em formato mais pequeno, de se trazer junto ao coração, linda de viver. Um prefácio de Valter Hugo Mãe e os textos de Ariana Aragão entrelaçam-se com fotografias de corpos nus, corpos primordiais, corpos a consumirem-se na subtil vontade de se fundirem noutros corpos. Um livro que sem o mecenato do dstgroup não aspiraria a tanta beleza.

«Onde me encontro? Que mundo é este a que estamos confinados!?» Com esta exclamação começa um dos mais sofisticados romances que já publiquei. Amadeu Lopes-Sabino, seu autor, deu-lhe por título Azul da Prússia, e leva-nos, sempre com esse poderoso veneno que todo o azul da Prússia oculta, de Portugal ao III Reich, do Brasil à URSS, num arco de tempo temperado por um léxico mais perto do murmúrio do que do grito.

Fernando Paulouro das Neves reincidiu: escreveu agora  As Sombras do Combatente, glorificação de uma figura real, Eduardo Monteiro, um clandestino veterinário português que se bateu contra o ditador Franco e que foi irmão de armas da Resistência francesa aos nazis. E contra Salazar, claro está.

Vingança em estado puro e cru é o ingrediente que Riley Sager usa para começar este Treze Horas para Chicago, um thriller todo criminosamente tricotado no perfeito huis-clos que é um comboio. Disse que o comboio é de luxo? Está dito. Não digo é quem mata, quem sobrevive, quem salva. Não digo.

E agora, dois ensaios lúcidos. Com a serenidade e clareza que marcam a sua argumentação, João Pedro Marques escreveu Reparações e Outras Penitências Históricas, uma incursão frontal sobre temas como as reparações históricas, a escravatura e o futuro do ensino da história em Portugal. Corajoso? Arrisco dizer que é apenas verdadeiro.

Eu prometi angústias. Vamos e vejamos. António Costa Silva escreveu Angola aos Despedaços: 50 Anos Depois, Que Futuro?balanço de 50 anos da independência da terra amada em que em belos despedaços deixei a minha infância. Este é um livro de amor: uma análise rigorosa de tanto que correu mal na economia e política angolanas. Mas onde está também o que Angola fez bem. O duro livro em que se casam amor e verdade

E está feito: fechámos o projecto Três Séculos de Economia Portuguesa, que começou com o apoio da CCP, Confederação do Comércio e Serviços, e se converteu em livro com o mecenato da Fundação Manuel António da Mota e da Mota Gestão e Participações. Chegam aos leitores os dois últimos dos cinco tomos da colecção, ambos escritos pelos economistas José Félix Ribeiro e António Mazoni. Um é A Grande Transição da Economia Portuguesa: Do Império para a União Europeia, que nos faz passar pelo 25 de Abril, entrada na CEE, do euro até ao presente. O outro, O Século XXI: Portugal e as suas circunstâncias, passa pela angústia do pedido de ajuda financeira e pela proposta, com inteligência e bom-senso, de um caminho de futuro para Portugal.

Dez livros de Outono, dessa coisa, o livro, que não é mais do que «ordem e beleza. Luxo, calma e volúpia», como alguém disse, no meio do spleen de Paris.

E não posso deixar de falar do que anda a fazer a Rita Fonseca na Euforia. Começo pela pouca santidade do Santo, de Sierra Simone, autora que já roçara o escândalo em Padre e em Pecador. Fecha agora a trilogia de muitas confissões e ainda mais proibições. Romances, portanto. Portanto? Portanto!

Navessa Allen, se no romance anterior estava Às Escuras, neste novo romance de Outubro da Euforia está De Joelhos. São títulos tão promissores como inquietantes, das mais bem-sucedidas expressões do dark romance: a autora já passou o milhão de exemplares vendidos.

Manuel S. Fonseca, editor 

O dia em que não morri

«Dê um abraço ao seu marido.» Já eu tinha a máscara de oxigénio a cobrir-me nariz e boca, foi o que o técnico do INEM disse à Antónia. Por delicadeza ele não disse «Dê o último abraço ao seu marido».

Eis o que confesso a quem me leia: mete-se em nós um silêncio de porcelana quando começamos a soletrar as cinco letras da palavra morte. Dois dias antes descobrira que tinha covid. E em 48 horas, nesse crudelíssimo mês de Dezembro de 2020, a infecção galopou. Ficou rude o meu «murmúrio vesicular»: sibilos, roncos, tosse seca atropelavam-me a respiração. Deitado, eu era uma camélia infecta e gelada. De pé, estertores crepitantes vinham do líquido túmulo que pareciam ser, então, os meus pulmões.

Já depois da Antónia e eu nos arrancarmos do assombrado e órfico abraço, de dentro do seu asséptico uniforme o homem do INEM perguntou: «Consegue caminhar pelo seu pé ou levamo-lo de maca?»

O que é prodigioso no mais humilde ser humano é o subterrâneo fascínio pelo desconhecido. Eu devia ter dito: «Consigo, mas não quero! Jamais caminharei pelo meu pé para a morte…» Porém, uma melancólica atracção pelo grande exterior, um obscuro desejo pela paisagem nocturna de branca lua seduz-nos e caminhamos dóceis, mesmo em direcção à morte, os pés tão doentes como a doente rosa de Blake.

Lembro-me que as urgências do São José pareciam a antecâmara do inferno. Doenças rutilantes sentavam-se de garras abertas ao colo da vertigem de outras doenças. Um grito, «Senhora enfermeira, tenho de ir à casa de banho», punha um acorde trivial e pícaro na obstinada música grave da crua dor daquela urgência.

Quanto éramos? A luz mortiça não deixava ver. Sentado num cadeirão, o cateter nasal a empurrar oxigénio para o meu peito relutante, o que sentia era o laborioso afã humano pela sobrevivência, cada corpo como uma centopeia ou um polvo, cem pés ou ventosas a colarem-se à húmida vida, tão escorregadia.

 Ia a madrugada a meio – as peregrinas wee hours – outra ambulância tirou-me das urgências e levou-me para o Curry Cabral. Dias depois, numa maca a correr pelas áleas que separam os blocos do hospital, outra vez à noite, como se a doença e os serviços hospitalares tivessem entrado na clandestinidade, dois maqueiros levaram-me da enfermaria para o bloco de cuidados intensivos. Via da maca as nuvens, céu, estrelas, talvez a acesa ponta da lua entre a copa das despidas árvores que antecedem o Natal.

Foi então que alguém me disse «Apresento-lhe a morte». A morte é-nos apresentado por eufemismos: pedem para despirmos a nossa roupa, para entregarmos o telemóvel. Percebi que não poderia mais ligar à Antónia, que deixaria para trás amigos e família, os livros e as salas de cinema, sem o consolo de um adeus, de uma última vez.

Entregava o meu corpo nu, como no dia em que nasci, esse dia de que nenhum de nós sabe lembrar-se, entregava o meu corpo nu, que não era já todo o meu corpo, 12 quilos roubados.

Para onde teriam ido esses 12 quilos, quase 20% roubados ao meu identitário eu? Iriam à frente, pelo seu pé, a caminho do lençol escuro da eternidade? Nu, o pobre pénis encolhido, zézinho convertido numa minúscula couve de Bruxelas, nessa nudez e incomunicação, sem um sopro de ar no peito, soube que ia morrer.

Não morri. Hei de contar porquê. Talvez para a semana. Voltei do vale das sombras de mil mortos e saí, minha segunda natividade, a 24 de Dezembro, para uma noite de Consoada só com a Antónia, obrigado a 20 dias de quarentena, mas vestido, o modesto pénis a querer assobiar, rosto oferecido à nova vida: vou agora fazer cinco anos.

Publicado no Jornal de Negócios

Tiros em espelho

O primeiro tiro à Kennedy foi o rei português Dom Carlos quem o experimentou. Disparou-o, antecipando-se umas boas décadas a Lee Oswald, a Winchester modelo 1907, de Manuel Buiça. Era, o Buiça, um atirador exímio; joelho no chão, o tiro saiu-lhe certeiro ao pescoço real, dando ao Senhor Dom Carlos, dizem, morte imediata. Os outros dois tiros que vararam o rei foram sumptuários.

Há nessa cena um lirismo e um heroísmo muito portugueses. Vejam bem: a rainha Dona Amélia tenta afastar os matadores assestando-lhes nas ventas com um singelo ramo de flores; quem a ouviu garante que ela, enquanto esbracejava, ia gritando, «Infames, infames». Ao lado da rainha-mãe, o príncipe herdeiro respondeu de pistola em punho, sendo o seu improficiente heroísmo logo abatido por um balázio da Winchester, que lhe atravessou a face e saiu pela nuca, espelho do tiro que, mais de meio-século depois, iria entrar pela cervical de Kennedy e sair-lhe pela laringe.

É melhor perecer com as vestes carmim da tragédia ou sobreviver pelo ridículo? Falemos do rei inglês Eduardo VII, que um parque de Lisboa celebra. Ainda ele era só Príncipe de Gales, sentou-se no comboio que o ia levar de Bruxelas à Dinamarca, em 1900, quando um anarquista, Jean-Baptiste Sipido, na verdade um puto de 15 anos incendiado pela matanças da Guerra dos Bóeres, saltou para o estribo e disparou dois fogachos que passaram a dedos da cabeça de Eduardo. O príncipe vai em vôo picado, asas abertas com um pato, e sai-lhe este desabafo: «Foda-se que já levei com uma bala!»

E não. Não levara com bala alguma, razão pela qual o tribunal considerou o puto Jean-Baptiste «incapaz de dolo», tanto era o seu indiscernimento, se assim lhe posso chamar. Teve, porém, o discernimento e o bom gosto de fugir para Paris, antes que o pusessem num reformatório. A gloriosa França acolheu-o com o estatuto de refugiado político.

Podia falar do atentado a tiro contra Lenine. Mas não, falo da sua segunda morte. Havia um frequentador da Cinemateca, que era a pálida cara chapada do primeiro ditador soviético. Tão doce como pálido, viveria com uma sopa por dia e a pobreza de um Bartleby, um obsessivo amor pelo cinema. Chamávamos-lhe Lenine, e um dia, como alguém dirá de nós outro dia, olha, morreu. A Antónia, minha augusta mulher, entra a chorar no gabinete do João Bénard: «Morreu o Lenine.» O João, sabedor das inóspitas inclinações políticas da Antónia, espanta-se: «Ó Antónia, o Lenine já morreu há um século.» E logo a Antónia, em choro convulso: «Não é esse. Morreu o nosso Lenine.» Não há tiros no silêncio do cinema.

Publicado há umas semanas valentes no Jornal de Negócios, no Weekend

O charmoso xixi feminino

Já a ditadura de Marcello Caetano estava de língua ressequida e foi quando eu tive a minha primeira solidão. A solidão, recordo aos mais felizes, não é estar sozinho.

Eu acabara de chegar a Portugal, de onde saíra aos 5 anos, pouco mais do que de bibe. Ao contrário de Billy Wilder, esse austríaco a quem vou implorar que seja ele a falar-vos, eu falava a língua. Não falar a língua é a primeira janela virada para a solidão, confirma o austríaco que tanto havia de filmar Marilyn: olhos, lábios, seios, nádegas e pernas, e nunca por esta ordem, reconhecendo ao corpo dessa extraordinária mulher uma solidão que mais ninguém tão bem lhe reconheceu.

É certo que eu falava a língua, mas no quarto alugado de Lisboa, encostado à estação do Rego e aos seus incompreensíveis comboios, não cabiam as esquindivas e os uatobos, esses espantos caluandas da minha adolescência, nem a cambada de «k» – «kome é ké meu kamba?» – com que ajindungávamos a língua. Lisboa transbordava e eu era a gota invisível que derrapava pelo lisinho vidro do copo abaixo. A minha solidão durou uma semana.

A fugir de Hitler, foi assim que Billy Wilder chegou a Hollywood. Embrulhado, diga-se, num equívoco maior do que o cesto do bebé Moisés a flutuar no rio Nilo. Como Moisés, Wilder fora contratado para escrever guiões. Os de Wilder seriam guiões para filmes, o que ele sabia escrever: só lhe faltava era saber falar inglês. Eis a solidão de Wilder: os estúdios de Hollywood, atarantados, arrumaram-no, no Natal de 1935, numa cave, na antecâmara do toilete das mulheres, num dos hotéis de Sunset. Elas vinham aliviar o sibilante e charmoso xixi ou retocar a faiscante doçura da maquilhagem, e ali estava o homenzinho austríaco – «funny» em inglês, ridículo em português –, atormentado pela insónia, que os intrigados risinhos femininos mais isolavam nas perdidas horas da noite escura.

A solidão de Wilder durou três anos. Ou menos. O arrebatador sucesso de «Bluebeard’s Eight Wife», e logo a seguir da obra-prima anticomunista, toda debruada a Greta Garbo, que é «Ninotchka», filmes que Wilder escreveu em inglês, mostraram que a genialidade é poliglota. Wilder quis então, já era 1939 e já lhe fora concedida a amenidade de ser americano, relembrar, numa pequena comédia, a solidão da cave e do rumor do xixi feminino. O filme chamou-se «Hold Back the Dawn» e a cena é premonitória: já perceberão porquê, convido Donald Trump a ser o elefante na sala.

O herói do filme, o actor francês Charles Boyer, é um romeno, um alegre gigolo, digamos assim, que chega à fronteira de Tijuana e, tal como os imigrantes mexicanos, fica retido, sem visto. Desespera e espera, ainda Trump não nascera. Confinado ao quarto rasca, roça-se pelas paredes, preguiça no colchão miserável, a mesma solidão e invisibilidade que Wilder saboreara à porta de um WC. Sabe-se lá de que frincha, aparece uma barata. Boyer olha para ela, para essa irrupção insolente e interpela-a: «Mas onde é que julgas que vais?» O silêncio culpado da barata não o comove: «Tens passaporte? Tens visto? Mostra-o!»

Boyer, cuja «fine bouche» nunca terá mordido a solidão de Wilder, recusou fazer a cena. Reclamou todos os galões de vedeta. A discussão com Wilder foi azeda: «Ninguém fala com uma barata! Queres fazer de mim estúpido. Vai-te embora, antes que te mate!»

O actor francês roubou ao mundo uma cena pungente: a fronteira da invisibilidade e da inumanidade, quando alguém já não tem mais nada que o ligue à vida do que um inusitado insecto rastejante ou o som nostálgico do distante xixi de uma mulher.

Publicado no Weekend, o suplemento de todas as 6.ªs do Jornal de Negócios

Mulher nua, mulher vestida

É mesmo ali, na Argélia e Marrocos. Há uma mulher nua outra decentissimamente vestida. A mulher nua está livre, em plena rua, a mulher vestida despejada na prisão.

A mulher nua vive em Sétif, cidade argelina de predominância cabila (berbere). A mulher nua é uma estátua erguida numa fonte de Sétif. De seios lindos, coxas expostas, ousada e inocente nesse requebro com que se senta: os habitantes de Sétif orgulham-se dela.

Mas às notórias forças vivas do islamismo repugna toda a iconografia. Por isso, Aïn el-Fouara (Fonte Que Jorra), como se chama essa mulher de mármore, é atacada com regularidade e ferocidade: a martelo, a explosivos, a cinzel. Os islamistas apostam em apagar da face da terra todos os ídolos e, há um mês, a picareta de um fundamentalista destruiu-lhe o belo rosto, quebrou-lhe um ombro e torturou-lhe os seios. Uma orquestrada campanha nas redes sociais e mesquitas, quer despedaçar essa mulher – um estudioso islâmico propôs cobri-la (uma burka?) – mas os orgulhosos cabilas de Sétif teimam em defender a mulher cuja nudez se derrete em água fresca.

Menos feliz foi Ibtissame Lachgar. Todavia estava vestida. Betty vestia a sua t-shirt negra preferida. Psicóloga clínica, é activista e participa, em Marrocos, em manifestações. Sempre de t-shirt negra, com inscrição em fundo semelhante ao visual do terrorista Daesh, na qual se lê «Alá é lésbica». Betty escreve o mesmo nas suas publicações. Nunca se escondeu. Dá a cara por direitos iguais da mulher; defende em Marrocos a laicidade, o direito a não ter religião num país em que a apostasia é crime, a despenalização da homossexualidade. Betty organiza piqueniques no Ramadão – e por que não, será que algum de nós voltaria a interditar um bom bife à Sexta-Feira Santa?

Betty deu a cara, livre, mas os exércitos de purificação islâmica foram mais fortes: atrás das grades, Betty pode ser condenada por blasfémia. É altura dos nossos prestáveis activistas descerem a Avenida da Liberdade. Talvez de t-shirts negras com o slogan «Alá é lésbica».

Publicado no «CM», na minha coluna «A Vida Como Ela Não É»

São umas chaveninhas de chá

Há alguma ideias erradas sobre os homens. As ideias preconcebidas fundam-se em camadas e camadas de solo batido, crestado pelo sol, flagelado pelo mar. Tudo isso é substancial e imemorável.

Mas vejam, peço-vos, o escritor William Faulkner e o cineasta Howard Hawks. A amizade deles foi mais longa e bela do que a prometida pelas personagens dos actores Humphrey Bogart e Claude Rains no final do célebre «Casablanca». E reparem como já estamos a morar no cliché: quando os homens são amigos, são mesmo amigos, sem falhas tectónicas. Serão?

Quem, em Hollywood, descobriu Faulkner foi Hawks. É certo que os romances de Faulkner já eram celebrados. Já fora publicado «O Som e a Fúria» e crítica e leitores faziam-lhe a vénia. Foi então que Hawks leu «Soldier’s Pay». A quem o quis ouvir e mesmo a quem não quis, Hawks disse: «Acabei de descobrir o maior talento da nossa geração.»

Para terem ideia da raridade de um juízo destes, já depois de Faulkner estar em Hollywood, Hawks levou-o à pesca com o actor Clark Gable. Para Gable, Faulkner não passava de um guionista de serviço. «Mas, já agora – perguntou-lhe – quem são mesmo os melhores escritores?» Faulkner, que não primava pela modéstia, disse: «Hemingway, Willa Cather, Thomas Mann, John dos Passos e Faulkner.» «O senhor é escritor?» espantou-se o actor. «Sou sim, Gable, e o senhor o que faz?», reagiu Faulkner com aquele controlado módico de cinismo e despeito que evita ao ser masculino estar sempre a enfiar socos em trombas alheias.

Ora o que interessa é que Holywood ouviu Hawks e Faulkner foi convidado para escrever guiões. Por uma pipa de massa, um número que envergonha até o que se perdeu no remoto negócio do nosso BES. Faulkner era um grande escritor e os grandes homens não se vendem, não é? Faulkner quis deixar as coisas claras para a posteridade. Aceitou, sim senhor, por razões técnicas, já que «escre­ver por dinheiro – segundo ele – não é pro­pri­a­mente pros­ti­tuir o talento, mas encur­tar as fra­ses».

Hawks ensinou-lhe o bê-á-bá. Faulkner escrevia no estilo vanguardista que lhe reconhecemos, muita montagem, flash-backs, justaposição de tempos diferentes, em suma, um inferno para qualquer realizador. Hawks explicou-lhe o que tinha de fazer se queria levar a mala cheia de dinheiro: «A primeira coisa que quero é uma his­tó­ria. A seguir que­ro persona­gens. Depois salto sobre tudo o que tu pen­sas que tenha inte­resse.»

Hawks tinha outro escritor amigo, Ernest Hemingway. Os dois escritores, os dois amigos de Hawks, Faulkner e Hemingway admiravam-se. Que se saiba, nunca se encontraram e muito menos na companhia de Hawks. Tinham ciúmes dessa amizade. Eis o que queria dizer: estamos a falar de três machos, tipos rijos, estandartes da masculinidade. E, na verdade são umas menininhas ruborizadas pelo ciúme. Dois Nobel da literatura cuscavam Hawks para saber coisas do «rival». Elogiavam-se e picavam-se.

Hawks manipulava-os como se fossem duas virgens do seu serralho. «Daquele pedaço de lixo que é teu livro “To Have and Have Not” vou fazer um bom filme», disse um dia a Hemingway. «É impossível fazer um filme daquilo», reconheceu Ernest. «Eu consigo. Peço ao Faulk­ner para escrever. Seja como for, ele escreve melhor do que tu.»  Ao lado, Hemingway estremeceu: a muralha de touros, caçadas e guerras abalou por segundos.

E é isto um homem. Parecem grandes blocos de mármore. De uma inamovível dignidade. Por dentro uma convulsão de lisonja, ciúme, glass menagerie, chaveninhas de chá a transbordar de miminhos. E, no fim, saem livros intensos. E belos filmes, como «To Have and Have Not».

Publicado no Jornal de Negócios. No Weekend, sempre à sexta.

As Laurindinhas de Hollywood

A guerra não é o heroísmo, a guerra é a morte. E talvez exagere, talvez a guerra seja só a meia-morte. Estarão ainda vivas as personagens de Martin Sheen, no «Apocalypse Now», e de Robert De Niro, em «O Caçador», quando chegam ao fim desses filmes? Ou podemos declarar já o óbito das suas almas, mesmo se os corpos ainda mexem?

Quem partiria voluntário e com exaltação patriótica, se Portugal fosse hoje para a guerra? Que Laurindinhas viriam à janela cantar – «ver o meu amor, ai, ai, ai, que ele vai para a guerra»? Na mais incómoda e perturbante trilogia literária que conheço sobre a nossa Guerra Colonial, e em particular no seu «O Elogio da Dureza», o romancista Rui de Azevedo Teixeira arrasta-nos para o fundo vale de sombras da morte onde o mal nos enlaça pela cintura, para esse vale onde nascem monstros filhos da solidão moral e física do combatente e do inimigo. Pode a moral dos nossos dias, tão acolchoada no conforto e no trivial, suportar a superação do gigantesco medo dos quatro atrozes cavaleiros que são conquista, guerra, fome e morte?

O patriotismo talvez tenha morrido em 1942. Os japoneses acabavam de atacar Pearl Harbour. Hollywood em peso, uma Hollywood a nadar em luxo, futilidade, ademanes artísticos, vibrou de patriotismo. Jimmy Stewart, esse ser hitchcockiano, começou a comer que nem um doido para conseguir atingir o peso requerido pelo Exército, alistando-se a seguir. Chegaria a piloto de bombardeiro e ao posto de tenente-coronel. Tyrone Power, que tinha um casamento branco, não só deixou a mulher, como quem à janela lhe cantou a Laurindinha, foi o amante macho. Tyrone entrou para os marines, pilotando aviões de transporte de tropas no Pacífico Sul.

Ou seja, Hollywood fez mais do que produzir filmes patrióticos. Vejam, mesmo na Normandia, no desembarque aliado, um dos destroyers era comandado pelo actor Robert Montgomery. Ao todo, 12% do pessoal de Hollywood, produtores, realizadores, actores e técnicos, alistou-se nas forças armadas americanas. Henry Fonda, o pai da rebelde Jane de tão boas formas, voluntariou-se para artilheiro na Marinha. O oficial de serviço recusou-o: «Olha lá, sabes o que faz o caralho de um artilheiro nesta merda da Marinha? Morre. Matam-no. És demasiado esperto para seres um caralho de artilheiro!»

E as mulheres, as Laurindinhas de Hollywood? Financiavam a guerra: arranjavam dinheiro. Hedy Lamarr vendia beijos: um beijo a quem comprasse 25 mil dólares em títulos de guerra. Num só dia, Lamarr facturou 17 milhões. Dorothy Lamour foi a recordista: 30 milhões em 4 dias, fechando a sua campanha com 350 milhões. Com beijos e sem beijos, dizia ela.

Mas mesmo no sossego da retaguarda, a morte analfabeta espreita. O esplendor álacre de Carole Lombard casara-se com o epítome da virilidade que era Clark Gable. Carole foi vender títulos de guerra para Indianapolis. Carole adorava Gable: nem era pelo sexo, que já tinha tido melhor, confessava. Mesmo assim, antes de ir angariar beijos, deixara-lhe uma boneca loura insuflada na cama – «para não dizeres que ficas sozinho!» Mal acabou a missão, louca de saudades, em vez do comboio marcado, meteu-se num avião, num voo nocturno, num tempo em que, receando intromissão de aviões japoneses, se voava sem faróis de segurança. O avião embateu numa montanha e todos os ocupantes morreram. Carole tinha 33 anos.

À doçura, à euforia de que, como a rolha da garrafa de champanhe, explode o patriotismo, sucede sempre o cortejo negro do luto.

Quem, hoje, faria por nós a guerra? Teríamos de chamar os bárbaros? E onde estão os bárbaros?

Publicado no Jornal de Negócios, no Weekend das 6.ªs feiras