A dona de casa da Embaixada

As mulheres salvam. Começo com um pedido: ponham nos vossos olhos os olhos de John Le Carré e olhem para Anastassia Douroff. Vejam-na a caminhar pelas ruas de Moscovo, o grave peso eslavo, a saia tão redonda. Concordem comigo: não é mais do que uma anafada dona de casa russa. Mesmo depois de entrar na Embaixada de França, o que é uma surpresa, fica a dúvida: afinal, cabe-lhe dirigir a intendência. É, confirma-se, a dona de casa da Embaixada.

Exilou-a, menina e moça, de casa de seus pais, esse sósia de Bernardim chamado Revolução de Outubro. De alma russa, em Paris, era cristã ortodoxa, mas também católica para poder comungar todos os dias, consagrada na comunidade de São Francisco Xavier. Oh, que maçada, dizem-me os meus leitores, e eu peço que não desistam: cheirem bem Anastassia – Assia, para os amigos – e percebam que o aroma é de mistério.

Assia é uma dessas figuras das sombras que Aleksandr Soljenitsin incensa e canta no seu “Os Invisíveis”. E vejam, Assia está agora a falar com outra fraca figura, Isabelle Esmein. Frágil, tímida, não chega a ser bonita, a não ser quando põe o sorriso cândido, de ser humano doce e bom, como pôs para Khruschev, nos anos de degelo em que a nomenklatura comunista permitiu a Soljenitsin publicar “Um Dia na Vida de Ivan Dessinovitch”, livro que o empurraria para o Prémio Nobel.

Ora, quem manda agora na União Soviética já não é o caótico Khruschev, mas um buldogue, Leónidas Brejnev. Voltou a ladrar-se estalinisticamente e Soljenitsin sente as dentadas. O pidesco KGB já lhe assaltou de novo a casa e levou-lhe cada folha escrita: e não por amor à literatura. Agora, Soljé, como Assia lhe chama, esconde o que escreve e passa o que pode a microfilmes. Como passá-los para a liberdade?

Soljenitsin descobre uma alma gémea num padre, Alexandre Men, que tenta incendiar de espiritualidade o desespero russo do fim dos anos 60. O padre faz a ponte com Assia. E é numa caixa de chocolates, levada por um funcionário da Embaixada de França, que sai de Moscovo, o “14 de Agosto”, primeiro dos quatro tomos da “Roda Vermelha”. Foram as mãos de dona de casa eslava de Assia que montaram essa caixa de chocolates.

Agora, Soljenitsin quer pôr a salvo o mais fiel e veemente testemunho do que são os campos de concentração comunistas. O livro chama-se “O Arquipélago do Gulag” e é monumental: quantas caixas de chocolate serão precisas?

As mulheres salvam!  Assia e Isabelle, numa silenciosa cumplicidade, conseguem receber os microfilmes e, sem que ninguém saiba – qual Embaixador, quais adidos! – preparam a fuga do livro que disputará a “Vida e Destino”, de Vassili Grossman, o ceptro de melhor livro russo do século XX. Isabelle, a coberto do passaporte diplomático, escondeu num saco, que a polícia soviética não podia espiolhar, os microfilmes. Passou e, em Orly, entregou o saco a Nikita Struve, que imprime o livro em russo, numa tipografia de Paris, dizendo aos tipógrafos, ligados ao Partido Comunista francês em campanha contra Soljenitsin, que era uma obra de matemática. Já o KGB tinha apanhado e torturado outra das “invisíveis”, a dactilógrafa do escritor, que não resistiu e lhes entregou o duplicado do “Arquipélago”, enforcando-se a seguir.

Isabelle, como Assia, era catolicíssima, ligada ao militante e missionário círculo São João Baptista. Morreu sem dizer uma palavra sobre esta missão, nem Soljenitsin sabia quem era, a não ser que uma “viajante” contrabandeara o “Arquipélago”. E atrevam-se lá a dizer que na beatificação e na virtude não palpita o germe da aventura!

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Cada um ponha os ovos de que precisa

Mais vale um Lenine na mão do que dois a fugir

A festa da passagem de ano, litros de champanhe e toneladas de passas comidas ao ritmo de badaladas, é o inusitado ritual em que juramos amor eterno à felicidade, como se a Criação do Mundo, assim, maiúscula, começasse às zero horinhas do dia 1 de Janeiro.

O 1.º de Janeiro é sempre um dia “inaugural e limpo”, o que me faz lembrar que 2024 será o ano em que festejamos os 50 anos do 25 de Abril. Há quem diga, com voz de militante seminarista, que “comemoramos”, mas eu corrijo: “comemoramos” é conversa da senhora sua tia, os 50 anos do 25 de Abril têm de ser festejados. O 25 de Abril foi uma das mais impressionantes algazarras de liberdade, loucura, e inocente destrambelhamento colectivo que o modesto povo português já viveu.

Começo por um episódio que nem todos conhecem. Havia duas senhas musicais para os militares avançarem com a revolução. A primeira era o “Depois do Adeus”, a segunda foi o “Grândola”. Mas não era para ser. E agora vejam já os deuses, com o seu arrebicado sentido de humor, a meterem o bedelho nesta coisa dos humanos. Os militares tinham escolhido, do Zeca, o “Venham Mais Cinco”, disco recente. E pimbas, a censura proíbe a canção! Obrigado, censura: devemos-te o ter hoje o “Grândola”, que é ainda “mai lindo”, como símbolo da queda da funesta ditadura de 48 anos.

Há mais acasos. O “Grândola” devia ser emitido pela Rádio Renascença às 00:20. Ora, às 00:05, houve um corte de energia, só recuperado 5 minutos depois. Uff! E, em cima da hora, um locutor, a leste do que se passava, trocou o alinhamento e avançou com um bloco publicitário, pondo em causa a saída da senha. Foi o Manuel Tomás, que conheci na SIC, feito com a Revolução, que conseguiu travar a publicidade e repor o alinhamento para os militares ouvirem, no minuto certo, a canção em que o povo mais ordena.

E agora venham para a rua. O pessoal traz cravos no bolso, na lapela, lambe e come cravos. Já é 1.º de Maio e deu-se a maior romaria a que a Europa assistiu. Era um país de mel, caía-se nos braços uns dos outros. Ouçam só o que se dizia, na rua: “É feio, é feio, ficar no passeio.”

Num desregramento carnavalesco ocupam-se casas, fábricas, herdades. “Ocupem, primeiro; depois, logo se faz uma lei para a ocupação”, esclarece e sossega um militar revolucionário. Numa das herdades, na Torre Bela, um militante activista, que nunca cavou, claro, explica a um camponês que a enxada dele deve passar a ser da cooperativa. E o cavador, numa inocência desarmante, de bom povo, diz: “Amanhã, tiram-me as botas e ficam da ‘comprativa’. Ficam a ser da ‘comprativa’ e eu fico nu.”

A revolução atinge o delírio, nacionaliza-se, os quartéis parecem acampamentos hippies, e as palavras de ordem mais surrealistas inundam as ruas. Ao desvario político, a imaginação dos portugueses responde, então, com algumas das mais poéticas e livres derivas que já vi.

Leiam, leiam. “Abaixo os organismos de cúpula. Vivam os organismos de cópula” é a resposta aos querem abocanhar o poder. Aos que querem cindir o país em revolucionários e reaccionários: “Abaixo a reacção! Viva o motor a hélice.” Desarmam mesmo a questão colonial: “Nem mais um soldado para as colónias! Nem mais uma freira para o céu!”

Cante-se a salubridade mental e a irreverência que resistiu a todas os fanatismos. E não sequestrem a alegria com comemorações moralistas: ser sequestrado chateia o português. Sim, políticos, não façam do 25 de Abril a vossa galinha. Lembrem-se: “Abaixo a exploração sexual da galinha. Cada um ponha os ovos de que precisa.”

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Da estatuária grega aos sininhos natalícios

O estudo é alemão. Debruça-se, com olhar entomológico, sobre o órgão sexual masculino, comumente chamado pénis. Bem sei que parece um tema bizarro, assim posto no microscópio, a meio das celebrações natalícias, mas já lá vamos. As festas natalícias apelam à felicidade e, mesmo se o pénis não é exactamente um pinheirinho de Natal, o certo é que os mais remotos antepassados desta nossa ocidentalíssima cultura o prezavam como símbolo ao qual a felicidade não era alheia.
Gregos e romanos, esses delirantes pagãos a que devemos, da “Ilíada” ao “Satyricon”, a nossa arte de viver e amar, tinham o culto do falo. Basta olhar para Príapo, deus nascido dos amores de Afrodite e Dionisio, sobre o qual a ciumenta Hera lançou maldições: e eis que Príapo nasce com um falo de alto lá, meus senhores!, do tamanho da Torre Eiffel. Pior: escandalosamente erecto. O falo era então visto não só como um símbolo de prosperidade, mas também como um rijo repelente para o mau olhado. Em Atenas, faziam-se procissões em que os cidadãos livres da nossa original democracia carregavam às costas grandes falos, que os mestres carpinteiros tinham talhado a partir do tronco de árvores. Longe de mim pensar em forçar os militantes dos nossos partidos democráticos a arcar às costas com tal engenho e arte, mas acrescento que, tal como Lisboa preza a sua procissão do Corpo de Deus ou da Senhora da Saúde, as aldeias à volta de Atenas não escondiam a alegria de participar nessas priapescas romarias: escolhiam os seus melhores artesãos para esculpirem os mais belos falos causando o espanto dos atenienses.
Dir-me-ão que esta fealdade e até obscenidade está a milhas da beleza mais recolhida e intimista do Natal. Claro que sim! E, não obstante, não oculto que em Pompeia os falos, pendurados à soleira das portas, como vade retro ao infortúnio, eram dotados de asinhas e de sininhos. São estes os originais tintinábulos, que não fosse cá por coisas poderiam ser um enfeite natalício.
E por falar em recolhimento, veja-se que o falo é bem capaz de se acomodar ao melhor ideal estético. Se o hiperbolismo do falo de Príapo nos repugna, toda a libérrima estatuária greco-romana, que celebrou o nu masculino, do atleta ao filósofo, reduz o falo a uma humilde dimensão. Essa redução contém uma mensagem pedagógica e sábia: o pequeno falo em forma de repolhinho (que Miguel Ângelo, na Renascença ressuscitaria) quer ser a metáfora de um ideal de moderação. Por isso, os grandes heróis eram retratados com recolhidos falozinhos (se assim posso dizer), prova de que sabiam dominar as emoções e os mais obscuros desejos, ao contrário da espampanante erecção de Príapo. Parece-me deletério interrogarmo-nos sobre como é que esses anónimos artistas esculpiriam hoje um Montenegro ou um Nuno Santos. Adiante.
Tudo isto para vos dar o resultado do estudo que os hospitais alemães fizeram e teve como base 3500 casos de fractura do belo falo que a estatuária grega celebrou. A fractura, que consiste na ruptura dos corpos cavernosos durante a coisinha mágica que é a erecção, ocorre na Alemanha – e é provável que em todo o Ocidente – sobretudo no Natal. E depois na celebração do Novo Ano. É certo que ali no Solstício de Verão, quando as férias começam, há também números preocupantes, mas são as festividades natalícias, essa animação de rabanadas, filhoses, muita touriga nacional, a principal causa desse crack, seguido de hematoma, que logo interrompe o justificado júbilo masculino. Cuidado com os sininhos natalícios, dizem os médicos alemães.

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Deu-lhe um tiro! Mas onde?

Será a perna de Wanger? Foto de MS Fonseca *

Walter Wanger deu-lhe um tiro. Não houve cá fum-fum nem gaitinhas: um tiro e o homem no chão. E se gemera antes, mais gemeu a seguir. Eis o problema que ficámos com ele: onde é que o homem levou o tiro?

Wanger era um produtor de Hollywood e, se voássemos agora na “magic carpet” dos Steppenwolf da minha gloriosa adolescência, estaríamos em Los Angeles, no dia 24 de Fevereiro de 1951, no parque de estacionamento ao ar livre da grande MCA, a maior agência de talentos, céu e inferno dos actores, lugar de anjos e temíveis diabos.

Wanger andava com a cabeça feita num oito, porventura noves fora nada: produzira um filme, “Joan of Arc”, protagonizado por Ingrid Bergman. Previa-se um êxito arrasador, o rico povo americano às portas dos cinemas a querer fazer selfies com a bela Ingrid, mas eis que a sueca se apaixonou por um intectualíssimo pé rapado italiano, um tal Rossellini. Foge da América, abandona o marido e a filha – por um católico! –, afogando em escândalo e vergonha a alma de Hollywood: Joana d’Arc morria na fogueira pela segunda vez. Ninguém queria ver o filme e a bancarrota ameaçava Wanger: é que nem o Espírito Santo o salvaria, que Wanger, de católico nada tinha.

É a esta cabeça vulcânica que um detective privado diz que a sua mulher, a actriz Joan Bennett, criadora de arrebatadoras “femmes fatales” em filmes de Fritz Lang, esse casmurro que mandara Hitler bugiar, anda a ter um caso. Ter um caso, dito assim, parece uma minudência, mas o torvelinho que era a cabeça de Wanger bem via que isso significava que a sua Joan se despia, tocava, se enrolava com alguém, também certamente despido, num incendiário vai e vem, que só parece ridículo, e em nada aproveita, a quem está de fora.

Wanger, cujo nome se pronuncia como “danger”, meteu-se no carro e zarpou para a MCA. Lá estava, estacionado, o inocente Cadillac verde de Joan. Deu voltas, subiu e desceu a Hollywood Bld e, uma hora depois, a acusadora imobilidade do Cadillac ali estava a denunciar Joan. Wanger estacionou. Esperou em brasa e, aí estão eles: a sua mulher sai com o agente Jennings Lang, ambos irradiando, arrisco, esse bem raro que é a beleza e consolação.

Wanger foi directo e violento. Joan bem gritou: “Vai-te embora, deixa-nos em paz!” E Jennings, o consolado e zeloso agente, levantou as rendidas mãos ao ver a pistola de Wanger. Dois tiros! O primeiro foi roçar-se pelo Cadillac verde, o segundo furou o macio casaco e atingiu aquela área humana que todo o homem preza e que, a tudo ser verdade, Joan também acarinhava.

Ora, aqui, a autoridade divide-se. Uns dizem que sim, em cheio, pelo menos um testículo tombou em combate, outros asseguram que foi na virilha, tiro limpo, preservando a “manhood” de Jennings, que a tudo sobreviveu, anos mais tarde passando a produtor, responsável por dois filmes, “Play Misty For Me” e “High Plains Drifter”, desse outro marco de virilidade, de que nem o #metoo se queixa, que dá pelo nome de Clint Eastwood.

Houve quem jurasse que o tiro de Wanger não foi sequer para atingir Lang, mas sim furar a alma dos milhões de puritanos que não foram ver o filme de Ingrid. Mas Wanger desmente: “Todos falam mal dessa cáfila que são os agentes. Eu fiz qualquer coisa.” Fez e o juiz deu-lhe quatro meses de amena prisão numa quinta reformatório, de onde voltou para o regaço de Joan.

E o tiro, afinal? Nascido de um casamento posterior, um filho de Jennings Lang foi peremptório: “A vital nobreza do senhor meu pai não foi beliscada pelas balas tresloucadas de Walter! Não foi atingido ‘in the balls’. Sou disso a prova viva!”

Publicado no Jornal de Negócios

*Doravante, por questões que se prendem com possível conflito de direito de autor, todas as fotos deste blog são minhas.

Um verso muda o mundo

Vamos ali, ao deserto, modificar o futuro…

Dai-me uma jovem mulher… Se bem me lembro foi com este verso que começou o futuro, o futuro que ainda não chegou, da poesia portuguesa. Corria o ano de 1958, ainda eu não sabia ler, quando esse verso irrompeu como um relâmpago, trovão de ternura, tempestade de desejo, em O Amor em Visita. Tê-lo-á Herberto Helder escrito nesse mesmo ano? Talvez o tenha sonhado um, dois anos antes. Mais improvável, e por inverosímil que pareça, talvez esse meio verso e os versos que logo, colher na boca, se lhe colavam, tenham vindo do futuro, de um futuro que os nossos eléctricos dedos de hoje mal sabem tactear.

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue.
Com ela encantarei a noite.

E eis aqui, neste ritmo inexplicavelmente encantatório, de uma juvenil inocência que nenhuma palavra esdrúxula perturba, um futuro rasgado a crença, potência e uma insustentável extremíssima beleza. O que pode ser o futuro, que não seja esse desejo de absoluto e de beleza?

De onde pode vir o mundo mais humano pelo qual, a cada segundo, golpeados como César por punhais de «também tu, meu filho», tanto ansiamos? Quem, e como, nos resgatará do caos angustiante, labiríntico, do melhor e pior dos mundos de que o incompreensível presente em que vivemos nos faz tão cativos, como os agrilhoados cativos da vaga e escura caverna de Platão?

O futuro já está no melhor do nosso presente: eu bebo a mesma água do Paraíso que Steven Pinker nos serviu no seu Os Anjos Bons da Nossa Natureza. O futuro está nos prodigiosos poderes da medicina que reinventa o corpo humano; o futuro está nessa engenhosa viagem pelo estupefacto cérebro humano, paisagem de líricos silêncios que nos revela que somos, agora, neste instante, tudo o que já fomos e tudo o que viremos a ser; o futuro está nessa alquímica, indecifrável, algorítmica A.I. de transbordante imaginação.

É nesse mundo da ciência que se desenha o futuro: pletórico, imparável, capaz de encantar a noite e o dia, day and night, night and day, se a essa jovem mulher, que a ciência é, juntarmos as antiquíssimas harpas de sombra e arbustos de sangue. Juntemos ao futuro, a um futuro de gloriosa ciência, os mortos do passado, as temporadas no Inferno dos poetas que morreram jovens. Precisamos de voltar a falar com os fantasmas – são tão belos, tão criativos e imaginativos os fantasmas – para que nessa fusão estranha, talvez nocturna, a ciência seja a nova nobreza. A poesia do passado, soubesse-o ou não, estava grávida de futuro; soubesse-o ou não, esperava os deslumbramentos da ciência para sobre ela criar o mais humano mundo de sempre que este profético lema de Rimbaud antecipou: l’élégance, la science, la violence!

Cada dia é um dia novíssimo, inaugural, por nele estar o mesmo Sol, a mesma Terra, a velha, emotiva e humaníssima esperança de uns olhos que se espantam. O mundo, esse mundo em que tudo começa de novo, o admirável mundo humano está nas nossas mãos, como nas mãos de Borges que escreveram estas linhas:

«A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide inclinei-me, peguei num punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais longe e disse em voz baixa: Estou a modificar o Sahara

Texto publicado na revista Líder, num número especial sobre o «admirável mundo do futuro»

Um prazer sem vergonha

O in-famoso Scotty

O que Vivien Leigh gemeu: parecia até que à sua cama chegara o vento que tudo leva! E juro que não estou a falar do filme que a imortalizou. Esqueçam Vivien Leigh: quero é apresentar-vos Scotty. Só assim, Scotty – ele que se chamava George Albert – tornou-se uma figura lendária de Hollywood, quase tão belo e de corpo tão perfeito como Vivien Leigh.

E agora vejam, Scotty voltou da II Guerra sem traumas apesar de ter estado na batalha de Iwo Jima, e está de mangueira na mão a verter gasolina, no cruzamento da North Van Ness com a Hollywood Boulevard. O condutor, o actor Walter Pidgeon, impressionado com a beleza de Scotty, pergunta-lhe se não quer vir dar um mergulho na piscina da sua mansão. Ora Scotty via a vida com um optimismo do tamanho de um tsunami, uma boca que se proibia de dizer a palavra “não”. Foi. E começou ali uma carreira de serviço público que tomara muitos dos nossos ministros.

Para que conste, o sexo penetrara na vida de Scotty pela mão, digamos assim, de padres católicos, ainda ele era uma dulcíssima criança. Como mais tarde, o cientista Alfred Kinsey estudaria com beatífico espanto, Scotty encarava o sexo com santíssima bonomia, providenciando-o a mulheres e homens com a mesma alegria com que atestava os amplos tambores de combustível de um Chevrolet ou de um Plymouth. E nem da mão impertinente dos padres guardava ressentimento.

Junto um pormenor. É relevante. A Scotty, o Senhor Nosso Deus, na sua omnisciente imprevisibilidade, dotara-o de um savoir-faire e de uma souplesse (ele há coisinhas que só mesmo em francês) que convertiam o sexo num festim de liberalidade, poeticamente inocente, tanto visto pela frente como visto por trás. Em suma, era muito bom naquilo. E não vou, com estes juízos técnico-éticos, esquecer-me do tal pormenor: se alguém se sentasse ao colo de Scotty, por mais em repouso que a sua virtude estivesse, logo se sobressaltaria e desfaria em endechas à bárbara escrava que ele ali tinha cativa.

E agora percebem a fila (ah, pois) que se fazia na estação de serviço: vinha toda a Hollywood fechadita no armário. De Cary Grant ao virilíssimo Randolph Scott, do maciço Raymond Burr da “Janela Indiscreta” a Charles Laughton, passando pelo melodioso Cole Porter, Scotty foi um bálsamo na vida deles. Spencer Tracy e Katherine Hepburn, o duque e duquesa de Windsor recorreram à vigorosa amabilidade de Scotty.

Scotty, em 2012, publicou a sua autobiografia. Chamou-lhe “Para Todo o Serviço: as Minhas Aventuras em Hollywood e as Vidas Secretas das Estrelas”. O escritor Gore Vidal, na última aparição pública antes de morrer, veio ao lançamento atestar duas coisas: a exaltação de ilhas dos amores que experimentara com Scotty e a certeza de que ele em nada mentira por não saber o que mentir fosse.

 A ética de Scotty impedia-o de tirar partido dos amantes. Pansexual, digo eu, copiando o sexólogo Kinsey que o estudou, Scotty jamais chantageou. Na sua carreira de cálidos serviços, que vai de 1946 com o citado Pidgeon, então a 20 dólares por noite de prazer, a 1980, viveu em genuína confiança com os seus amantes. Só queria prodigalizar alegria: a felicidade deles, homens ou mulheres, era a sua felicidade. Tirava prazer do mistério e da clandestinidade, e como só as melhores companhias de seguros poderão gabar-se, garantia segurança e confidencialidade.

Ah, sim, o terramoto de prazer que lá em cima, no começo desta crónica, assolava o corpo de Vivien Leigh, essa tormenta que, aqui, no fim se amansa, é culpa do prodigioso Scotty, que nela a pena descansa.

Publicado no Jornal de Negócios

os meus livros de Natal

os meus livros de Natal
livros de one night stand

Sim, eu era então um adolescente em ponto de rebuçado, de Consoadas alimentadas a filhoses, rabanadas e um pão-de-ló etéreo que só as mãos da minha mãe Alice para o irem tirar à boca de Deus. Vejam, vejam: era a cidade de Luanda em toda a sua plenitude trópico-colonial. Se o Menino Jesus descia meio nu à terra aqui em Portugal, imaginem como ele aterrava na cálida noite angolana.

E vou ao que interessa. A noite era longa, Cruzeiro do Sul e uma Lua de 1968, que pé de homem ainda não pisara: um Natal em calor de fogo e um sossego lânguido e de calções convidavam os meus 15 anos à leitura. Nessa noite de Natal de 1968, comecei a ler e só me deitei quando terminei o Tortilla Flat, de John Steinbeck, a que o tradutor português chamou Milagre de São Francisco. Boémia e deliquescente deboche, fiquei fã dessa one night stand: a leitura de uma noite.

É para esse vício, para essa perversão nocturna a que devo a minha precoce miopia e tantas silenciosas asfixias eróticas, que vos quero convidar: neste Natal entreguem-se sem reservas à clandestina e vadia leitura de uma noite. Estes são os meus livros: tomem e leiam todos.

  Não é que Camilo não mereça uma inteira noite de amor, ali que até os olhinhos se lambem, mas Maria! Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe! lê-se em metade de uma noite. Leiam, leiam, está lá – ai, Maria José – uma mãe em sangue e a cabeça de Camilo. E na outra metade, agarrem-se, noite dentro, ao «beija-me com os beijos da tua boca» com que se abre o meu Cântico dos Cânticos, que Eugénia de Vasconcellos traduziu, e que um texto da ousada Agustina, «um tijolo na cama», prefacia, culminando com esta desvairada exaltação: «És como um jovem pavão armado de pernas azuis, e eu amo-te, que Deus me perdoe.»

Livro de uma só noite, agonista como mais nenhum outro de James Joyce, Os Mortos pede recidiva: one night stand no Natal, mas com a perspectiva de um aflito e desesperado regresso, na Noite de Reis, às lágrimas de generosidade dos olhos desse Gabriel que se confessa: «Nunca tinha sentido nada assim em relação a mulher alguma…»

Deixem agora descer a bondade à Terra. Expurguem a maldade, a avareza, a misantropia, como se um retumbante Adeste Fidelis ecoasse na catedral do vosso coração, e leiam, de Charles Dickens, Um Cântico de Natal. A santa noite toda: soletrem com os mais vagarosos requintes as letrinhas do corpo desta missa cantada, uma das mais belas novelas de sempre: é curta, mas dura… dura para sempre.

Formas, se querem mesmo falar de formas, abracem-se às 100 páginas de Amor, o prodigioso ensaio de Jorge de Sena, delicada peça de joalharia sobre o «puro» e o «impuro», o «pecaminoso» e o «santificado», o «sim» e o «não», a «maligna distorção» da beleza e onde, nas mais diversas ordens e desordens, surgem as palavras «prazer», «sexo», «epifania», «paixão» e «posse». Que noite, santo Deus!

Mas se o vosso amor é panteísta aninhem-se na caminha que Pero Vaz armou ao escrever ao nosso rei D. Manuel: Carta do Achamento do Brasil é mais do que um Natal, são dois povos em castíssimos beijos na boca, os corpos enlaçados na dança de seres espantados e arrebatados com a humanidade comum. Ménage à trois, porque a esta noite de um só livro se junta Onésimo Teotónio de Almeida com o seu belíssimo e percuciente prefácio A Carta do Deslumbramento com o Brasil. Que bem desliza, Onésimo.

Duas línguas, francês e português, entrelaçam-se na tradução que o João Moita fez da Saison essa Temporada no Inferno das incendiadas noites de Jean-Arthur Rimbaud, então em plena «puberdade miraculosa». E eu acabo já, se aceitam acabar na minha companhia, no Bordel das Musas, a que Claude Le Petit, morto pelas autoridades francesas na fogueira, em Paris, deu o subtítulo «ou as nove donzelas putas»: traduziu-o a Eugénia de Vasconcellos, desenhou-o João Cutileiro, numa das mais eróticas e espirituais (peço desculpa pela redundância) edições da Guerra e Paz.

Estes são os livros de uma noite. Para serem lidos numa inesquecível noite de Natal, com arrebatamento libertino, fundindo-nos com a eternidade. Que festa! Que felicidade!

A heterodoxa Agustina

Foi mesmo há bocadinho. O Paulo Portas disse, e disse bem, que a Guerra e Paz Editores tem no baú estes livros únicos de Agustina Bessa Luís.

Deixem-me expandir: sei lá como, mas com Agustina estabeleci uma espécie de irmandade secreta. Ela deixava que eu lhe fizesse, digamos, «propostas». Por vezes, aceitava-as, e assim nasceram os dois livros de que o Paulo Portas falou. Só de um mostrou a capa. Mal seria se eu não mostrasse a outra.

Os livros são, garanto-vos, duas pequenas maravilhas. Estão à espera de quê para encherem de Agustina, a grande e tão heterodoxa Agustina, o vosso Natal?!