Junho quente, livro valente

livros de junho, foicinha em punho

Está a chover sobre o Parque Eduardo VII. Chovem livros! Não obstante, arde o sol no azul do céu, a fechar a Primavera, e já se sabe, Junho quente, livro valente. Aos mil títulos da Guerra e Paz que lá temos, juntamos mais dez novidades. Ora ouçam e venham visitar-nos, que Junho abafadiço sai a abelha do cortiço.

Estamos na zona poente, (nos pavilhões B29, 30, 31 e 32), no alto do Parque, com vista soberba para um preguiçosíssimo e lúbrico rio: é o único sítio de onde se vê o Tejo, descuidado, de robe aberto à brisa!

E nessa jam session que é a Feira do Livro de Lisboa, também a Guerra e Paz, com uma voz de Ella Fitzgerald (ah pois), lançará dois novos romances, ambos de estreia: da brasileira Fernanda Teixeira Ribeiro, um inovador Cantagalo, Prémio Revelação Literária da UCCLA-CMLisboa; do português Pedro Fernandes, um negríssimo Os Filhos de Nihil, Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal. Obrigado UCCLA, obrigado Lions.

Ah, o 10 de Junho! Às 17:00, numa sessão que vai ser universal e nada paroquial, Margarida Braga Neves e António Carlos Cortez falam de Camões-Jorge de Sena, e aí se estreará o talvez mais belo dos 5 livros que comemoram os nossos 500 anos de Camões vistos por Sena. Apoiado pela Gulbenkian, o livro chama-se Babel e Sião: está lá, de Camões, a redondilha Sobre os rios que vão, em papel negro escrita a prata. E está lá o conto Super Flumina Babylonis, no primeiro encontro, no mesmo livro, de Sena e Camões enquanto poetas e criadores. Obrigado, Isabel de Sena, por ter abençoado este encontro comovente.

Nesse livro também está o Salmo 136, Babel e Sião, elegíaca digressão sobre o cativeiro de Israel, que inspirou Camões: esse mesmo salmo é o mote de um outro livro lúcido e pungente de Bernard-Henri Lévy, Solidão de Israel, combativa análise da guerra que o 7 de Outubro, perpetrado pelo ataque do Hamas, desencadeou. João Soares e Henrique Monteiro apresentam o livro, no próximo dia 8, às 14:00.

E, ou não se chamasse esta editora Guerra e Paz, juntámos, com a ajuda da Academia Militar e do Instituto Universitário Militar, os melhores especialistas militares e civis de estratégia: o livro chama-se Entender a Guerra Hoje: Estratégia, Guerra e Política. O título diz ao que vamos e a organização é de Antunes Ferreira, Luis Barroso. António Paulo Duarte.

Mas eis do que Junho estava à espera: agora sim, para os que querem perceber de onde vem a mortal pulsão totalitária que cerca hoje as nossas democracias, está completa a História do Fascismo, de Emilio Gentile. Menos de um mês depois do I volume, chegou o II volume. Volume I e II estão na Feira e, no dia 15, às 17:00, Isabel Alçada e Paulo Portas, falarão dessa obra monumental e da colecção Os Livros Não se Rendem, de que, há dois anos, a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações fazem doação à rede nacional de bibliotecas públicas: já ofereceram cerca de 4 mil livros.

Sim, não temos tabus. Contra os modernos gulags e auschwitzes do pensamento, foi com gosto que publiquei, do meu amigo Pedro Correia, Tudo é Tabu, Cem Casos de Censura, onde, com limpidez, se fala, caso a caso, de cem exemplos do que João Ubaldo Ribeiro chamou o delírio «totalitário, autoritário, asnático, deletério e potencialmente destrutivo» do activismo radical dito «politicamente correcto».

Das novas chancelas, que a Rita Fonseca lidera, na Crisântemo, escolheu ela duas digressões freudianas. Nestes tempos narcísicos, de recalcamento e algum Thanatos, é mesmo bom voltar a ler, do velho Sigmund Freud os sempre novos Do Narcisismo e Além do Princípio do Prazer. As edições estão leves, livrinhos de se meterem no bolso… e estão lindas.

Ora, se houve livro em que a Rita se esmerou, para a chancela de ficção, a Euforia, foi no originalíssimo romance em que volta a haver cowboys e cow-girls, mas contemporâneos, e há amores e desilusões com cores novas e originais, regresso à natureza como quem se fecha num monte no Alentejo. Chama-se Feita e Desfeita (Done and Dusted, no original), é de Lyla Sage, passa-se no Rancho Rebel Blue, e o romance é faiscante e de capa linda. Na América já é um bestseller: quem diria que os cow-boys, como Jesus Cristo, também eram capazes de ressuscitar.

Há mais sessões na Feira. Estão todas aqui, com indicação de dia, hora e local. Façam o favor de vir todos, todos, todos.

Manuel S. Fonseca, editor

Glória aos baixinhos

Um metro e meio basta para pôr o mundo arder. Olhem para Elizabeth Taylor. Por esse metro e meio, de uma geografia alcantilada, diga-se, incendiaram-se corações, mentes e corpos. O pobre Richard Burton, que estava a menos de um dedo do 1,80, tinha todos os centímetros em fogo quando via essa pequena Liz. Pior, ainda mais quando a não via.

Liz Taylor não foi caso único. O metro e cinquenta e dois de Joana d’Arc pareceu gigantesco aos franceses guerreiros que queriam expulsar os ingleses invasores. Baixinhas como ela foram Cleópatra e a Rainha Victoria, o que não as impediu de terem o mundo a seus pés.

E deixem que me meta entre as mulheres. Eu tinha então uns 11 anos cambutinhas, como em Luanda se chamava a gente de baixa estatura, e temia a minha profe de matemática, Maria de Lurdes, a quem, à boca calada, chamávamos Joana Bocarra. Vejam-na a entrar na sala de aula. Levantámo-nos como uma mola, bom dia sô tora, tal qual ordenava o ritual do Salvador Correia, o mais belo liceu do mundo. A sô tora olha para a sala, eu lá bem atrás, para fugir a humilhantes chamadas ao quadro, e ela grita: “O menino lá ao fundo, porque é que está sentado? Levante-se!” O menino lá ao fundo era eu e estava tão de pé quanto podia estar, com o meu 1,64, que tomara a Liz Taylor e a Joana d’Arc. Ganhei a solidariedade da turma, de que passei a ser a mascote.

Baixinhos, cambutinhas eram actores como Charlie Chaplin, Woody Allen, Al Pacino, Richard Dreyfuss. Tom Cruise, que vi, olhos nos olhos, numa ante-estreia num cinema da Wilshire Boulevard, é mais baixo do que todas as mulheres dele, mesmo que elas descalcem os sapatinhos de salto alto.

Billy Cristal é outro dos short guys, o que não o impediu, sem para isso mexer uma palha, de arrancar e se maravilhar com o ultra-exuberante orgasmo de Meg Ryan, uma sinfonia expletiva e enfática num prosaico McDonald (?), pequeno monumento gutural, que podem visitar revendo o filmezinho que se chama “When Harry Met Sally”.

Os atributos do cambuta não são apenas os talentos de actor. Os baixinhos podem ver-se contaminados pela sede de poder. Napoleão Bonaparte tinha menos de um 1,70, Churchill a mesma coisa. Alexandre, o Grande, Benito Mussolini, o imparável Berlusconi eram da minha altura e Estaline tinha só mais um centímetro, tal como Lenine.

Franco, o ditador espanhol, com o seu 1,62, era metade de Salazar, e outro metro e sessenta e dois, o de Ghandi, semi-nu, pouco mais de uma tanga, mudou o mundo, derrubando com fragor o Império britânico. Deng Xiao-Ping, o maoista que livrou a China do maoismo dizendo aos chineses que enriquecer era coisa boa, era cambutíssimo, menos de um 1,50. Era, digamos, o Danny De Vito da política mundial.

Com o devido respeito por Lincoln, De Gaulle e mesmo Bin Laden, todos acima de 1,90, nenhum deles tem o charme, mesmo que por vezes tintado de odioso, dos meus heróis baixinhos.

Tinha muita vontade de falar de Ava Gardner, que era uma mulheraça de 1,68, mas dir-se-ia não ser desta história. E lembrei-me que a primeira vez que dormiu com um homem, foi com Mickey Rooney, que media um rasteirinho 1,57. Vestido, era 1,57 de energia, gags e gargalhadas. Despido, diz Ava, “corta uma mulher ao meio, como faca quente a mousse de chocolate”. Lana Turner, a melhor amiga de Ava, que dormira (se assim se pode dizer) com ele antes, e por ele ter incarnado a mesma personagem, Andy Hardy, em vários filmes, chamava-lhe o “Andy Hard-on”, rija delícia da língua inglesa que não traduzirei, deixando-vos com a mousse de Ava.

Publicado no Jornal de Negócios

Um espectro de 2 metros e 120 quilos

Que maciça silhueta de cavaleiro é que provoca um tão luminoso sobressalto na bela mulher madura, de pele ainda tintada de desejo, que surge à porta da casa? Que tensão, que camuflada distância, congela os dois irmãos que, separados há anos, se apertam as mãos quase com vergonha? Sim, sei bem que sabem, que estou a falar da abertura de “A Desaparecida”, de John Ford.

Viram o beijo de John Wayne à testa da cunhada? Que envio lírico se solta desse beijo e embaraça aquela esposa e mãe, pondo nas nossas faces de espectadores o carmim do rubor? Que antigo romance adivinhamos no pudor desse beijo?

Que Ulisses sem Penélope é este John Wayne, saco de desilusão montado a cavalo, de andar desengraçado, de corpo tão estranho à harmonia familiar? Que deus ou deusa da desgraça o soprou do fundo horizonte, cavaleiro vindo dos mortos, para vir assombrar a plácida rotina dos vivos?

Quem, sem dizer uma palavra, nos conta estas histórias é a prodigiosa e poética realização de John Ford, quem as contas são os olhares, os gestos quase imperceptíveis, as inflexões de voz da personagem de Wayne, Ethan de seu nome, das hesitações e tão bonita discrição do irmão e da cunhada, quem as conta é a ousada intrusão da música de Max Steiner.

É esse o milagre do cinema, do pantagruélico cinema que se alimenta do Homero de há 30 séculos. Tão moderno como Homero, John Ford deixa, em pinceladas rembrandtianas, a sugestão de um romance familiar tabu, deixa cair no rosto de John Wayne e da cunhada a gota de amarga saudade do raio de um desejo talvez nunca consumado. John Ford deixa-nos, enfim, adivinhar o escuro ressentimento de quem, como Ethan, nunca provou a lenta pasmaceira da felicidade doméstica.

Não é para essa felicidade que John Wayne está guardado. Ele traz nos alforges os mesmos ventos que um dos deuses deu a Ulisses. E os ventos vão soltar-se e devastar esta família em harmonia, vão devorar esta mulher que vemos entrar em casa de costas, recuando, para não deixar de olhar para John Wayne, numa coreografia tão bailarina, que até dói no nosso manso coração de espectadores.

Os índios, os terríveis comanches, hão de vir a seguir, numa via dolorosa de destruição e morte. Só sobrevive a filha pequenina, Debbie, que os índios raptam.

Ethan, a personagem de John Wayne, o Ulisses mais carregado de ódio que a história da ficção já viu, John Wayne, essa funda mina de negrume, sem ouro nem lítio, irá, de ilha em ilha, de deserto em deserto, em busca dela, da sobrinha Debbie, para repetir o gesto que fez quando a conheceu: Ethan agarrou na pequena Debbie e levantou-a no ar como quem segura nas mãos, contra o céu, a essência da inocência.

Chamei a esse prodigioso movimento, gesto – qual gesto, é mas é um verso, o primeiro verso, verso suspenso à espera da rima que o feche e feche em redenção um longo poema de raiva, som e fúria.  E é este, depois de obtida a redenção, o fecho de “A Desaparecida”.

A porta que se abriu para que este filme começasse e pela abertura dela percebêssemos ao longe a silhueta fantasma de cavalo e cavaleiro, esse Ulisses fordiano que vem em busca da sua Ítaca, fecha-se agora.

No doce útero que é a casa entram e ficam todos, a nova família, o índio Moses, Debbie que um dia talvez venha a ser outra Penélope. Cá fora, de fora, fica apenas, agarrada ao seu amado cotovelo, olhos a esvaziarem-se no infinito, a solidão irremediável, peregrina e estrangeira de John Wayne, espectro de dois metros e 120 quilos, que dá corpo ao mais pungente dos Ulisses, épico como em Homero, trágico como em Dante.

Publicado em Jornal de Negócios

A minha Baby

Há esses pais que se gabam de beijar as lágrimas dos seus filhos. Do que me lembro do meu pai, que não era comigo de muitos beijos, é da felicidade que retirava dos sorrisos que me punha de orelha a orelha. Estava eu a dar a volta dos 12 para os 13, corria o ano de 1966, e ele julgava que me arrancaria um desses sorrisos, um de Luanda a Moçâmedes, ao oferecer-me uma máquina de escrever. Era uma Hermes Baby, teclado azert, verdinha, de se levar debaixo do braço como hoje se leva um tablet.

Olhei para o monstrinho verde, como quem olha para um extraterrestre, numa reacção pessoana, de primeiro estranha-se e mais tarde se verá se se entranha! Sabia lá eu quem era Fernando Pessoa. E ainda menos adivinhava as aventuras que viveria com essa doce Hermes Baby!

Logo nesse ano, depois de me dedicar a aprender a decorar o teclado, com o mesmo afinco com que chutava a pesada bola de catchú no quintal, e depois de ser capaz de bater um texto à máquina de olhos fechados, a minha Hermes, ó baby, ouviu comigo religiosamente os relatos dos jogos desse Portugal que Eusébio levava ao colo pelos belos relvados ingleses. A minha Hermes gritou, chorou baba e ranho e explodiu em glória quando Eusébio vergou a Coreia do Norte à humilhação da remontada de uns zero três a uns cinco a três, essa conta que Deus fez, por Eusébio, por duas vezes, lhe ter ensinado a tabuada da coisa.

A minha Hermes colou-se-me aos braços, entrou-me olhos dentro, e o meu jovem cérebro habituou-se a deambular pelas 47 teclas e pela barra de espaços, deliciando-se a inventar mentiras e a confessar as poucas verdades que ia descobrindo. Eu já quase não batia nas teclas, os meus dedos acariciavam-nas apenas e, depois de fechar as portadas da janela, no semiescuro, despia um bocadinho a Baby, enrolando-lhe dengosamente a fita de tinta vermelha e negra, enquanto o rolo apertava com firmeza, para não dizer que se roçava, como então dizíamos que jean jacques se roçou, pelas duas folhas de papel separadas por um químico (o que eu sempre gostei de duplicados!).

Tornámo-nos inseparáveis. Aos 15 anos, arranquei-lhe poemas, manifestos, um jornal de rua, os novos estatutos de Os Falcões, um clube de candengues caluandas mal saídos dos cueiros, que era o que nós éramos, ali no cruzamento da Fernando Pessoa com a Alberto Correia. Em 1970, aos meus 17, já essa Baby de 4 anos, escrevia os textos do catolicíssimo e progressivíssimo programa Aguaviva, que a luandense Rádio Ecclésia me deixou fazer. E mais, já o teclado da curvilínea Hermes se metia em conversas de adultos, escrevendo uma rubrica semanal, “O Rei Morreu, Viva o Rei”, no grande programa Equipa, de que o patrão, Carlos Brandão Lucas, fazia a coisa mais moderna e fora da caixa da rádio luandense.

A minha Hermes Baby levou pela mão este ceguinho que eu sou revelando-lhe as assombrosas fendas cósmicas da Guerra Fria, pediu-me que olhasse lá de longe a guerra do Vietname, e de perto a nossa ultramarina guerra colonial. Mas devo-lhe sobretudo os êxtases com que olhou para o que em Brigitte Bardot eram “rondeurs” e um ou outro lábil declive.

A Baby correu comigo o mundo, Paris, Grenoble, Lobito, Los Angeles, San Francisco, Pinhel, San Sebastian. Entrevistou a Glenn Close e a Angelica Huston, o Storaro e o Coppola. Mesmo o George Lucas. Descansa, agora, aqui em casa, caixa aberta para que o teclado brilhe. Que o meu pai saiba – diz-lhe, diz-lhe, Deus! – dos mil sorrisos, daqueles de 700 km de Luanda a Moçâmedes, que esse regalo dos 13 anos, arrancou ao meu coração.

Publicado no Jornal de Negócios

João Bénard da Costa, 15 anos

Foto do meu jantar de despedida da Cinemateca, em Março de 1992. O que estarei eu a tentar demonstrar ao João? E o Manel Cintra Ferreira, à direita do João, em que mundos de sonhos estará mergulhado?

Olá, João! Já sei. Não me vai responder. Há 15 anos, que o João persiste nesse silêncio obstinado. Mas quero dizer-lhe que mesmo quando se cerra nesse mutismo, há frases suas que viajam no ar como se fossem cometas, auroras boreais, um meteorito igual ao do 2001, do Kubrick.

E deixe-me passar-lhe a mão pela vaidade – essa, sei que o João a tinha – há 15 anos que ninguém, mas mesmo ninguém, voltou a conseguir amar e fazer amar os filmes como o João nos ensinou a amá-los. Aquela sua forma de amar os filmes acariciando a língua portuguesa, enleando-se lubricamente nela, enchendo-a de beijos levemente salivados, esse modo misterioso de amor há 15 anos que se eclipsou, como se nos tivessem roubado Brigadoon ou a perfeita harmonia do verdíssimo vale que John Ford criou. Se tenho saudades? O que acha, João…

Publicado no Correio da Manhã, na minha Bica Curta

O primeiro tango em Lisboa

Ilustração de Nuno Saraiva

Do último tango em Paris sabem Marlon Brando e Maria Schneider. E do primeiro tango em Portugal? O que sabem os portugueses dos tangos que, com mais ou menos pacote de margarina, se dançaram em Lisboa, no Porto ou em Coimbra no 25 de Abril de 1974? Já se dançaria tango, continuemos a chamar-lhe assim, em Portugal?

Esse tango nu, sobre lençóis ou sobre o mais humilde soalho – que o chão da sala não era um exclusivo de Marlon Brando –, é um tango que os humanos dançaram sempre. E, se bem me lembro, nas noites de Lisboa de 1973, não havia tango que não se dançasse: por cima ou por baixo, pela frente ou por trás, era um tanto faz. Diria até que a líbido escondida, recalcada, a que a Censura não deixava pôr sequer a pontinha de fora, nem nos filmes, nem nos jornais e livros, viria a ser uma força – que força era essa, amiga? – da revolução.

A Revolução de Abril foi, também, uma revolução erótica. Libidinosa até. Não tenho nem preciso de estatísticas, mas tal como o pregador das “vinhas da Ira”, de John Steinbeck, me ensinou que, quando inundados pelos dons da Graça, os seres humanos ganham um sobrenatural incêndio dos sentidos, o que aliás Santa Teresa de Ávila não desmente, tenho a certeza de que a euforia do 25 de Abril, o ronco dos carros de combate, a torre armada da Chaimite com o fálico canhão a dançar em busca de alvo, os milhares de cravos a pôr ao rubro o cano das G3, essa automática que tanto dá para o tiro a tiro, como para a orgástica rajada, puseram em sobressalto tudo o que nos portugueses era libido, desejo, vontade de posse e de entrega.

E se querem voz autorizada a comprová-lo, leiam a revista “Modas e Bordados”. Em 1975, numa carta anónima, Gisela, menina de 15 anos, contava como, na noite de 25 de Abril do ano anterior, depois de correr com o primo, esfusiantes, loucos de alegria, de abraço em abraço pelos lugares da Revolução, fizeram até ao fim o que nunca tinham até aí ousado fazer.

É celebre a cena da jovem rapariga que “inventou” os cravos de Abril. Um soldado – montado numa Chaimite? – pediu-lhe um cigarro. Ela levava na mão um molho de cravos. Estendeu-lhe um, dizendo: “Um cigarro não tenho, se quiser tome, que um cravo oferece-se a qualquer pessoa!” E foi assim que, levantando-se o manto, se deram cravos e se deram rosas, porventura os primeiros botões de rosa.

Diga-se que uma das qualidades da Revolução de Abril é a sua juventude. E deixem-me dizer as coisas pelo nome: foram uns tipos jovens, com ar de actores de Hollywood, que fizeram o 25 de Abril. Em vez de uma Revolução de tropa armada, trombuda, caras de velhos coronéis ou decrépitos generais, os revolucionários de Abril eram uns “handsome guys”, tinham caras frescas, bonitas. Salgueiro Maia, Diniz de Almeida, Sousa e Castro têm 29 anos, mesmo Otelo, esse actor perdido, tem só 36. Parecem saídos de um filme americano dos anos 50 ainda a preto e branco, com belos rostos masculinos, sedutores, na plena posse do vigor ou, para dizer o que os americanos diriam, na plena posse da sua “manhood”.

E é também por isso que, ao contrário do tango de Marlon Brando em Paris, este não é um tango angustiado e ressabiado. O tango desinibido do 25 de Abril não precisou sequer de margarina. Era um tango de inocência, de uma urgentíssima inocência em brasa. Basta ouvir o que se gritou nas ruas e o que escreveu nos muros. Bocas coladas em beijos, corpos incendiados em vaivém, fica para a história essa imortal palavra brejeira e anarquista, que um cartaz e algumas paredes ostentariam então: “Mais vale uma na mão do que duas no soutien!”  

Publicado no Jornal de Negócios

Livros de Maio, maduro Mario

Nenhuma alarvidade nos nove livros de Maio da Guerra & Paz, nem mesmo no livro que dessas alarvidades se reclama, o intrépido, inteligente e curiosíssimo Dicionário Sério de Calão, Javardices e Alarvidades, que o sempre inquieto e irrespeitoso João Pedro George assina. A ironia que o anima faz pendant, atrevo-me eu a dizer, com o trocista, sarcástico e altamente desconstrutivo romance com o belo título Coração, Cabeça e Estômago, do insatisfeitíssimo Camilo Castelo Branco.

Já Camilo, até pelo que que escreveu sobre as cartas de Camões, havia de gostar de ver o seu romance publicado numa fornada que, com o apoio da Fundação Gulbenkian, inclui o encontro de dois titãs, Luís Vaz de Camões e Jorge de Sena, em Os Lusíadas e a Visão Herética. A Guerra & Paz comemora assim os 500 anos de Camões, com este livro em capa dura, faces do miolo pintadas à mão, lombada à vista, ou seja, numa edição que quer ser um brinco e uma raridade, juntando a versão integral de Os Lusíadas a dois textos em que Jorge de Sena nos explica porque devemos ter orgulho intelectual, filosófico e literário no mais esplendoroso poema da literatura em língua portuguesa. (Eu amo este livro: tinha de dizer isto. E obrigado Isabel de Sena por me ter ajudado a viver esta aventura!)

Deixem-me mudar de agulha: outro acontecimento editorial é a chegada do 1.º volume da História do Fascismo, do historiador italiano Emilio Gentile. São as primeiras 700 páginas de uma obra monumental: as próximas 700 chegam – 2.º volume – em Junho. Uma vénia aos meus parceiros, a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações: só a vossa generosa ajuda, disponibilizando a edição a toda a rede nacional de bibliotecas, permite que esta investigação do mais alto rigor chegue até nós. (Caro Luís Parreirão, o meu amigo é o interlocutor que faz feliz qualquer editor. Não lhe perdoo é que goste mais de livros do que eu!)

E como vou agora falar de Insubmisso, Memórias de um polícia? Hoje que a justiça portuguesa vive um fogo cruzado entre políticos e a Procuradoria, entre magistratura e ministério público, este livro mostra-nos o árduo caminho da investigação policial para chegar à verdade, desmontando tantas mentiras: Teófilo Santiago foi o polícia de três processos marcantes, Face Oculta, Apito Dourado e Aveiro Connection. Escutas, pressões, demissões, Teófilo Santiago leva-nos aos incendiários bastidores (há revelações, sim!) desses casos, na companhia do jornalista Eduardo Dâmaso. (Se vai ser polémico? Ó diabos, isso não adivinho, mas é rigoroso, que é esse o middle name destes meus autores)

Falemos de poesia, desses «jovens e belos como a brisa das manhãs», os amantes de Lisboa, que Ana Paula Jardim, vencedora do Prémio de Poesia Glória de Sant’Ana, deixa que lhe invadam o seu novo livro, Rua do Arsenal, talvez para contarem «as pedras como quem lê histórias». Como se pode não o ler?

E entre a poeta e o romancista de que falo a seguir, deixem que invoque o Prémio Nobel. O jovem cientista Stefano Sandrone, no seu Vida de Nobel, entrevistou 24 Prémios Nobel, 9 da Química, 4 da Física, 8 da Medicina e 3 da Economia. É um livro de vida, de ciência, de desafios e descobertas incríveis.

Uma descoberta perturbante e convulsa é a do herói de Nascido de Ninguém, primeiro romance de Frederico D’Orey. Com grande ritmo, acidentada, sem descanso, a prosa de D’Orey leva-nos ao coração da Segunda Guerra Mundial, às suas sequelas e sombras sórdidas, sem deixar de ser um romance portuguesíssimo, com Campo de Ourique em fundo. Estreia a não perder.

E fecho com o meu amigo Paulo Nogueira. Este é o terceiro livro que me manda do Brasil. Um novo ensaio sobre o Ocidente e o wokismo: O Cancelamento do Ocidente. Tem um subtítulo longo: «A sociedade que criou a democracia e o Estado de Direito está a autodestruir-se. Como? Porquê?» O Paulo não se resigna e convoca-nos a usarmos o nosso melhor contra essa vaga destrutiva: o humor, a arte, a tolerância e a ciência. (Komé, Paulo, meu kamba, aí vai o meu candando: estamos juntos nessa luta!)

Da nova chancela, a Crisântemo, um livro ambicioso, com mais de um milhão de exemplares vendidos em todo o mundo: A Chave da Tua Energia, de Natacha Calestremé, oferece-nos 22 métodos para eliminar o cansaço, soltar a energia aprisionada no nosso corpo. Pergunta minha: há algum mal em tentar preencher o vazio com amor e luz?

E aqui está, são os livros de Maio, maduro Maio. Quem os pintou?

Manuel S. Fonseca, editor

Ferro ou seda?

Tinha um marido. O marido tinha nome, claro: chamava-se “o marido de Margaret Thatcher”. A mulher mais poderosa de Inglaterra não vivia na solidão, esquivando-se com esse seu “marido de Thatcher” à mitologia da solidão da mulher célebre, política, escritora, artista, gaveta em que se tenta sempre enfiar a mulher que brilha neste nosso humaníssimo céu de tantos anseios, alegrias, e algumas inescapáveis ignomínias.

 Nunca conheci a dita dama de ferro – e talvez não fosse de ferro, mas só da mesma fibra de outra mulher, Maria de Lourdes Pintasilgo, que atravessou ditadura e democracia: as nossas. Lembro-me que, ainda eu era director de programas da SIC, andava já a experimentar o que poderia ser um editor, e decidi fazer uma Bíblia em que cada um dos livros bíblicos viesse precedido pelo prefácio de uma personalidade: Eduardo Lourenço escreveu sobre os “Salmos”, Agustina sobre o “Cântico dos Cânticos”, Jorge Sampaio sobre o “Ecclesiastes”: era uma via láctea de figuras insignes. Eu queria que Pintasilgo escrevesse, se bem me lembro, sobre “O Evangelho Segundo Mateus”.

Foi da praia da Altura que convidei quase todos os prefaciadores, Adriano Moreira, Pacheco Pereira, João Bénard, o poeta João Miguel Fernandes Jorge, a Clara Ferreira Alves. E todos me disseram que sim. Dessa praia, de dunas e de um areal que antecipa o Sahara, liguei também a Maria de Lourdes. Louvou a ideia, acarinhou logo ali “O Evangelho de Mateus”, porventura o seu texto preferido no “Novo Testamento”, e disse-me que não, que não podia. Usei todos os meus fracos recursos: o mar tranquilo de Altura ia e vinha, como iam e vinham as minhas razões e as contra-razões de Pintassilgo. Tinha compromissos e não podia pô-los em perigo ou sequer beliscá-los.

Não havia nada de ferro na voz de Maria de Lourdes. Beijava com doçura a ideia, o proposto evangelho que o seu texto glosaria, mas era de uma inabalável firmeza na defesa do que tinha, em tempo, de fazer muito bem. Foi uma firmeza de uma hora e vinte minutos, talvez o mais longo telefonema da minha vida: lição de saber e encantamento bíblico, lição também de uma vontade que sabia o que queria e para onde ia, sem tergiversação.

Será a firmeza o traço de ouro da mulher que se distingue? A pergunta é só uma forma manhosa de confessar o que penso. E tanto alinho em minha defesa Angela Merkel como Joana d’Arc, Greta Garbo como Virginia Woolf. Talvez haja firmezas de ferro e firmezas de seda, digo eu.

Como era, por exemplo, a firmeza de Sacagawea, a índia que guiou a expedição de Lewis e Clark? O presidente Jefferson pediu a Meriwether Lewis que explorasse a América desconhecida, para lá do Missisipi, percorrendo as Rocky Mountains, chegando à costa do Pacífico. A expedição arrancou em 1805. Uma mulher acompanhava os 33 homens que a constituíam. Era a índia Sacagawea, escravizada por outra tribo e comprada por um francês, que casou, se assim se pode dizer, com ela. Falava línguas índias, francês e inglês. Levava às costas o filho recém-nascido. Foi ela, essa sua imagem maternal – outra forma de firmeza – que garantiu, como se fosse uma password, a travessia pacífica da expedição. Há um pico, no Oregon, e um rio, no Montana, com o seu nome; um selo e uma moeda de dólar, ambos deste nosso século, têm o seu rosto: de tocante beleza, diga-se.

A inabalável firmeza, eis o que junta as tão diferentes Thatcher, Pintasilgo e Sacagawea. E eu, para honrar a recusa de Pintasilgo, fiz mesmo essa Bíblia, 1500 exemplares, em caixa de acrílico, que mandei vir da China.

Publicado no Jornal de Negócios