O vestido tão justo de Simone Beauvoir

Se muito falavam, mais bebiam. E choravam. De madrugada, debruçados sobre o Sena. Dois deles tinham uma idiossincrasia de Humphrey Bogart. Eram falsos duros, uma ternura de abade de Priscos por dentro, a virilidade judia de um Norman Mailer por fora. Falo de Arthur Koestler e do seu amigo do peito Albert Camus.

Koestler nascera húngaro e fora comunista. Em Málaga batalhara pelos republicanos, na Guerra Civil de Espanha. Talvez ali tenha descoberto não haver réstia de beleza em matar fascistas por não haver em matar beleza alguma. Preso pelos franquistas, ia ser fuzilado. Teve a experiência mística da grande boca negra da morte. Salvaram-no os ingleses. Em Agosto de 1939, ao ver Estaline e Hitler assinarem o pacto nazi-soviético, que deu conforto a Hitler para começar a II Grande Guerra, abandonou o partido.

Num romance, em 1940, revelou com estética, inquietação e personagens de viva vivida o que era a horrenda ditadura comunista e as suas purgas. Koestler descreveu em Darkness at Noon (O Eclipse do Sol, em português), o que, 80 anos depois, alguma esquerda ceguinha finge não ter existido.

Mas esqueça-se a escuridão e o meio-dia. Nos anos 50, Koestler veio com a mulher de então, Mamaine Paget, a Paris. Sentindo que eram as suas almas gémeas, queria conhecer os existencialistas. Entrou pelo gabinete de Camus, na editora Gallimard, e ficou encantado por ver ali sentado um tipo que parecia um fresco e vigoroso jogador de futebol argelino. Ficaram logo irmãos de armas, unidos pelos livros, pela bebida, pelos jantares. Também pelo lúbrico e desabrido desejo de amarem e serem amados por todas as mulheres do mundo.

Camus disse-lhe onde podia encontrar Sartre e Simone: numa soturna cave do Hotel Pont-Royal. Koestler entrou, viu-os e plantou-se-lhes à frente com um “Alô , eu sou o Koestler”. Mergulharam, depois em jantares e vinte dedos de conversa com que exorcizavam as noites, a madrugada e o nascer do sol. Sartre expunha as teses existencialistas e um audaz Koestler saltava-lhe em cima: “Jean-Paul és melhor romancista do que eu, mas não tão bom filósofo.” E os olhos de Koestler agarravam-se ao vestido firmemente cintado de Beauvoir. Tão justo!

Um dia, o casal francês veio jantar junto à cama de Mamaine, a mulher de Koestler. Trouxeram lagosta, presunto e queijo. Depois saíram os quatro e juntou-se-lhes Camus e Francine Faure, sua mulher. Peregrinos à coisa infecta, foram de bistrot em bistrot, acabando no Shéhérezade, clube de nostálgica música russa, uma caverna onde se dançava na obscuridade. Alguns enlaçados litros de vodka e de champanhe exaltaram Koestler: acusou-os de serem cúmplices da URSS! Mas dançou com as três mulheres, e de onde os meus leitores estão não vêem bem, mas vejo eu que Mamaine, a mulher de Koestler, está de cara colada a Camus e se vão furtivamente beijando. Nessa noite, Koestler, de um urinol a que recorreu, gritou para Mamaine, à espera dele na rua: “Não me deixes, amo-te e sempre te amarei!” Talvez adivinhasse já a noite, essa apoteose existencialista, em que dormiria com Simone. Noite acabada, Sartre e a Beauvoir estão já sozinhos, na margem do Sena, em choro embalado pela convulsão metafísica, a tragédia da condição humana a pesar-lhes como um saco de 100 quilos às costas: “E se nos atirássemos ao rio?” Não se atiraram.

Ao rio do esquecimento atirou-se Koestler, em 1983. Já casado com Cynthia, sua terceira mulher, atacado por Parkinson e uma leucemia, matou-se com barbitúricos. Cynthia também. Deixou escrito: “Sei bem que não posso viver sem Arthur.”

Publicado no Jornal de Negócios

Duas camas

É o que o ácido meio mundo de Hollywood dizia: que Charlie Chaplin era uma víbora. Há um leitor a levantar a mão e a sugerir que o insidioso termo inglês “son of a bitch” talvez fosse mais adequado e não serei eu a desmenti-lo.

Porém, uma das duas camas em que se vai deitar esta crónica está cheia de vontade de nos contar outra história. A cama é a de um miúdo, John Huston. E vejam, a cama está no meio de um quartinho do Alexandra Hotel onde então, no tempo do cinema mudo, dormia meia Hollywood. Pais divorciados Huston vivia com a mãe, e fora diagnosticado com o que se pensava ser uma doença incurável, um fígado miseravelmente atacado por nefrite aguda. O clima da Califórnia talvez fosse um paliativo e ali estavam no hotel da gente que trabalhava nessa coisa nova chamada cinema.

Se me dão licença vai tocar um telefone. É para a mãe do puto John. “Vais ter uma surpresa”, diz ela ao filho. E o John reagiu como o meu neto de três anos: “Qual?” A surpresa bateu à porta e entrou: era Charlie Chaplin. Para um miúdo daquele tempo era como se na minha adolescência os Beatles tivessem vindo a Luanda e me entrassem na casa da Vila Alice.

O que eu quero dizer é que o “son of a bitch” soubera que estava ali um miúdo desconhecido com uma doença incurável e fez o que fez: virou-se para a mãe e com um “a senhora tem de certeza coisas para fazer. Vá à vontade, que esta manhã eu fico com ele.” Huston conta que Chaplin fez mímica, palhaçou e conversou com ele, explicando-lhe como fazia cada número. Que belo “son of a bitch”.

Mais tarde, já Huston era o famoso realizador de “Falcão de Malta”, foram apresentados. Huston, constrangido, não falou do longínquo episódio. Mas tornaram-se amigos e, já mais entradotes, numa recepção do consulado italiano em L.A., John não resiste: “Lembras-te de um dia teres ido encantar um miúdo doente, num quarto do Alexandra Hotel?”

O que foste dizer, John! Chaplin eriçou-se, levantou-se de um salto, pegou na mão da mulher, Ona, e saiu disparado. Nunca mais voltaram a mencionar o incidente. Ficou claro: o que fazia a santa mão direita de Chaplin não era da conta do que fazia a “son of a bitch” mão esquerda dele.

Seduzido pelas duas camas de John, e talvez a segunda não seja dele, esqueci-me de me pôr em bicos de pé para contar como o conheci, a Huston, na cinemateca da UCLA, em Westwood. E de como, a ele que já estava de garrafinha de oxigénio, o ouvi fazer o louvor do vinho tinto, que mais deveria ter bebido do que o Bourbon que o entupiu, se tivesse aprendido a tempo.

E estava Huston com o actor Dennis Hopper, para os lados de Palm Springs, os dois numa campanha promocional de um Bourbon horroroso, com um fotógrafo genial, Victor Skrebneski, quando se lembraram que o cineasta John Ford morava ali perto, em Palm Desert. Velho de mil anos, doente e maniento, Ford não saía da cama há meses. Invadiram-lhe o quarto e Hopper, com aquele estilo que exibe em “Apocalypse Now”, “man, man” e coisa tal, diz a Ford: “Mr. Ford, já falei com a sua mulher e ela autoriza-nos a levá-lo de cadeira de rodas para o Victor nos fazer uma fotografia.”

Numa lição de arte, parecida com a que um dia dera a Spielberg, o velho Ford foi fulminante: “Meu filho, sabes qual é o teu problema? É não teres nenhum sentido do drama. Se tivesses sentido do drama, metiam-se já na cama comigo.”

Huston e Hopper perceberam logo a lição e mergulharam na cama de Ford: e esta imagem, sim, é um ícone da essência de Hollywood. E eis como, de uma cama a outra cama, se viaja da compaixão à beleza.

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Não sei se era Brigadoon ou um verde vale

Fim de festa em Brigadoon: casamento de que fui padrinho, a um passo de Angola independente

A primeira vez que bebi uma bica foi – como dizer? – uma estranha decepção. Já conto, mas antes declaro que os anos mais doces da minha juventude foram talvez vividos fora do planeta Terra. Não sei bem, para usar apenas exemplos de filmes, se os vivi em Brigadoon, se nesse Vale que era Verde, do filme de John Ford, que mais chorosamente nos pôs nos olhos a perfeita harmonia. E, entre Brigadoon e o Green Valley, está apresentado o meu bairro de Luanda.

Eram talvez duas da tarde, quando o meu amigo Simão me interrompeu as férias escolares: “Vamos ali ao Miguel, tomar uma bica”. Ora os meus 15 anos nunca tinham ouvido a palavra bica e sabia que, se o meu amigo Simão bebia alguma coisa, era cerveja, branca ou preta, uns finos a estalar, loirinhos ou bem mulatos. A ideia de um fino estupidamente gelado a cortar a suada tarde tropical de Dezembro foi boicotada pela aparição de duas chávenas de café. Em casa bebia-se cevada pela manhã e o meu pai moía café que trazia em grão do Porto de Luanda. Aquilo era mais do que cevada ou café fraquinho. Foi a primeira vez que a estrangeira palavra bica me passou pelo palato, a contragosto, sem adivinhar que poucos anos depois atingiria o recorde de 14 por dia, circunstância a que devo hoje um vago refluxo.

Mas deixemos as mesas do Miguel e vejamos como era o bairro. Ninguém cozinhava só para a mesa lá de casa. As vizinhas gritavam de quintal para quintal, a trocar bolinhos de bacalhau, olhe só como ficaram os meus rissóis de camarão, umas pernas de churrasco, os requintados pudins. Vivia-se em regime de comunismo gastronómico, por vezes objecto de acerba crítica: “Ai, o perú da dona Ausenda, o que é que ela lhe pôs, ficou mole, não dá gosto nenhum comê-lo! Nem com jindungo lá vai.”

Nós éramos uns peregrinos, entrávamos quando queríamos em cada casa, e o meu amigo Abílio era o favorito da minha mãe, porque comia desalmadamente, ao contrário do meu fastio, sendo logo regalado com dois ovos estrelados e vê lá se queres mais um!

Toda a vida era escrutinada, mesmo a mais íntima. Quando o filho de uma das vizinhas desapareceu de casa e, antes de ir para a tropa, se barricou em casa de uma amante mais velha, senhora de vida libérrima, de quintal para quintal a grande dúvida é que água a amante libertina tinha dado a beber ao garboso e aluado rapaz: se água de rosas, se aguinha do cu lavado.

O bairro teve a sua própria quadrilha, a primeira de Luanda a só fazer joalharias, noite calada, e sempre sem vítimas, com entradas espectaculares por uma cave ou pelo andar de cima. Eram quatro rapazes gentis que passavam depois a noite nos nostálgicos cabarets de Luanda.

Tocavam lá os Cunhas, banda do bairro também, que ensaiavam não muito longe do António alfaiate, o primeiro a tirar-me as medidas para um fatinho de casamento, que logo me deixou buelo, despardalado, com a insidiosa pergunta, “então, rapaz, para que lado é que pões a ferramenta, esquerda ou direita?”

Foi nesse doce langor, nessa vida que deslizava ociosa, numa pasmada semi-erecção entre a aurora e o crepúsculo, que um dia a vasta chana da nossa adolescência se derramou, convulsa, vendo o corpo da bela Mimi dentro de um alvíssimo vestido de noiva, a descer as escadas que davam para a mercearia do Adérito. Ia-se embora a jovem mulher que tripulava um londrino triumph descapotável, professora de inglês no liceu, as mais elegantes pernas dos nossos sonhos. Partiam com ela mil dos nossos mais ternos eflúvios. Foi com essa meiga melancolia que descobri a idade adulta e saí de Brigadoon. 

Publicado no Jornal de Negócios

Percebemos melhor quando não percebemos

Desculpem, mas tenho de falar de um dos mais vivos prosadores portugueses dos últimos 50 anos, o João Bénard da Costa.

Leiam os volumes dele que a Cinemateca publicou. Um exemplo: o João está a falar do cineasta alemão Pabst e do filme A Boceta de Pandora e os seus olhos pequeninos e brilhantes descobrem Louise Brooks.

Ó meu santo Deus, a boca do João abre-se rasgando a sua barba branca, o pulposo lábio de baixo já a brilhar com aquela saliva a que João César Monteiro chamou baba divina, e sai-lhe a expressão “o milagre Brooks”.

Qualquer um, agnóstico, ateu, pode usar a palavra “milagre”, mas quando Bénard nos revela que o milagre de Louise Brooks são cenas de beijos, de espelhismos, de dança, de costas nuas, momentos fulgurantes, choques sufocantes, a partir dos quais percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber sabemos que a natureza do milagre, para o João Bénard, é de natureza erótico-cristã, católica portanto.

E sabemos que esse milagre vem nimbado de uma transcendência que o uso trivial da expressão “milagre”, por um agnóstico a descambar para o ateu como eu, em nada cobre.

À escrita do João animava-a essa tinta negra do mistério, essa aceitação exaltada, hagiográfica, do “não perceber”, mas “não perceber” de coração satisfeito, erótico muitas vezes.

O João recusava, já se vê, a vocação totalitária da escrita progressista que tudo quer explicar e encerrar numa História fechada, numa Filosofia sem arestas. Era, avant la lettre, por exemplo, uma escrita anti-woke.

No livro de que vos falo ainda Bénard está em cima de Pabst, ou seja, ainda Bénard está em cima de Louise Brooks, mas já a falar de outro filme, Diário de uma Mulher Perdida, quando descobre nela, na sua lábil carne, no seu olhar tão carregado de tormenta, relâmpagos e sombras, o que o João chama “o desejo do desejo” e o “desejo de pureza”. Estão lá, em Louise Brooks e estão lá juntos esses dois desejos, como gémeos siameses.

A falar de uma cena de beijo-orgasmo-desmaio de Louise Brooks, o João diz que do corpo dessa actriz, do sopro vital que a anima, saem, enlaçados, e cito, “maldição e bênção”, “revelação e perda”, “início e fim”. 

A escrita de João Bénard proclama a fusão de todos os desejos, a busca desse momento pré-Big Bang em que génesis e apocalipse estavam tão sexualmente acoplados como Pai, Filho e Espírito Santo o estão na divina orgia a que os cristãos chamam Santíssima Trindade.

Outro milagre acontece em Rossellini, no filme Viagem a Itália: em plena procissão dedicada à Virgem Maria, perante o milagre de um paralítico que larga as muletas e recupera o andar, um casal desavindo, George Sanders e Ingrid Bergman, descobrem o milagre da reconciliação.

O pouco mais do que adolescente, quase homem, João Bénard foi ao cinema Eden, numa tarde de Outono, tarde de muita luz e muito sol. Viu esta cena, presenciou o milagre e, diz ele, “No fim do milagre desatei a chorar.” Onde os descrentes do cinema, os descrentes de uma estética dos ideais se riem, está o João a chorar.

Toda a sua vida de cinéfilo, de historiador e, acima de tudo, de escritor, o João andou à procura de um milagre: o da verdade que cegue tanto como quando olhamos directamente para o sol. E o João encontrou a verdade.

Cada texto dele soletra essa verdade: percebemos melhor ao percebermos que nada se pode perceber. A verdade do cinema é indizível, a verdade do João é inaudível. Sozinhos, com os escritos do João na mão, a lê-los, é como se estivéssemos no mais fabuloso deserto a olhar as estrelas. Obrigado, João, pelo milagre.

Publicado no Weekend, Jornal de Negócios

Um angélico cometa ou monstro?

Lucien pendurado no cigarro, Kerouac à esquerda

“Fá-los rir, fá-los chorar, deixa-os com tesão.” Sobre a boca que, na United International Press, dava este carinhoso conselho, havia um feio bigode farfalhudo. O bigode, contra o qual já o poeta Allen Ginsberg e o romancista Jack Kerouac se tinham indignado, escondia o que fora a bela cara de Lucien Carr.

Quem foi Lucien? O angélico cometa a que o mundo deve a beat generation ou um monstro? Venham, se faz favor, até 1937. Lucien é um puto de 12 anos, carente de figura paternal, e aparece-lhe, nos escuteiros, ou sei lá eu onde, um instrutor de 26, um homem feito. O miúdo fica fascinado: David Kammerer, assim se chama essa estrela cadente, é um tipo divertido, que enche uma sala de riso, cultíssimo, que fala de poetas franceses, do fulgurante Rimbaud. O miúdo, Lucien, ganha asas, já voa sobre os centrais, a mãe dele, mãe só, encanta-se como só uma mãe só, e deixa-o ir, aos 15 anos, com esse tutor ao México. Quando voltam, talvez Lucien tenha querido soltar-se, mesmo deslargar-se, mas para onde ele vai, outro liceu, outra universidade, Kammerer, com um crístico dom da consubstanciação, lá aparece em figura de gente.

Aos 17 anos, na Universidade de Chicago, Lucien mete a cabeça no forno e abre o gás. Uma tentativa de suicídio? Não, explica ele. Foi, isso sim, a tentativa de criação de uma obra de arte. Uma dúvida: mais na linha de um verso de Rimbaud ou do ready-made urinol de Duchamp? Ou a cabeça no forno seria apenas uma forma de encetar uma fuga de assento etéreo a Kammerer?

A mãe, em cuidados, esconde-o em Nova Iorque, na Columbia University. Agora vejam (e ouçam) bem o que uns miúdos que ainda não tinham 20 anos faziam então – Lucien vai pelo corredor do dormitório e a música que vem de um dos quartos exalta-o. Bate à porta: quer saber quem é o gajo que está ouvir um trio de Brahams! A porta abre-se e aparece-lhe a ainda juvenilíssima cara de Allen Ginsberg.

Lucien encanta a universidade. Através de Kammerer, Lucien conhecera William Burroughs. Por uma colega, Edie, vai descobrir Jack Kerouac, o namorado dela. Lou (já o podemos chamar assim), Ginsberg, Kerouac, Burroughs e as namoradas de três, que Ginsberg leva à boca os bagos de outra vinha, vão –  pelas praias do mar se vão –, à procura de manhãs claras: bebem muito e escrevem como se a literatura, em uivos, estivesse, ali mesmo, a nascer.

E volta Kammerer. Sim, Lou tinha uma pele acariciada por beleza andrógina, um espírito tapete mágico em que qualquer um se queria sentar. Mesmo assim – e diga-me, caro leitor –, rastejaria como um comando pelos corredores do dormitório, alta noite, só para o espreitar a dormir? Não?! Sim, foi o que Kammerer fez, sendo apanhado. Estava cacimbadíssimo.

Eram duas da matina de 13 de Agosto de 1944, os soldadinhos americanos quase a chegar a Paris, à caça de nazis, e Lou e Kerouac tentaram enfiar-se, clandestinos, num barco: queriam ir ver. Foram corridos e separaram-se. Mas Kammerer andava à cata e topou Lou. Tentou mais uma vez seduzi-lo? Terá Lou, como com a cabeça no gás, querido criar nova obra de arte? A verdade é que a sua faca de escuteiro rasgou a carne de Kammerer 12 vezes. Atirou o cadáver ao Hudson e apresentou-se ao juiz, um livro do grande W. B. Yeats, “Uma Visão”, debaixo do braço.

Condenado: dois anos de prisão. A prisão mudou-o. Era a “cola” da beat generation, uivou Ginsberg. Continuou amigo deles e conselheiro. Mas, como Rimbaud, despediu a poesia! Emprego certo, mulher e 3 filhos, que tratou, dizem eles, abaixo de cão, como o feio bigode farfalhudo presumia.

Publicado no Jornal de Negócios

A camarada Greta Garbo

A camarada Greta Garbo ri-se! Do capitalismo ou com o capitalismo?

De que matéria é que se fazem os sonhos? De letras, diria eu. Ora vamos e vejamos, os sonhos dos filmes, antes de serem sonhos, antes de serem aventuras, antes de serem gargalhadas, são palavras escritas. Há, para cada filme, um argumentista, a senhora ou senhor que escreve os textos, que hão de guiar o realizador e ser frases na boca aos actores. Há tempos, os argumentistas mais reputados em actividade elegeram o melhor de sempre na profissão.

Vejam, elegeram Billy Wilder, um austríaco que pronunciava cada palavra inglesa com os pés, mas que tinha ideias e sacava diálogos de uma afrontosa originalidade, para não dizer virgindade. Escreveu coisas geniais e Ninotchka,filme realizado por Ernst Lubitsch, foi uma das obras-primas que saiu da sua máquina de escrever.

Deram-lhe um mote: “Jovem russa impregnada de ideais bolchevistas vai para a assustadora, capitalista e monopolista cidade de Paris. Apaixona-se e passa uns dias de gozo do caneco. Talvez o capitalismo não seja assim tão mau.” Deste briefing, Wilder inventou Ninotchka.

Pois bem, conhecemos a revolucionária Ninotchka na sombria Moscovo e, claro, estamos todos à espera de ver a cena da chegada, a uma gare de Paris, dessa Ninotchka, a que Greta Garbo emprestou rosto, corpo e a rouca voz.

Na gare estão à espera dela três camaradas soviéticos, já inclinados, pela vida que espreitam em Paris, à condescendência social-democrata para a qual, durante os anos da nossa geringonça, até mesmos os inflamados militantes bloquistas se deixaram deslizar, direitinhos ao bolso de António Costa.

Digo isto e não é um despropósito, há qualquer coisa de mortaguiano no primeiro contacto da camarada Garbo com um representante da espécie chauvinista, arrogante, machista, que é o aromático burguês de infeliz produção capitalista. Ela quer estudar a espécie, como um entomologista a sua minhoca.

Como se fosse a inescapável sessão de uma comissão parlamentar, Mortágua, perdão, a camarada Greta Garbo disseca o bicho capitalista e expõe, com uma imbatível lógica escolástica, as misérias que o lacinho de seda, o chapéu de feltro, o delicado fatinho, procuram ocultar. É delicioso ver a comunistíssima Greta Garbo desfazer a miséria do capitalismo.

Parêntesis: verifiquei, com surpresa, tão justa e científica é a previsão do fim do chauvinismo capitalista, que o filme foi, ao tempo, proibido na solaríssima União Soviética, onde julgo que nada era proibido.

 Palpita-me que a culpa foi das palavras que Wilder pôs na boca de Ninotchka, depois dela experimentar uns apaixonados french kisses, arrancados aos lábios e língua do execrável burguês, beijos acompanhados por umas flûtes desse borbulhante champanhe, que faz a glória da França e é a única etílica libação que a minha mulher, a revolucionária Antónia, consente. 

E diz Ninochka, de olhos postos no amado burguês e na taça de champanhe: “Estou tão feliz. Oh, que feliz que estou. Ninguém pode estar tão feliz sem ser castigado. Vou ser castigada. Tenho de ser castigada.

Wilder castiga-a! Se virem o filme, descobrem como: o sólido argumentista austríaco fá-la rir, e rir é o pecado que a velha revolução bolchevista nunca perdoou. Tenho de acrescentar que, hoje, o activismo militante, vetusto, furioso, albardado em culpas, ainda perdoa menos. A conversão de Ninotchka ao riso e ao prazer é o caminho das pedras da sua perdição em Paris e por Paris. As palavras de Wilder fazem com que a camarada Greta Garbo ponha cada pé na pedra certa, ou não fossem as palavras a matéria de que se fazem os sonhos.

Publicado no Weekend, Jornal de Negócios

Seja lá o que isto for

Pode comparar-se um tractorista português a Sir Winston Churchill, que foi primeiro-ministro de Inglaterra, e tinha a extravagância de charutos, bebidas e outros prazeres hoje chibatados na praça pública? Eu diria que sim, se o tractorista português emergir da longa noite que estava mesmo a acabar na madrugada do dia 25 de Abril de 1974.

Mas antes de darmos essa voltinha de tractor, deixemos entre parêntesis Churchill, bora lá à América e sentemo-nos com o escritor Truman Capote, de quem Marilyn Monroe adorava ser confidente. Deliciadamente gay, Capote atraía as mulheres e lá está uma, em Key West, derretida, a pedir-lhe um autógrafo. O já bem bebido marido da dama, afrontado pela “frociagginice” de Capote – essa qualidade que agora o Papa Francisco tornou famosa –, o marido, dizia, veio à mesa do escritor, tirou para fora aquela ferramenta que, nas calças, um homem não sabe se há de pôr para a direita ou para a esquerda, e disse: “Já que autografas coisas, autografa-me isto!”  Ora, “espontâneo” era o nome do meio de Capote, que logo disparou: “Oh, autografar não consigo, mas pôr as minhas iniciais acho que dá!

Seria Churchill tão espontâneo como Capote? Consta que não, que agonizava para encontrar a frase certa, até nos discursos, mas quando a irritação o instigava, a maldade tomava conta dele e feria como um escorpião. À dama que em público insinuou que era uma vergonha a bebedeira com que ele estava, logo Churchill esclareceu: “Estarei desagradavelmente bêbado, milady, tal como a senhora é desagradavelmente feia, mas amanhã eu estarei sóbrio, enquanto a senhora continuará feia.

E agora, música para os nossos ouvidos, prestemos atenção a uma lenda da música clássica do século XX, o maestro inglês Thomas Beecham, a quem devemos um precioso conselho: “Experimentem tudo uma vez, menos o incesto e dançar folclore.” Beecham está ali, no palco, a ensaiar com a orquestra. Mas tem em uma nova violoncelista. O maestro enerva-se com a interpretação dela e grita-lhe, em registo mozartiano: “Minha senhora, tem entre as suas pernas um instrumento que é capaz de dar prazer a mil pessoas e tudo o que é capaz de fazer é arranhá-lo?!

 É altura de subirmos para o tractor: venham dar uma volta com o seu anónimo condutor. Estamos na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 e andaremos pelas 4:30 da manhã. Já passou um mês do falhado golpe militar das Caldas e Portugal está uma pasmaceira expectante. Um homem vai no seu tractor e, de Santarém, começa a ver camiões da tropa, tanques de guerra, uma coluna que lhe parece infindável. Passam por ele, ronronantes, e vão em direcção a Lisboa. É, embora ele não o saiba, a coluna militar comandada por Salgueiro Maia, que irá derrubar Marcello Caetano, e com ele a mais velha ditadura da Europa. O tractorista não sabe nada disso. Pára o tractor, contempla esses veículos gigantes que rodam determinados para Lisboa, levanta-se e grita: “Seja lá o que isto for, viva!” Eis o primeiro slogan do 25 de Abril, uma história que talvez seja só lenda, mas se a lenda é bonita e merece passar a facto, imprima-se e deixe-se entrar na história.

O nosso tractorista vale um Churchill e é bem mais prospectivo do que o grande maestro Beecham. Ou mesmo do que Mark Twain. Enquanto o tractorista de Santarém ou lá próximo está aberto ao futuro, Twain corria a esconder o seu humor no passado. Quando lhe perguntaram o que faria se acontecesse o fim do mundo, disse: “Se o mundo estivesse a acabar ia para Cincinatti: é que lá tudo acontece 20 anos mais tarde!

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend, que sai às sextas. Estou lá, todas as semanas, na última página, já lá vão 5 anos 🙂

Tous les garçons, não é Bob Dylan?

“Não há amores felizes”, canta com uma estóica e tão bela resignação Françoise Hardy. Mas será que pode haver “desamores felizes”? Os amores de Françoise, cinco contadinhos pelos dedos de uma mão, jura ela, foram todos infelizes, estradas acidentadas a desaguar na solidão. Foi na nostalgia de um desamor que Françoise Hardy se consolou, até há poucos dias, até ao dia da sua morte.

Bob Dylan foi esse “desamor feliz”. Lembro que ninguém conhecia Françoise. Vivia, em Paris, não longe do Pigalle, na rua du Aumale, a mesma onde, por menos de um ano, no século XIX, vivera Richard Wagner. Deve ter ficado por ali um acorde da “Cavalgada das Valquírias” à espera, um século depois, de entrar pelo ouvido da pequena Françoise. Ela dormia no quarto com a irmã esquizofrénica, na sala do mirrado apartamento, a mãe, solteira, contabilista pobre e tão infeliz, que tirava prazer de fazer infeliz a filha, capaz de lhe dizer que tinha umas pernas tão magras que lhe ficariam em Guimarães com elas para facas, soubesse Françoise onde era Guimarães.

Interessa é que era Hardy uma menina e começou a cantar. Em 1962, na noite em que a televisão francesa se esgadanhava para analisar os resultados do referendo sobre a eleição por sufrágio universal do presidente da república, sei lá se foi De Gaulle que pediu, aparece num intervalo a menina Françoise e da boca dela ouviu-se uma coisinha moderníssima, a canção que ela escreveu e chamou “Tous les garçons et les filles”. Os ouvidos de França desabrocharam. Escusado será dizer que no dia seguinte, todos os “garçons” e todas as “filles” entoavam, dançavam e se derretiam em tristeza com a encantada jeremiada daquela canção. E derreteu-se a Alemanha, a Inglaterra, a Espanha, e eu em Angola, “la main dans la main”, também.

Do outro lado do Atlântico, soprada pelo vento, chegou às mãos do ainda principiante Bob Dylan, a fotografia de Hardy. Olhou para aqueles ossos a quererem furar as maçãs do rosto, para os seios pequenos, para a cintilante mini-saia e apaixonou-se. E eu, colonialíssimo, em Angola também.

Como eu, Dylan só vira uma fotografia. Como eu, escreveu cartas a essa fotografia, chorou e suspirou nesse tempo em que os tempos tanto mudavam.  Mas eu não canto nem tenho talentos. Bob Dylan, sim. Já Françoise filmava com Hollywood e veio Dylan cantar a Paris, onde também Amália cantou, sala mítica, ao Olympia.

Françoise veio vê-lo. E Dylan, a acústica uma boa merda, falhou. Ao intervalo, recusou voltar ao palco, a não ser que a desconhecida Françoise viesse ao camarim consolar o seu derrotado ego. Ela veio. E tiremos, com a ajuda de Einstein, esses 10 minutos íntimos da fita newtoniana do tempo. No final do espectáculo, Dylan levou Hardy, Johnny Hallyday e mais uma mão cheia de franceses para a soberba delícia que era então o hotel Georges V. De olhos fixados em Hardy, deixou-os a todos menos ela, e na sua suite de americano cantou “Just Like a Woman” e “I Want You” à raptada miúda da rua du Aumale, ali perto do Pigalle.

Se isto não é uma declaração de amor, o que é uma declaração de amor? E eis a minha inquietação:  um tipo do Chega, um tipo do Bloco de Esquerda poderão ainda compreender a gentileza, a doçura, a angústia amorosa que está por trás de tudo isto?

Nada aconteceu, confessa com ternura Françoise, a não ser terem ficado a olhar-se num puríssimo sol, lá, si. Nunca mais se viram, mas Dylan escreveu esta dedicatória num LP: “A Françoise na margem do Sena, sombra gigante de Notre Dame.”

Sim, já houve amor. E que, lá do céu, Françoise continue a ser o “soleil” que tanta falta nos faz.

Publicado na última página do Weekend, no Jornal de Negócios, na minha crónica semanal