
Quero falar-vos de despedidas. Foram já tantas as que vivi. Lembro-me de ter saboreado dois dos mais prodigiosos anos da minha vida na cidade do Lobito, no meio da afrodisíaca independência, numa Angola a ferro e fogo, e lá voltar para recolher uns móveis e cadeirões que me faziam falta em Luanda. Vinha numa carrinha, quase camião, de caixa aberta, a subir os morros da Gabela, a floresta densa, o nevoeiro era um manto sem brechas, e eu sentado no chão da carrinha, entre os móveis, a pujante natureza a roçar-se, tão erótica, pelos meus pujantes 22 anos, os primeiros raios de sol a serem rechaçados, uma lágrima de estupor a fugir-me perante tanta beleza, tanto silêncio e indiferença ao efémero humano. Soube então que a minha vida vadia, rebelde, tão escandalosamente jovem, estava a sair de mim e a esconder o rosto na imutável floresta e nos morros da Gabela. Por lá ficou e deslizará entre lianas, sol tórrido, a neblina das madrugadas.
Um dia, era ainda adolescente, aportou ao cais, em Luanda, um transatlântico italiano majestoso. No convés, vi a mulher mais bela que um adolescente pode ver. Era «a mulher», com a sua aura de mulher, cabelo de deusa, o decote de que nasceram todos os decotes. Chorava. Via-a do cais e, pese embora a minha recente miopia, juro, e jurarei para a eternidade, que ela chorava. Quem a abandonara? Que separação, despedida e dor vinham, com a insuportável doçura da tristeza, acariciar-lhe os braços – seriam morenos os seus braços italianos? – e descer por ela como um rio desce para a foz?
Não chorei muito na morte do meu pai e da minha mãe. Chorei uma só vez. Meti-me no carro e fui de Lisboa a Coimbra – e teria ido em contramão se preciso fosse – mas já não encontrei o meu pai com vida. Já não falava da última vez que o vira, mas ainda escrevera duas palavras na humilde agenda dele, que guardo. Fui ver, sem uma lágrima, o corpo dele na morgue. Já o tinham vestido. Estava tão quieto em cima da mesa. E eu tão calmo a olhar para o pai morto. Sem que previsse, uma torrente violenta fez-me estremecer e um mar de lágrimas irrompeu. Foram três, quatro, talvez cinco minutos de convulsão, choro descontrolado, respiração patética, a mais imprevisível das despedidas e eu tenho a certeza de que o meu pai estava ali. Ainda.
Da minha mãe, a morte estava anunciada. Soube e fui de carro para Coimbra, passava na minha cabeça o filme de tanta ternura, dos dias de amor irrestrito. Uma saudade tranquila. Depois da estação de serviço de Santarém, subia a Serra de Aire, o aflitivo anjo do choro, imparável, dominador, absoluto, tomou-me conta da cabeça, dos olhos e do peito. Não sei por onde o anjo entrou em mim, mas outra vez, como com o meu pai, deixei de ser dono de mim mesmo, arrebatado por essa imensa mão das lágrimas e pelo ronco atroz da dor.
Foram as minhas mais exuberantes despedidas. Fizeram-me bem porque me fundiram num abraço molhado, quase gritado, com pai e mãe, libertando-me para a solidão tão bonita de já não ter ninguém atrás de mim e ser agora eu, ao lado da Antónia, a retaguarda da minha filha e do meu neto, que um dia chorarão por nós o terramoto de três ou quatro minutos convulsos, vindo lá do fim dos tempos.
Contei-vos tudo isto para dizer adeus. Esta é a minha última crónica no Negócios. Por escolha minha. Fiquei com mais uma editora, a grande Gradiva. E quero, por amor aos livros da Gradiva e da Guerra e Paz, dar-lhes toda a minha energia. Aqui, no Weekend e no Negócios, fui feliz. Com os meus directores, com a Lúcia Crespo, minha editora, e, sobretudo convosco, caros leitores. Adeus.
Gosto sempre de ler-lhe a prosa, Manuel. Mas entendo que os livros e as editoras sejam a sua prioridade e desejo-lhe sorte e muitas vendas. Entendo as suas lágrimas fundas até por me ter sucedido algo semelhante nas despedidas maiores da vida. Hoje somos nós a rectaguarda. É plantada nela que lhe vou comprando os livros de minha escolha. Que tenha uma vida boa. Com a Antónia, a Rita e o neto, cujos só daqui conheço, mas fazem parte.
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obrigado, mas esclareço que voltarei aqui. O que acabam são as crónicas na Imprensa. Aqui, há e haverá muita conversa. Da boa, espero.
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A sua felicidade, deve dar-nos alegria. Mas, eu pecadora me confesso, que é enorme a minha tristeza.Sinto que perdi algo muito valioso. Uma das principais razões que me trazem ao facebook. Não me despeço de si, porque irei reler, com prazer renovado as suas admiráveis Páginas Negras que eu denomino por, Páginas Luminosas. Felicidades Amigo, por muitos e muitos anos. Como dizia minha querida Mãe, “Que Deus lhe dê a esmolinha da saúde”
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E ainda tenho muitas crónicas escritas que têm de ir arejar aqui! Obrigado.
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Um gesto raro, num tempo que os livros foram transformados em “outra coisa”.
Não sei se há mais idealismo que coragem, sei sim que é um acto de quem ama os livros, quase acima de tudo…
Que não seja uma tarefa inglória, neste país que ainda olha para a Cultura, como uma ida ao campo para “semear batatas”.
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Eu tenho sempre esperança. A ver, se tenho razão é não é coisa vã.
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