O dia em que não morri

«Dê um abraço ao seu marido.» Já eu tinha a máscara de oxigénio a cobrir-me nariz e boca, foi o que o técnico do INEM disse à Antónia. Por delicadeza ele não disse «Dê o último abraço ao seu marido».

Eis o que confesso a quem me leia: mete-se em nós um silêncio de porcelana quando começamos a soletrar as cinco letras da palavra morte. Dois dias antes descobrira que tinha covid. E em 48 horas, nesse crudelíssimo mês de Dezembro de 2020, a infecção galopou. Ficou rude o meu «murmúrio vesicular»: sibilos, roncos, tosse seca atropelavam-me a respiração. Deitado, eu era uma camélia infecta e gelada. De pé, estertores crepitantes vinham do líquido túmulo que pareciam ser, então, os meus pulmões.

Já depois da Antónia e eu nos arrancarmos do assombrado e órfico abraço, de dentro do seu asséptico uniforme o homem do INEM perguntou: «Consegue caminhar pelo seu pé ou levamo-lo de maca?»

O que é prodigioso no mais humilde ser humano é o subterrâneo fascínio pelo desconhecido. Eu devia ter dito: «Consigo, mas não quero! Jamais caminharei pelo meu pé para a morte…» Porém, uma melancólica atracção pelo grande exterior, um obscuro desejo pela paisagem nocturna de branca lua seduz-nos e caminhamos dóceis, mesmo em direcção à morte, os pés tão doentes como a doente rosa de Blake.

Lembro-me que as urgências do São José pareciam a antecâmara do inferno. Doenças rutilantes sentavam-se de garras abertas ao colo da vertigem de outras doenças. Um grito, «Senhora enfermeira, tenho de ir à casa de banho», punha um acorde trivial e pícaro na obstinada música grave da crua dor daquela urgência.

Quanto éramos? A luz mortiça não deixava ver. Sentado num cadeirão, o cateter nasal a empurrar oxigénio para o meu peito relutante, o que sentia era o laborioso afã humano pela sobrevivência, cada corpo como uma centopeia ou um polvo, cem pés ou ventosas a colarem-se à húmida vida, tão escorregadia.

 Ia a madrugada a meio – as peregrinas wee hours – outra ambulância tirou-me das urgências e levou-me para o Curry Cabral. Dias depois, numa maca a correr pelas áleas que separam os blocos do hospital, outra vez à noite, como se a doença e os serviços hospitalares tivessem entrado na clandestinidade, dois maqueiros levaram-me da enfermaria para o bloco de cuidados intensivos. Via da maca as nuvens, céu, estrelas, talvez a acesa ponta da lua entre a copa das despidas árvores que antecedem o Natal.

Foi então que alguém me disse «Apresento-lhe a morte». A morte é-nos apresentado por eufemismos: pedem para despirmos a nossa roupa, para entregarmos o telemóvel. Percebi que não poderia mais ligar à Antónia, que deixaria para trás amigos e família, os livros e as salas de cinema, sem o consolo de um adeus, de uma última vez.

Entregava o meu corpo nu, como no dia em que nasci, esse dia de que nenhum de nós sabe lembrar-se, entregava o meu corpo nu, que não era já todo o meu corpo, 12 quilos roubados.

Para onde teriam ido esses 12 quilos, quase 20% roubados ao meu identitário eu? Iriam à frente, pelo seu pé, a caminho do lençol escuro da eternidade? Nu, o pobre pénis encolhido, zézinho convertido numa minúscula couve de Bruxelas, nessa nudez e incomunicação, sem um sopro de ar no peito, soube que ia morrer.

Não morri. Hei de contar porquê. Talvez para a semana. Voltei do vale das sombras de mil mortos e saí, minha segunda natividade, a 24 de Dezembro, para uma noite de Consoada só com a Antónia, obrigado a 20 dias de quarentena, mas vestido, o modesto pénis a querer assobiar, rosto oferecido à nova vida: vou agora fazer cinco anos.

Publicado no Jornal de Negócios

2 thoughts on “O dia em que não morri”

  1. Gostei muito, muito. Em 2017, três semanas nos cuidados intensivos, também me recusei despedir-me. Perdi o dobro do peso que perdeu, ainda bem que já recuperei metade, ainda que pouco a pouco, ao longo dos anos. Já gastei 3 vidas, se juntar a essa vez, dois mirabolantes acidentes de carro, espero mesmo ter 7.

    Que bom que ficou cá!

    ~CC~

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