Mulher nua, mulher vestida

É mesmo ali, na Argélia e Marrocos. Há uma mulher nua outra decentissimamente vestida. A mulher nua está livre, em plena rua, a mulher vestida despejada na prisão.

A mulher nua vive em Sétif, cidade argelina de predominância cabila (berbere). A mulher nua é uma estátua erguida numa fonte de Sétif. De seios lindos, coxas expostas, ousada e inocente nesse requebro com que se senta: os habitantes de Sétif orgulham-se dela.

Mas às notórias forças vivas do islamismo repugna toda a iconografia. Por isso, Aïn el-Fouara (Fonte Que Jorra), como se chama essa mulher de mármore, é atacada com regularidade e ferocidade: a martelo, a explosivos, a cinzel. Os islamistas apostam em apagar da face da terra todos os ídolos e, há um mês, a picareta de um fundamentalista destruiu-lhe o belo rosto, quebrou-lhe um ombro e torturou-lhe os seios. Uma orquestrada campanha nas redes sociais e mesquitas, quer despedaçar essa mulher – um estudioso islâmico propôs cobri-la (uma burka?) – mas os orgulhosos cabilas de Sétif teimam em defender a mulher cuja nudez se derrete em água fresca.

Menos feliz foi Ibtissame Lachgar. Todavia estava vestida. Betty vestia a sua t-shirt negra preferida. Psicóloga clínica, é activista e participa, em Marrocos, em manifestações. Sempre de t-shirt negra, com inscrição em fundo semelhante ao visual do terrorista Daesh, na qual se lê «Alá é lésbica». Betty escreve o mesmo nas suas publicações. Nunca se escondeu. Dá a cara por direitos iguais da mulher; defende em Marrocos a laicidade, o direito a não ter religião num país em que a apostasia é crime, a despenalização da homossexualidade. Betty organiza piqueniques no Ramadão – e por que não, será que algum de nós voltaria a interditar um bom bife à Sexta-Feira Santa?

Betty deu a cara, livre, mas os exércitos de purificação islâmica foram mais fortes: atrás das grades, Betty pode ser condenada por blasfémia. É altura dos nossos prestáveis activistas descerem a Avenida da Liberdade. Talvez de t-shirts negras com o slogan «Alá é lésbica».

Publicado no «CM», na minha coluna «A Vida Como Ela Não É»

2 thoughts on “Mulher nua, mulher vestida”

  1. Não acredito que os nossos activistas o façam. Porque o activismo tem linhas e cose-se por elas e com elas. Palpita-me que essa jovem – insubordinada por discordar e ter a coragem de o afirmar contínua e perseverantemente – vá ter (ainda mais) problemas. Pois se até uma estátua nua incomoda! Se há coisa mesmo incómoda, é assistir a um casal em que ele usa calça de ganga e T-shirt e ela está tapada dos pés à cabeça. Sempre há homens muito parvalhões!

    Liked by 1 person

Leave a reply to etbienque Cancel reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.