
Há alguma ideias erradas sobre os homens. As ideias preconcebidas fundam-se em camadas e camadas de solo batido, crestado pelo sol, flagelado pelo mar. Tudo isso é substancial e imemorável.
Mas vejam, peço-vos, o escritor William Faulkner e o cineasta Howard Hawks. A amizade deles foi mais longa e bela do que a prometida pelas personagens dos actores Humphrey Bogart e Claude Rains no final do célebre «Casablanca». E reparem como já estamos a morar no cliché: quando os homens são amigos, são mesmo amigos, sem falhas tectónicas. Serão?
Quem, em Hollywood, descobriu Faulkner foi Hawks. É certo que os romances de Faulkner já eram celebrados. Já fora publicado «O Som e a Fúria» e crítica e leitores faziam-lhe a vénia. Foi então que Hawks leu «Soldier’s Pay». A quem o quis ouvir e mesmo a quem não quis, Hawks disse: «Acabei de descobrir o maior talento da nossa geração.»
Para terem ideia da raridade de um juízo destes, já depois de Faulkner estar em Hollywood, Hawks levou-o à pesca com o actor Clark Gable. Para Gable, Faulkner não passava de um guionista de serviço. «Mas, já agora – perguntou-lhe – quem são mesmo os melhores escritores?» Faulkner, que não primava pela modéstia, disse: «Hemingway, Willa Cather, Thomas Mann, John dos Passos e Faulkner.» «O senhor é escritor?» espantou-se o actor. «Sou sim, Gable, e o senhor o que faz?», reagiu Faulkner com aquele controlado módico de cinismo e despeito que evita ao ser masculino estar sempre a enfiar socos em trombas alheias.
Ora o que interessa é que Holywood ouviu Hawks e Faulkner foi convidado para escrever guiões. Por uma pipa de massa, um número que envergonha até o que se perdeu no remoto negócio do nosso BES. Faulkner era um grande escritor e os grandes homens não se vendem, não é? Faulkner quis deixar as coisas claras para a posteridade. Aceitou, sim senhor, por razões técnicas, já que «escrever por dinheiro – segundo ele – não é propriamente prostituir o talento, mas encurtar as frases».
Hawks ensinou-lhe o bê-á-bá. Faulkner escrevia no estilo vanguardista que lhe reconhecemos, muita montagem, flash-backs, justaposição de tempos diferentes, em suma, um inferno para qualquer realizador. Hawks explicou-lhe o que tinha de fazer se queria levar a mala cheia de dinheiro: «A primeira coisa que quero é uma história. A seguir quero personagens. Depois salto sobre tudo o que tu pensas que tenha interesse.»
Hawks tinha outro escritor amigo, Ernest Hemingway. Os dois escritores, os dois amigos de Hawks, Faulkner e Hemingway admiravam-se. Que se saiba, nunca se encontraram e muito menos na companhia de Hawks. Tinham ciúmes dessa amizade. Eis o que queria dizer: estamos a falar de três machos, tipos rijos, estandartes da masculinidade. E, na verdade são umas menininhas ruborizadas pelo ciúme. Dois Nobel da literatura cuscavam Hawks para saber coisas do «rival». Elogiavam-se e picavam-se.
Hawks manipulava-os como se fossem duas virgens do seu serralho. «Daquele pedaço de lixo que é teu livro “To Have and Have Not” vou fazer um bom filme», disse um dia a Hemingway. «É impossível fazer um filme daquilo», reconheceu Ernest. «Eu consigo. Peço ao Faulkner para escrever. Seja como for, ele escreve melhor do que tu.» Ao lado, Hemingway estremeceu: a muralha de touros, caçadas e guerras abalou por segundos.
E é isto um homem. Parecem grandes blocos de mármore. De uma inamovível dignidade. Por dentro uma convulsão de lisonja, ciúme, glass menagerie, chaveninhas de chá a transbordar de miminhos. E, no fim, saem livros intensos. E belos filmes, como «To Have and Have Not».
Publicado no Jornal de Negócios. No Weekend, sempre à sexta.
São seres humanos e logo, imperfeitos, factor necessário à dignidade literária que lhes reconhecemos. Somos todos barro, mas o barro de que são feitos não é igual ao de toda a gente. Coisas.
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Eu diria que o barro «deles» é mesmo igual ao de toda a gente. O que fazem com o «barro» (pelo menos em certos momentos) é que é sublime e inigualável.
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