Nem santo nem jagunço

Vejamos: há o fio da navalha. E a nossa vida é ir, pé ante pé, por esse fio. Mas, o que nos faz cair para o lado bom ou mau do fio da navalha? Que grão de areia ou leve sopro de vento nos balança para o lado do santo ou o lado do jagunço?

Peço ajuda ao escritor Dashiel Hammett. Já há mil leitores a lembrarem-se de terem visto o filme, «Hammett», que Wim Wenders lhe dedicou ou de lhe ter lido o «Falcão de Malta» («Relíquia Macabra»), a «Chave de Vidro», a «Seara Vermelha».

Os livros de Dashiel são os mais desesperados romances policiais americanos, retratos desencantados do sórdido crime. E antes de os escrever, vejam como os pés de Hammett derrapam no fio da navalha: era filho de um agricultor e aos 14 anos já desconseguira de ir à escola. Foi moço de recados em escritórios, a dar de fino numa fábrica de conservas, a espatifar o canastro como estivador, agente de cargas ferroviárias, seja la o que isso for. Era depressa despedido desses mil empregos e eu sei o que é essa incontinência laboral: entre os meus 17 e 23 anos eram meses, o máximo um ano, a saltar de recepcionista de hotel para escriturário na Missão de Combate à Tripanossomíase (e não é que erradicámos então a mosca do sono em Angola!), ajudante de tesouraria num hospital de medicina física e reabilitação, um quase Bartleby a classificar documentos militares das frentes de combate da lenta guerra d´África.

Nunca experimentei foi esse agudo gelo que trespassou o estômago de Hammett quando lhe fizeram «a proposta». Cansado de ser despedido, Dashiel candidatou-se à agência de detectives da Pinkerton. Acolheram-no. Corria o ano de 1915 e Dashiel tinha 21 anos. Deram-lhe uma missão sórdida: fazer parte das unidades que iam furar e desmantelar greves de trabalhadores. Chegou a infiltrar-se num hospital, ficando na cama ao lado de um sindicalista radical para lhe sacar informação. Também enfrentava, de pistola e faca, o «bas-fond», do que as cicatrizes no corpo e algumas irregularidades no crânio fazem prova. Ou seja, trapaceou, ludibriou, mistificou. Olhando para ele, para essas cicatrizes ainda a latejar, para o seu cortejo de embustes, alguém o achou – eis «a proposta» – um tipo capacíssimo de aceitar 5 mil dólares para assassinar o principal dirigente do movimento sindical.

Hammett viu-se ao espelho: o que fizera da vida dava a alguém o direito de lhe oferecer dinheiro para matar.  O fio da navalha a pôr-lhe os pés em ferida, Dashiel mudou de rumo. Agarrou na massa infecta de atrocidades, traições e pesadelos e fez dela histórias. Não sei se Lillian Hellman, a amante dele por 30 anos, estaria de acordo comigo, mas Hammett não inventou nada: cada linha dos seus livros era suor, sangue e vómito da vida passada. Zero por cento de imaginação, mil por cento de uma puta de vida.

Lillian era uma «vermelha». Os lençóis da cama em que tanto amararam, os beijos, a saliva, outros fluídos fizeram de Hammett um convertido ao comunismo? Uma coisa é certa, três anos após o começo desse revolto comércio amoroso, Hammett deixou de escrever romances. Em Hollywood, a par da militância, entregou-se a uma vida de dissipação, torrando centenas de milhares de dólares em jogo, álcool, a curar gonorreias. E também em processos de assédio e violação. O sinistro fio da navalha voltava a cada noite, em dívidas, evasões de hotéis, bebedeiras atrozes, brigas e desordens.

É essa a história íntima. Para a grande história fica o homem que resistiu, com brio, à caça às bruxas, fiel à sua nova fé. Santo ou jagunço?

Publicado no Jornal de Negócios, Weekend.

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