A bofetada de Baudelaire

Pode uma vida ser plágio de outra vida? Pode a vida de Herberto Helder, poeta português dos séculos XX e XXI, ser plágio da vida de Charles Baudelaire, poeta francês do século XIX? Ambos, Herberto e Baudelaire, cultivaram uma visão romântica, a roçar o heróico, do que deve ser a figura privada e pública de um poeta.  E o que pergunto, dando porventura razão a Platão, é se não há um arquétipo, lá no mundo das Formas, que desce por vezes à Terra e entra num pobre ser humano e o ocupa, como o arquétipo romântico do poeta entrou e ocupou o corpo e o que fosse a alma de Baudelaire e de Herberto!

Baudelaire era, menino e adolescente, o que os franceses chamam «três attaché à sa mére», odiando com vigor e júbilo o padrasto que lhe veio roubar os afagos maternais. Não admira que o padrasto o tenha tentado empandeirar para o Oriente, para Calcutá, viagem que uma tempestade interrompeu, desembarcando-o à força na ilha Maurícia. Durante um ano Baudelaire saboreou as ultramarinas delícias da pele e outras sumarentas fendas e doces colinas dessa África oriental. Ficou-lhe o gosto, já que, regressado a Paris, se deixa arrebatar pelos traços haitianos de Jeanne Duval, com quem há-de partilhar, em convulsão – tanta má fortuna, muito satânico amor ardente –, os vinte anos que não sabe, mas é tudo o que lhe sobra para viver.

O que quero dizer é que Baudelaire, tendo dissipado em 18 meses a opípara herança paterna, foi recebido nos braços tentaculares da pobreza, vivendo na miséria, sem dinheiro, a sua vida de adulto, miséria a que só a evasão pelo álcool, haxixe e ópio oferecia resgate. E talvez não: também terá tocado o céu e o inferno com Jeanne, a amante mulata, e com as putas a quem se dava e que de volta lhe deram a linda prenda de uma senhora sífilis.

Desdenhando os valores burgueses, indiferente a prebendas, provocador muitas vezes – gostava de o ter visto, nesse cavernoso século XIX, a passear em Paris o cabelo com duas madeixas pintadas a azul e verde – uma invencível fidelidade sempre o obrigou: a fidelidade a uma visão puríssima da poesia, uma poesia liberta da moral, cuja elevação estética transfigura o sórdido e a lama em beleza e ouro.

Quem tenha lido a biografia que João Pedro George dedicou a Herberto, no livro que leva o belo título «Se Eu Quisesse Enlouquecia», encontrará no périplo herbertiano esse rasto de Baudelaire e das suas «Flores do Mal»; são pó da mesma via láctea, do amor de mãe ao desprezo pelas honrarias, prontos a esfaquear a objectividade (chamem-lhe verdade, se quiserem) em nome da beleza.

Não se confunda esse etéreo ouro com o pechisbeque de salão. E digo isso a pensar na bofetada que um dia Armand Barthet, então uma celebridade, deu de surpresa a Baudelaire, numa discussão sobre literatura. Chegaram a estar com duelo marcado, que as sensatas testemunhas das duas partes anularam. Barthet tivera êxito com uma sátira a Catulo, «O Pardal de Lésbia», e era conhecido pelo espalhafato – num gesto largo partira uma estatueta a vermelho e ouro em casa de Victor Hugo. O pobre Armand teve um casamento bizarro (logo que descubra o que isso foi, conto) e enlouqueceu. Fecharam-no mesmo num hospício. Conseguiu um dia escapar-se e, com uma lâmina que apanhou, teve a audácia e a horrorosa tenacidade de se castrar. Morreu, a seguir.

Também Baudelaire teve um fim deplorável: a sífilis roubou-lhe a fala. Conseguia apenas articular o termo «cré nom», contracção de «sacré nom de Dieu». Morreu num hospício, pobre e mudo. Hoje, «As Flores do Mal» é dos livros mais vendidos e lidos de sempre.

Publicado no Weekend /Jornal de Negócios

5 thoughts on “A bofetada de Baudelaire”

  1. Farto-me de aprender nestes seus posts. Ainda que já tenha lido Les fleurs du mal que suponho eu fazem parte do seu (dele) essencial. Boas férias, Manuel

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