
«Nada é sagrado», sussurra-se nos átrios dos tribunais, para justificar a larga abertura dos tentáculos do humor. «Nada é sagrado», nem anjos, mesmo arcanjos, e é, diz-se, por essa porta escancarada que o humor, o do Ricardo Araújo Pereira ou de Joana Marques, deve passar. Por aí passou tantas vezes o humor do Herman, que só o que era uma anacrónica RTP se lembraria de banir com caricata censura.
E o que é preciso dizer em voz alta – como o diz uma longa tradição filosófica e jurídica – é que a civilização a que pertencemos se funda numa liberdade tão livre que nos autoriza até a mandar Deus, seja ele Maomé ou Jesus, à merda. A civilização que construímos garante o direito à blasfémia. E não garante só esse direito a Joana Marques ou ao Ricardo Araújo Pereira ou ao glorioso Lenny Bruce. O direito à blasfémia é universal: cada um de nós pode rejeitar dogmas religiosos, seja de que religião for, e todas as formas de criação, da poesia ao romance, passando pelo cinema e pintura nos dão sublimes exemplos de magníficos ultrajes.
Ainda temos a memória fresca do sangue derramado, em Paris, por esse jubiloso bando de jornalistas, ilustradores e humoristas do «Charlie Hebdo». Usaram com inteligência e sem freios auto-censórios a sua liberdade de criticar o fanatismo religioso do radicalismo islâmico. Foram cobardemente assassinados. E voltarão a ser assassinados cada vez que, cedendo às anti-sereias do bom senso, da moderação «pois», e do «vá lá» sensato, calarmos o elogio à irreverência, o hino à iconoclastia.
Levantemo-nos – é que não podemos hesitar – como se fosse a cada um de nós que coubesse fazer as alegações finais da defesa do direito à blasfémia. O que está em causa no julgamento de Joana Marques é mais do que Joana: é uma questão de sociedade, a da preservação da liberdade livre de rir e de fazer rir. Ponham um açaimo nessa liberdade e estaremos a profanar a memória que, das cantigas de escárnio e mal dizer às «Dedicácias» de Jorge de Sena, a «O Virgem Negra» de Cesariny, faz a glória da livre criação em Portugal.
Publicado no CM, «A Vida Como Ela Não É»
acrescentemos a tudo isso um “frouxo” e um “fanfarrão”, não devendo um ser censurado em detrimento do outro. Melhor dizendo, não devendo nenhum ser silenciado. Abraço.
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De acordo. Podem não ser preciosidades estéticas, mas são legítima livre expressão.
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Os irmãos Rosado, que de Anjos não têm nada, talvez aprendam a lição. Joana Marques e qualquer outro humorista não podem ser condenados!
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Albertino, assim o espero, também.
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