
Gostava tanto da poesia de Yeats que era capaz de dizer, com celestial angústia, o poema desse guerreiro aviador que, lá das nuvens, não odiava os que atacava nem amava os que defendia. Nessa altura, nem eu nem a Antónia tínhamos um tostão furado, e o que me fazia mesmo rir era lembrar-me do que Yeats dissera ao gajinho da academia sueca que nunca mais acabava de lhe explicar, em rodriguinhos e salamaleques, que ele ganhara o Nobel da literatura: «Homem, páre lá com a tagarelice e, pela graça de Deus, diga-me quanto é que o prémio vale!»
O que nos teria dado jeito um telefonema destes. Tinha regressado da minha aventura africana Mao-Mao Tsé-Tsé punhinho no ar, e viera da Angola já muito independente com uma mala de livros, três camisas de manga curta, calças cor-de-rosa e outras tão púrpuras como a chuva do puto de Minneapolis.
A Antónia conheceu-me à beira-mar, na Costa da Caparica, em 1977. Tendo-me visto em cima de umas socas hippies de dez centímetros, a que acrescia meio-metro de cabelo eriçado, esse todo fazendo de mim um pedaço de homem de alto lá com ele, a Antónia, dizia eu, apaixonou-se.
Ora além de haver partes que não pertenciam ao todo, o todo apresentava-se descapitalizado. É certo que, mais eu do que a Antónia, sabíamos que o dinheiro não dá a felicidade, mas não é exactamente por isso que a maior parte dos pobres são pobres. E ainda menos os meus 24 anos e os 18 da Antónia.
Conseguimos encontrar uma casa, ali para os Anjos, um quinto andar à pata. Enorme, oito divisões: em quatro só se andava de gatas. Eram umas águas-furtadas. Hoje, a miudagem ofende-se por se dizerem certas palavras e chamam psicólogos para lhes afagarem das murchas meninges às frescas nádegas. Pois bem, para alugarmos aquele pardieiro, entrámos com cem contitos que não tínhamos. Issi, uma ofensa. Juntámo-los entre os seis, a comunidade de base que foi habitar o que alegremente chamámos o pombal dos Anjos.
Éramos três–três em sexos. Cada casal tinha uma das divisões em que, em parte, se podia estar de pé. Partilhávamos o que tínhamos: um desprendido e sumptuário sentido de humor.
A Antónia e eu, ambos a estudar, ainda sem trabalho e uns trocos que se vissem, chegámos ao dia em que só tínhamos papa Nestum para comer. Foi uma das nossas refeições mais memoráveis. Não tínhamos cheta, mas sabíamos que há coisas muito mais importantes e maravilhosas do que o dinheiro. O problema, como nos explicou Groucho Marx que vinha então muito lá a casa, é que, para ter essas coisas importantes e maravilhosas, é mesmo preciso uma real pipa de massa.
O pombal dos Anjos era como a fábrica do Andy Warhol: estava sempre cheio e em festa. Às vezes vinte pessoas. E ficavam a dormir em esconsos de onde para se entrar ou sair era preciso rastejar. Nessa altura, e não sei se o pessoal do PAN gostará de ouvir isto, já tínhamos aprendido a calafetar buracos nas paredes com gesso e vidros partidos: rato que tentasse entrar arriscava fatal dói-dói na roedora boquinha toda.
A primeira oferta de emprego foi um part-time: a Antónia e eu íamos colar selos e fechar cartas ali – olé – para o Campo Pequeno. Era um dinheirinho escasso! Mas a vantagem da falta de pilim é que uma pessoa se habitua a gastar pouco. Lembro-me que tínhamos numa das paredes um poster com Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao. Só mais tarde soube que Karl Marx deixou de escrever e se despediu do New York Tribune, por lhe pagarem mal. Ele gastava muito e gostava. Nunca teríamos colado selos se o barbudo nos tem avisado antes.
Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend
É claro que teriam colado selos e fechado envelopes na mesma; também fiz isso para ajudar amigos aflitos com resmas de cartas amontoadas nas mesas e cadeiras de um andar minúsculo. E tinha inveja deles, imagine, porque conseguiam ganhar algum. Marx era, como nós, humano. Gastava bem quando tinha e ainda beneficiava da graça de um amigo do peito, abonado pela fortuna e que lhe zelava pela família quando necessário. Se os amigos e a família são como nós, há que ir à luta. Escrevesse o que fiz, mesmo sem socas de meio metro (que me dariam jeito), e apenas umas trancinhas nos cabelos – os meus brevíssimos sinais hippies e totalmente grátis -, se acrescentasse que não tive a graça de uma Antónia no masculino (nem precisava essa beleza esfuziante de que o Manuel beneficia), digo-lhe que me honra bastante pensar na benesse do meu passado. Portanto, acredito que vos aconteça ainda o mesmo maravilhamento. E sejam felizes, “faça sol ou faça chuva”, como ouvi numa canção qualquer
LikeLike
Ah, sim, etbienque, canto e cantarei sempre a benesse do meu passado. Para a semana há mais.
LikeLike