Pai do próprio pai

Pode um filho ser pai do próprio pai? Para a posteridade literária, o escritor Albert Camus será sempre o pai substituto do professor Louis Germain, pela simples razão de ter sido, como aluno, o seu filho dilecto.

 Serei eu, além de filho da Alice e do Artur, filho também da professora Emília, que amorosamente cultivou, nos meus 9 anos de idade, o gosto de saber nomes de rios e de montanhas, de reis e puríssimos heróis, bem como a arte de ler em voz alta, com som, drama e chama, os poemas e os textos do livrinho salazarista da 4.ª classe?

O que eu nunca fui, por tê-la perdido no rosário do tempo, foi pai dessa minha professora-mãe, ao contrário de Camus, de amarrado cordão umbilical ao professor Germain, trocando com ele, ao longo dos anos, as mais belas cartas de devoção e reconhecimento.

Camus resgatou do anonimato a figura do professor: Louis Germain foi arrancado ao túmulo do esquecimento, renascendo com e por Camus para a pequena imortalidade literária. Os textos de Camus foram o pai que lhe deu a sua nova vida.

O pai morto em combate na batalha do Marne, tinha ele 11 meses, Albert Camus procurava um pai substituto. Ninguém melhor do que Louis Germain sabia do que ele precisava. O pai de Germain morrera tinha ele 4 anos, tal como o meu avô paterno, José Fonseca Alves, deixou aos 7 o meu pai órfão. E tal como o meu pai desarvorou Império colonial dentro, para sacudir das mãos a terra camponesa, a enxada, a dureza da apanha da azeitona e das vindimas, também o encontro de Germain e de Camus aconteceu na colónia argelina.

A minha professora Emília, na Escola da Missão de São Paulo dos italianos Padres Capuchinhos, em Luanda, no seu delírio e fé vocacional, viu em mim uma qualquer luz e conjecturou que eu viria a ser Papa. Ora eu logo recusei pôr um pé que fosse no seminário. Mais rigoroso e severo, o professor Germain viu o diamante da excepcionalidade nesse Camus, também órfão, a tentar escapar-se aos dedos ávidos e ferozes da pobreza. O que o convenceu? A alegria de Camus na escola, a simpatia e o optimismo que irradiava. E tal como a minha Emília fez com os meus pais, levando-me para o templo que era o Liceu Nacional Salvador Correia, Germain convenceu a família do pequeno Albert, de que ele teria de estudar no grande liceu de Argel.

Às asas de professor Germain somaria ainda as asas da aventura e do heroísmo. Já fora ferido na I Grande Guerra. Lutaria, como voluntário aos 58 anos, nos Corpos Franceses de África, juntando-se ao desembarque aliado no Norte de África, na II Guerra Mundial.

Mas foi também músico. Clarinetista em várias orquestras, Germain chegou a professor do Conservatório de Paris, tendo depois sido primeiro clarinetista da Orquestra de Argel. Defendeu a independência, ao contrário de Camus, ficando até à morte em Argel.

Ao ser agraciado com o Nobel da Literatura, Camus fez chegar a Germain uma das mais nobres cartas alguma vez escritas. Camus jurou-lhe que «sem a mão amorosa que estendeu à pobre criança que eu era» nunca o Prémio teria sido seu. Acrescentava: «Não faço alarde deste tipo de honra. Mas esta é pelo menos uma oportunidade de lhe dizer o que o senhor foi e ainda é para mim e de lhe assegurar que o coração generoso que pôs no seu trabalho ainda está vivo em um de seus pequenos alunos.» E despedia-se desse professor que continuava a tratá-lo por «meu pequeno Camus», abraçando-o com todas as suas forças, o que eu palidamente tento imitar com o «abraço rijo» com que me despeço de quem gosto e, hoje, de quem teve a santa paciência de me ler.

Publicado no Jornal de Negócios

6 thoughts on “Pai do próprio pai”

  1. Mau, Maria! Então vai deixar-nos?!… Ou deixa apenas o Jornal de Negócios? Não quero crer que abandone a blogosfera e a escrita. Para que tal acredite, terá o Manuel de o dizer aqui, preto no branco (sou como S. Tomé, mas sem a aura). Não consigo acreditar que vá apenas dedicar-se à editora e à família onde pontua esse neto que decerto já lhe marca golos sem destino; que não existam palavras que se escapem dos dedos e faça nossas também. Mas nada é impossível, tudo é efémero. Irredutível, só a morte.

    Camus é um dos meus heróis. Mas só hoje soube, cabalmente, a influência do seu professor primário (bem haja!).

    E quantos de nós devemos grande parte do que somos a um(a) professor(a) que vislumbrou qualquer coisa de diferente e era pena perder-se. Alguém que batalhou por nós e nos sonhou um futuro outro; que abriu caminho e se incomodou a falar com pais; pediu favores; ousou estender para nós o tapete nunca antes possível aos nossos passos.

    Brindo a esses mestres intuitivos e sensíveis a valores que mais ninguém via nas crianças que fomos. A maioria de nós não saiu da mediania, e não será lembrado senão pelos que lhe foram próximos e, desses, só ínfima parte nos guardará na memória como jóia sagrada; grande número não preencheu os sonhos do(a) professor(a) – voar alto! – e foi apenas ave de pequeno porte. Mas voou! Nem todas as asas são de falcão ou águia.

    Quem nos dera podermos agradecer uma e outra vez a nobreza de carácter dos mestres que nos formaram e, sem mão, nos conduziram a caminhos que não ousávamos sonhar. A eles somos infinitamente gratos. Habitam-nos. Naturalmente.

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  2. Manuel S. Fonseca. Não perco a sua página que para mim brilha como um sol.A sua escrita maravilha-me. Utiliza de forma natural vocábulos que me lembram diamantes. Sempre muito agradecida.

    Carminda Canha

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