
Era tão bonita, era tão casada e era tão viúva. Somerset Maugham, escritor inglês fino e viperino, fascinado pelas sombrias e viscosas profundezas dessa particular espécie de ser humano que é a aristocracia, nos seus tempos de impenitente frequentador da então milionaríssima Côte d’Azur, num almoço festivo, disse: «Consta que vive por aqui, em Cap Ferrat, uma lady que matou os seus quatro maridos!”
A lady, a tão bela Enid Kenmare, condessa de Castlerosse ou viscondessa de Furness, e já corrijo, duquesa de Kenmare, estava a dois passos do Maugham, a quem sempre agradecerei a purificadora e tormentosa viagem adolescente que foi ler-lhe o seu romance «O Fio da Navalha». Lady Enid deu esses dois passos e olhou de frente para Maugham: «Acha que pareço uma assassina?»
De uma coisa Maugham teve a certeza, a pele branquíssima, coberta de esmeraldas, tules diáfanos, sedas a esvoaçar à volta do corpo, Lady Enid pareceu-lhe uma Vénus.
E foi o que terá parecido a cada um dos maridos mais velhos com que esta australiana, nascida em Sidney, vaga e distraidamente arrivista, se casou. Amante de um milionário americano, com quem ficou de gentil amizade uma vez consumado o suado e sussurrado comércio amoroso, foi ele que lhe apresentou outro milionário, o primeiro marido, bem mais velho, que no ano seguinte bateu a bota, diria eu, se esta não fosse uma crónica de grande elevação e requinte lexical.
Herdeira do americano, ainda sem o pesadelo das tarifas de Trump, Enid exportou-se: daí em diante só se casou com aristocratas ingleses. Três ao todo: mais três casamentos, mais três funerais. Primeiro o brigadeiro «Caviar» Cavendish, com quem viveu 14 anos acima de qualquer suspeita. Uma vida sumptuosa, roçando até ombros com a família real, o rei George e a rainha Mary. Mas ninguém é de ferro e uma hemorragia cerebral, em Paris, riscou Lord Cavendish do mapa
Duas vezes herdeira, Enid casou com Lord Furness, uma grande fortuna em barcos, viúvo com a suspeita de ter atirado a mulher borda fora do iate, ao largo da bela Côte d’Azur. Ou seja, enfrentavam-se dois amantes que talvez já tivessem dado as mãos ao homicídio. Sete anos depois, Lord Furness tombava, sem apelo nem agravo, também em plena França, mas agora ocupada pelos nazis, em Outubro de 1940.
Enid conseguiu fugir e ainda a guerra não tinha acabado já a embalavam outros nédios braços. Casou-se com o duque de Kenmare, um aristocrata enorme, 116 quilos bem pesados. O bem-disposto Kenmare, distraído, sentou-se um dia em cima de um cão, que logo morreu sufocado. Kenmare também: às mãos de Enid, e com a ajuda de uma seringa, diz-se. O casamento durou menos do que um ano, o fatídico tempo de um governo maioritário de Costa ou de um minoritário de Montenegro.
A Somerset Maugham, de quem Enid ficou amiga para a vida, com muito bridge e confabulação maledicente à mistura, talvez Enid tenha confessado que casou primeiro por amor, a seguir por posição social, em terceiro lugar por dinheiro, e por fim pelo título de nobreza.
Era o que lhe reprovava a intermitente amiga Daisy Fellows, cujo nome de nascimento, Marguerite Séverine Philippine Decazes de Glücksberg, atesta o «pedigree». Quando, em conversa, Enid começou a dizer «as pessoas da nossa classe», Daisy cortou rentinho: «Um momento, Enid: da tua classe ou da minha?»
Mais tolerante e irónico, Maugham, em vez de lhe chamar Lady Kenmare, tratava-a por Lady Killmore. E esse título sim, até Daisy lhe reconhecia: «Vou dar um jantar de seis casais. Cada um dos doze já matou. A presidir vai estar a Enid. Foi a que, de todos, matou mais.»
Publicado no Weekend, suplemento do Jornal de Negócios
Vejo que demoraste tempo a comer o cordeiro de Deus. Tinha uma para te rememorar Angola, mas já não sei onde está. De qualquer maneira, tenho outra para te recordar que do pó vieste e ao pó tornarás:
https://feriadoauportugal.blogspot.com/2025/04/uma-rapariga-da-minha-idade.html
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Ainda não encontrei Angola, mas sabendo do teu sincero afeto pela sociedade igualdade LDA, há um ovo de Colombo que podes tentar em casa:
https://feriadoauportugal.blogspot.com/2025/04/a-estrategia-para-integracao-da.html
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Os teus dois posts são exemplares. Tens de ir ao próximo Congresso do BE, Maturino.
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A senhora era fabulosamente bonita. E saudável. Não conseguimos saber se gostava mais de estar casada ou viúva; mas podemo-nos decidir pelo primeiro estado; afinal, viveu uns bons anos de casamento. Gostei de a conhecer. Um livro que leio de anos em anos, “O fio da navalha”.
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Fio da navalha, sempre.
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