A infância é uma vírgula

A jovem de Marraquexe tinha, disse ele, as ancas estreitas de um rapazinho e os seios de uma rija pureza pontiaguda. Mas antes que o insondável perfume feminino nos atordoe, deixemos cair nesta crónica a sonâmbula vírgula da infância.

O pequeno Richard nasceu quando Hitler bombardeava Londres. Era um bebé indesejado, cujo nascimento deixaria a mãe solteira em apuros. Um casal, os Blair, ambos estéreis, adoptaram a criança, criando-a a partir das três semanas. Mas os muito progressistas Blair, que já tinham escapado às perseguições de Estaline, na Guerra Civil de Espanha, onde se tinham batido contra os fascistas, tendo descoberto que não há beleza nenhuma em matar seja quem for, não tiveram melhor sorte com Hitler. Uma das bombas voadoras largada pelos pilotos nazis arrasou-lhes o atónito apartamento em Londres. Um pingo de sorte: não estava ninguém nem o pequeno Richard em casa.

Os Blair, como os meus sempre bem informados leitores sabem melhor do que eu, são Eileen e o seu marido Eric, o autor de «1984», livro que assinou, como «A Quinta dos Animais» e outros, com o pseudónimo de George Orwell. Os Blair levaram Richard para o campo, a viver numa solidão pujante de natureza, de sons maduros, águas e ventos selvagens, dando-lhe de bandeja uma infância que gesticulava de felicidade por dentro.

Mas acho que estou a ir depressa demais, sem dar tempo ao mistério e ao assombro. Vejamos, Eileen estava anémica e perdia sangue. Decidiu, contra a vontade dos médicos, fazer mesmo uma histerectomia. Morreu na mesa de operações. O pequeno Richard perdia assim, em menos de um ano a sua segunda mãe. O que faria agora o desengonçado George Orwell, quase um metro e noventa, com a figura destrutiva, absorvente, totalitária, de um pequeníssimo ser que rasteja?

Orwell ficou devastado com a ignóbil morte de Eileen. Sabia quanto ela queria aquele bebé e o que ansiava pela vida no campo, após tanta guerra. Orwell tomou uma decisão: seria praticamente mãe e pai.

E é difícil imaginar um pai melhor do que Orwell: dava liberdade a Richard para correr os campos. Com botas fortes, por causa das cobras. Faziam caminhadas juntos, levava-o a pescar e quase morreram afogados, quando saíram de bote com mais pescadores e foram apanhados num redemoinho que lhes virou o barco, sendo salvos no último minuto, como no cinema. Orwell escreveu a um amigo: «O miúdo adorou cada minuto daquela luta, salvo quando caiu à água.» Uma foca, curiosa como um deus, esteve sempre a observar a quase tragédia dos dois.

Orwell fazia-lhe, como o meu pai me fez, brinquedos em madeira, e Richard estava em cima de uma cadeira a vê-lo construir um quando caiu sobre uma jarra que lhe deixou uma cicatriz para a vida. Numa festa, apanhou o cachimbo do escritor, encheu-o de tabaco, e acendeu-o à frente dos convidados, tentando fumar e acabando enjoado na cama.

Aos cinco anos, Richard vê o pai retrair-se, quase não lhe tocando mais. O pai desaparece e um mês depois sabe pela BBC que morreu de tuberculose George Orwell. Pelo alarme e transtorno da tia, percebe que aquele Orwell é o seu pai Eric e que está morto.

Richard, que se dedicou aos tractores e à agricultura, como Orwell previra, é hoje um defensor da memória do escritor e da relação dele com Eileen, batendo-se contra as tentativas de cancelamento, que apontam aos antepassados terem tido escravos, e que o acusam de mulherengo, como na viagem do casal a Marraquexe, quando, como presente de aniversário, lhe pediu que o deixasse ir para a cama com a jovem do primeiro parágrafo. «Por amor de Deus, força com isso», sussurrou Eileen.

Publicado no Weekend, suplemento das sextas-feiras do Jornal de Negócios

4 thoughts on “A infância é uma vírgula”

  1. Um casal admirável. Não imaginava essa faceta doméstica em George Orwell. Parece-me que o senhor era original em tudo e não apenas na escrita. Fiquei a gostar (mais) dele.

    Boa Páscoa, Manuel

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