
Agora sei por que não lhe disse «Good morning, Gene». Adivinhei-lhe o tumulto atrás da alheada placidez. Se o tenho interrompido, talvez me tivesse agarrado em peso, mergulhado e afogado na piscina do Sunset Marquis Hotel.
Eu tinha ido a Los Angeles e vim tomar o pequeno-almoço tardio à piscina do hotel. Uma solidão solar, se não houvesse a uma mesa um corpanzil desajeitado, um tipo com uma cara de um metro. Estava ali Gene Hackman. No dia seguinte, voltei à mesma hora. Gene tomava, com aquele vagar que se torna aflitivo em tipos gigantescos, o mesmo pequeno-almoço, emboscado atrás de um jornal.
Tomei, portanto, dois pequenos-almoços com Hackman: só depois soube que ele fora, aos 20 anos, amigo do peito de Dustin Hoffman. Palmilhavam Nova Iorque e lá pelas duas da manhã, Gene largava-o e dizia-lhe: «Tenho mesmo de ir. Preciso.» E ia sozinho a algum tugúrio aberto, provocava quem lá estivesse, só para andar à porrada e desanuviar. Era outro, aliviado, quando voltava.
Precipitei-me. Falei de dois amigos e eram três. O terceiro era Robert Duvall. Dustin e Gene já se conheciam da Califórnia, da escola de teatro que chumbou Gene e o fez zarpar para Nova Iorque. Apaixonou-se, casou-se e aos 28 anos bate-lhe à porta Dustin, com 21. Durante 15 dias pô-lo a dormir no chão da cozinha. Mas era uma violência para a intimidade do casal ter um tipo como Dustin naqueles 30 metros quadrados. Gene agarrou nele e emteu-o em casa de Duvall, que se tornou seu mentor.
Divertiam-se a fingir que eram os Rangers, a mais potente unidade para todos os serviços. Dustin fazia de três Rangers que tinham corrido 10 milhas nus pelo gelo. Robert era o chefe e perguntava-lhe o que sentia: «Nada, chefe, sou um Ranger e um Ranger nada sente.» Robert dava um soco ao segundo Ranger: «Sentiste, soldado?» «Nada, chefe, sou um Ranger!» O terceiro Ranger nu, apresentava-se com uma enorme erecção. Robert, com o sabre, cortava-lhe o pénis erecto. «Sentiste, soldado?» «Nada, esse era o pénis do homem que está atrás de mim!»
Trabalhavam no que lhes aparecesse, em restaurantes, obras, páginas amarelas. Gene fazia mudanças e levava um frigorífico às costas a um 5.ª andar. Chamou Dustin para carregarem caixotes de livros, escadas acima. Ao fim de uma hora, Dustin caiu no chão exausto, num antes a morte que tal sorte. Com Robert, Gene fez uma entrega num prédio de luxo, sujaram a entrada e foram ao camião buscar uma vassoura. Varrido o acidente, mandam a vassoura para as traseiras do camião. A vassoura voa com um dardo e rasga ao meio uma valiosa litografia de Picasso. O dono teve um ataque e, conta Gene, borrou-se nas calças.
Chamem-lhes o que quiserem, mas estes três tipos eram puríssimos e só pensavam no teatro. E em mulheres. Dustin era vendedor no Macy’s e apaixonou-se por uma colega. Pediu ajuda a Gene, que veio vestido de mendigo, a fingir-se meio bêbado, começando a importunar a jovem. Logo Dustin o empurrou, com um «Sai daqui vadio». Gene volta e Dustin bate-lhe, entram pela casa de banho, lá dentro fingem que espatifam tudo, Gene encharca-se no lavatório, saem, Dustin pontapeia-o nas costas e Gene deixa-se cair pelas escadas. A moça horrorizada, foge de Dustin com um «És um bruto, não te quero ver mais».
No mesmo Macy’s, no Natal, Gene trouxe o filho de 18 meses. Dustin sentou-o no balcão e começou a vendê-lo: «Um boneco que anda e fala, só 17 dólares!» Uma mulher gritou: «É para mim! Quero.» Quando o agarrou, ao sentir que era um humano, fugiu espavorida e aos gritos.
Admiram-se que, juntos, tenham tido 19 nomeações e 5 Oscars?
crónica escrita para o Weekend, no Jornal de Negócios, ao saber do passamento de um dos grandes actores de sempre de Hollywood
Sempre gostei deste tipo. Um actor e peras em todos os registos. Estou a sonhar ou numa entrevista disse que um dos seus restaurantes favoritos era o Gambrinus (ou o desaparecido Escorial mesmo ao lado)?
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Se algum dia ele foi ao Gambrinus, eu tive o azar de não estar ao balcão a comer um prego 🙂 , mas lá que tinha bom gosto…
um abraço
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A pena que tenho de morte tão solitária e desprotegida. Um grande actor. Muito versátil. Teve amigos, sim. Mas a vida tece situações em que nenhum está presente. É bonito dizer que os amigos estão presentes quando são necessários. Mas quando se envelhece uns já partiram e outros estão como nós: incapazes; todos necessitam ajuda.
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Nem mais, a solidão é inescapável. A amizade talvez seja só um tesouro mental…
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