Um lugar onde se come

Se chegássemos a cavalo, quem se admiraria? Tudo aquilo cheira a muito antigo e cheira bem. É, está escrito na ementa, «um lugar onde se come». É o Musso & Frank Grill. Fica na Hollywood Boulevard, entra-se e somos recebidos por um pequeno regimento de empregados vestidos com as casacas vermelhas e os laços negros de 1919. Movem-se numa aparente doce lentidão, mesmo se em segundos nos chegam à mesa.

O Musso & Frank é uma lenda nascida com o cinema mudo. Seres pré-históricos como Mary Pickford, Valentino, Greta Garbo, Chaplin vinham aqui almoçar e jantar todos os dias. Além da sala aberta, nas laterais há pequenas cabinas mais reservadas. A 3 era a de Marilyn, a 1 era de Chaplin. Toda a gente, mesmo das cabinas, vê e é vista por toda a gente. Ouvem-se as conversas. Por exemplo: «Foi em minha casa que o Roberto engravidou a Ingrid Bergman.»

E foi num jantar de três horas que David Lynch e Mark Frost ali engravidaram de «Twin Peaks», inventando à mesa os primeiros 18 episódios. Johnny Depp era o pirata que se vinha sentar toda a tarde, ao lado do velhíssimo telefone público, o primeiro telefone público pago de Los Angeles, para onde Lauren Bacall telefonava à procura de Humphrey Bogart. O jovem Depp, sedento de papéis e fama, dava aquele número aos agentes e atendia sempre que o telefone tocava.

E vem da rua, de 1919, um alarido e estrondos. São os cavalos de Chaplin, Fairbanks e Valentino a galope: o último a chegar paga a despesa, os exaltantes cocktails e o célebre fettuccini à Alfredo. A receita, a única no mundo a respeitar o original, trouxeram-na Mary Pickford e Douglas Fairbanks. Jantaram fettuccini no famoso Alfredo, em Roma, e quiseram saber como se fazia, levando a competente nega. Voltaram na noite seguinte e ofereceram a Alfredo uma colher e um garfo em puríssimo ouro, e hoje o Musso & Frank é o guardião fidelíssimo desse fettuccini sumptuoso.

E se nos sentarmos com Chaplin na cabine 1 sabemos a razão da escolha: é a única com janela para a rua, o que o autoriza a ver o cavalo que tantos jantares grátis lhe deu. Já Mick Jaegger e Keith Richards chegam de limusina com uma exigência: tem de ser o velho Sérgio Gonzalez a atendê-los. Sérgio, bem nos seus setenta, só já faz três almoços por semana, mas se os Rolling Stones telefonam a marcar, a gerência chama-o. Para servir quase sempre o mesmo aos Stones: iscas de vitela com cebolada, fritura média, a que juntam puré de batata e ervilhas.

O velho Sérgio lembra-se de um cliente, sempre bem vestido, que o acarinhava com um «Então, paizinho, como está». Era um vendaval de ternura e Sérgio respondia abraçando-o e dando-lhe um beijo na testa. O cliente morreu, veio tudo nos jornais, e Sérgio descobriu que se tratava do afamado gangster Mickey Cohen.

E ouço, na cabine ao lado, um frequentador honorário: «Estava naquela mesa o Gore Vidal, já em cadeira de rodas, ao lado um tipo muito mais novo e nervoso, amante dele. Rebenta uma discussão entre os dois, o gajinho levanta-se, raivoso, e vai à vida. O Gore fica ali pendurado, de cadeira de rodas. Eh pá, fui ter com ele e levei-o eu a casa.»

No Musso & Frank, a ementa conserva os pratos de 1919, uma casa de bifes com sabores internacionais, que ainda tem rim de cordeiro com bacon, sanduíche de língua de vaca ou o germânico sauerbraten. E tem fantasmas: andam por ali em lençóis brancos, Steinbeck, Hemingway, Faulkner, T. S. Eliot, Aldous Huxley, Dorothy Parker. Correm atrás de uma nua Marilyn.

Eu fui lá algumas vezes, nunca a cavalo, mas sentei-me, em 1986, no banquinho vermelho de Steve McQueen ao balcão.

Publicado no Jornal de Negócios, no Weekend das sextas!

4 thoughts on “Um lugar onde se come”

  1. E sentou-se lindamente, Steve McQueen, sentado ou em qualquer posição, vale por si. Qualquer que fosse o lugar ocupado no restaurante da nobreza dos States. Que crónica bonita, Manuel.

    Like

Leave a comment

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.