Solidão e anti-solidão

Trubin, guarda-redes do Benfica, era o rosto da solidão. No meio da baliza, no Estádio de Leiria, uma fulgurante solidão vestida de amarelo chupava, como um buraco negro, toda a vida em redor, adeptos, bancadas, jogadores, mesmo o mais invisível dos apanha-bolas.

A solidão de Trubin era, por obra e graça de Jorge Luis Borges, poeta argentino cego, tão abominável como abomináveis são espelhos e cópulas ao reproduzirem seres humanos. Trubin não era só a solidão do guarda-redes no momento do penalty: ali, como os espelhos e as cópulas, os penalties repetiam-se em “looping”, numa cíclica, sísifica solidão.

Mas quero é falar da anti-solidão. Um dia, em Luanda, os mais-velhos Ó Cê Marques e Zeka Lima e Cruz disseram aos putos que eu e o Nelinho Ramos éramos: “Bora lá, ver as 6 Horas do Huambo. Bazamos daqui a meia-hora.” Era uma viagem de 600 km e não havia cá auto-estradas, esse palavrão anti-desportivo que ofende o bom condutor. E o Ó Cê Marques conduzia literalmente de luvas, embora o bólide fosse do Zeka: um Seat 850, especial por ter mais 10 cavalos, famoso na Universidade de Luanda pelas suas palas vermelhas.

Conheci, então, a estrada gárrula. Não houve um átimo de segundo, 600 km para lá, 600 km para cá, que uma palavra não enchesse. A tempestuosa nuvem de solidão que vinha dos morros, do mato, do planalto, batia na chaparia e não conseguia furar a nossa barreira de conversas. Seriam os 10 cavalos suplementares do Seat a inspirar os mais velhos e sábios Orlando e Zeka?

Voltaria ao Huambo, para a recruta de cadetes, chegada de remessa de mancebos luandenses, que as mais vivas moças do Huambo saudavam como bem-vinda, cantando em uníssono uma marcha de que não quero recordar mais do que o primeiro erecto e dissoluto verso: “Caralhim, caralhim, caralhim…

Durante três meses, com o Da Guia, meu camarada de recruta, vínhamos cada fim de semana a Luanda: 1200 km em pouco mais de 48 horas, numa imparável Honda 300 (ou CB350?). A mesma estrada, mas agora, de corpo oferecido ao vento e ao sol: um rumoroso rio, o mato, o planalto, os morros entravam-nos por cada poro. A viagem, não sei se de Pégaso ou de Centauro, que é a viagem de moto, exsuda de solidão: os gritos que piloto e pendura possam soltar, são gritos que o infinito come e que nem o norueguês Munch saberia pintar. Nenhuma angústia, apenas e só uma reverberação do grito de um Deus em êxtase com a velocidade humana e o prodigioso equilíbrio do centauro de duas rodas.

E entre a solidão e a anti-solidão, foi a viagem ao Bié, ao Cuíto, já eu e o Nelinho Ramos adultos, sem os mais velhos Orlando e Zeka. Ida e regresso foram 1430 km feitos na fímbria do pós-apocalipse, na guerra civil de 1976. Viajámos num Citroen boca de sapo. E vejam, o Citroen segue, fulgurante, pela estrada despedaçada, pontes caídas, grandes crateras a roubarem o alcatrão. E pergunto: o que viam no Citroen, e nos dois inopinados habitantes, os faplinhas das patrulhas de estrada: os novos argonautas ou a barca de Caronte?

O Nelinho, caluanda avisado e diplomata, municiou-se de «gasosa». A «gasosa» mais apetecida pelas patrulhas das FAPLA na estrada era o tabaco ou a bebida. “Komé camaradas, estamos aqui, na trincheira? Esse carro manda estilo. Dá já aí uma ajuda na nossa solidão!

O Citroen era a anti-solidão. E esses jovens de 20 anos, kalash na mão, granada no cinturão, eram a anticorrupção. O tabaco ou a bebida, na boca deles, eram um anseio de conversa, uma palavra na sua chana de silêncio.

Trubin acaba de defender o sétimo penalty. Sísifo pode, enfim, descansar.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios

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