Os satélites de Marte

Aos três pastorinhos apareceu Nossa Senhora. Na azinheira que era, na minha infância e adolescência, a cara de cada um de nós, apareciam borbulhas e espinhas. E desapareciam. E voltavam. O acne, meu Deus! E os cravos na mão, nos cotovelos, nos joelhos? Havia quem os expusesse à lua cheia e fizesse rezas do “Livro de São Cipriano” ou será que deliro? Mas sei que, com um palito, eu lhes passava em cima uma mínima gota de ácido sulfúrico e assim os exterminava. E onde e como, em nome de Deus, tive acesso a ácido sulfúrico?

Talvez seja tudo mentira, talvez eu nem tenha afinal tido infância e adolescência. E peço que vejam, no exemplo que vou já dar, como estremeço e me revolvo na minha própria perplexidade.

Quando Jonathan Swift, no século XVII, escreveu “As Viagens de Gulliver”, fez uma minuciosa descrição de dois satélites de Marte que, é claro, não existiam: ou seja, que nunca nenhum cientista ou telescópio tinha ainda visto. E Swift, em delírio, ficcionou-lhes a posição, o diâmetro, as leis de gravitação a que estavam submetidos. Ora, os cientistas no século XX, 150 anos depois, descobriram esses satélites e corroboraram as descrições do satírico e deprimente Swift, autor também de “Os Benefícios de Dar Peidos”, essa flatulente actividade tão real como os satélites de Marte.

A Vila Alice, meu bairro da Luanda colonial, era como Marte. E apareceram lá dois satélites: para nós teenagers, eram dois “mais velhos”. O primeiro, de uns cansados 20 anos, era um tipo mirrado, com uma tosse que indiciava três antepassadas gerações de tuberculosos. Passara na altura, no cinema Império, um filme de Mauro Bolognini, “O Belo António”. O viril e sedutor Marcello Mastroianni fazia no filme de impotente. E o objecto da sua impotência era Claudia Cardinale, de cujas leis de gravitação me escuso a falar.  Por uma daquelas crueldades, que depressa se tornou benigna, ao feíssimo tipo mirrado, sempre acompanhado pela banda sonora de uma brusca e convulsa expiração do ar em cativeiro em sus pulmões, demos o nome de Belo António.

Caiu-lhe como uma luva: mais do que a nossa perspicaz autoria, valeu a magnânima adopção dele. E o Belo António contou-nos que fizera, muito jovem, a pesca ao bacalhau na gélida Terra Nova, entre os fiordes dos vikings. Até que, chamado para a tropa, se ofereceu para os comandos. Foi o nosso orgulho, depressa defraudado com a sua expulsão ao fim de uma semana. Os pulmões do Belo António não resistiram às exigências de Claudia Cardinale do capitão Chung, se bem sei. E pergunto-me se, com uma audácia de Jonathan Swift, o Belo António não terá inventado tudo isto para impressionar os putos ignaros e altivos que nós eramos?

Acolhemos com cristã misericórdia outro tipo, praticamente a entrar na terceira idade, com 22 anos. Ao contrário do Belo António, o Fred, julgo que se chamava assim, era quase um Paul Newman. E era paraquedista. Primo, se bem me lembro, de um dos heróis do bairro e chefe de uma quadrilha de assaltos a ourivesarias, que fez primeira página nos jornais luandenses, ignominiosa glória do meu bairro.

Mas o Fred era outra loiça, mais vista alegre. Em ociosas tardes na esplanada da Churrasqueira, sol de chapa a bronzear-nos a preguiça, contava-me o prodígio e sonho de um tipo se lançar de três mil metros. Só uma vez se despistou e, ria-se, entrou por um galinheiro dentro, matando mais galinhas do que uma raposa.

O Belo António e o Fred são o inverso dos satélites de Marte pré-anunciados por Swift. Foram vistos uma vez: parecem ter desaparecido para sempre.

Publicado no Weekend, suplemento das sextas do Jornal de Negócios

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