
A semana passada meti aqui a mão na massa do mais controverso dos cómicos americanos dos anos 60 e 70, Lenny Bruce. Mas acho que não o mimei o suficiente e embalo-o agora com as duas mãos.
Lenny nasceu pertinho de Nova Iorque, num daqueles subúrbios selectos e agradáveis que só aparecem em certos filmes de Spielberg. Talvez por isso Lenny tenha sido o ET que sempre foi.
Desconhece-se, o que a minha mão esquerda se apresta a reparar, que Lenny era um veterano de guerra. Serviu na Marinha, num cruzador que esteve em vários desembarques americanos na Segunda Guerra Mundial, o mais espectacular dos quais em Anzio. Mas Lenny, já com a sua dose de heroísmo bem metida nas veias, queria era bazar.
Ó e se ele conhecia o que pensam Almirantes! Decidiu, por isso, vestir-se de drag queen e fazer pela meia-noite uma aparição no convés do cruzador. Era uma Cinderela que aparecia, fugazmente, a cada meia-noite e logo se evolava. Alguns marinheiros viram a sereia, espantados com o mistério. O rumor do conto de fadas correu e Lenny foi apanhado. Comunicou então ao seu Almirante – não ao nosso – que andava possuído por «anseios homossexuais», uma doida vontade de tirar as calças a toda a tripulação e acabou expulso da Marinha com desonra. E minto, viram as contas dele e verificaram que tinha um gasto monumental em prostíbulos com mulheres. Perceberam o engodo e acabou na marinha mercante a transportar tropas para a Coreia.
Decide depois começar a carreira de cómico de stand-up. Ora, cómicos de stand-up eram então mais do que as mães. Mergulhado na boémia, dando-se com sonhadores, bêbados e strippers – a companhia que eu, como Cristo, na minha tão longínqua juventude mais apreciei – Lenny libertou o arcanjo que trazia aprisionado nas masmorras do seu inconsciente, oh pois! Ora, para quem saiba alguma coisa de anjos, a verdade é que os arcanjos não são fáceis de assoar.
E a Lenny apareceu-lhe uma certa vontade de fazer humor com uma liberdade trocista, sarcástica, quase raivosa. Mesmo a malta dos night-clubs – e podia ser o Dominó do Lobito ou a Tamar de Luanda – se engasgava com o material desabrido de Lenny. Ele falava, saiam-lhe fuck you por todos os lados, e o pessoal ficava com os amendoins atravessados na garganta. Era demasiado blue, mesmo para o pessoal americano da boémia. As televisões baniram-no, está claro, classificando-o como “doentio, críptico e escatológico”.
Um dia, em São Francisco, tiraram-no do palco e prenderam-no por obscenidade. Nos tribunais, testemunharam por ele os bravos Bob Dylan, Norman Mailer, Woody Allen, Allen Ginsberg e James Baldwin.
A partir daí, criou uma Santíssima Trindade – palavrão, polícia, prisão – e fez disso a sua Bíblia. Ouçam-no: “‘Vir-se’ é uma boa expressão. ‘Se’ é um pronome pessoal, ‘vir’ é um verbo. Ou seja, o contexto sexual de ‘vir-se’ é tão vulgar que nem tem peso. Que alguém se incomode por ouvir o termo só pode resultar dessa pessoa não conseguir vir-se!”
Veio um jornalista perguntar-lhe por que raio dizia aquelas coisas: “Porque é cómico”, respondeu. E por muito amor, acrescento eu. “Nunca no mundo se dirão suficientes ‘eu amo-te’” ou “Eu ataco as pessoas que separam aqueles que se amam” foram dois dos seus lemas. Outro, mais cínico, deixou-o aos progressistas: “Conseguem compreender tudo, menos as pessoas que não os compreendem!”
Encontraram-no morto, nu, uma seringa caída ao lado do braço. Overdose, portanto. Na boa Playboy de então, lavraram-lhe o mais belo dos epitáfios: “Uma última palavra de quatro letras para Lenny: DEAD. Aos 40. Eis o que é obsceno.”
Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend, essa preciosidade que sai todas as sextas-feiras 🙂 🙂
Esse senhor merecia um estudo psicológico aprofundado, digo eu contente por não ser sua mãe. Mas, pelo que o Manuel conta, parecia uma alma inquieta e com pressa em morrer. Acho que conseguiu.
LikeLike
Inquieto era sem dúvida. E que vivia a grande velocidade, também.
LikeLike