
Ando a pensar e é uma pergunta: “Como lhe passarei o testemunho?” Ao meu neto, ao Carlos, que tem três anos, uma língua de prata que diz palavras como “esternocleidomastóideo” e “otorrinolaringologista”, pronunciando-as a uma velocidade de fórmula um, sem trocar uma soberba consoante ou uma humilde vogal. Mas como conseguirei que ele aprenda a ir ao cinema no futuro, se no futuro ainda houver cinema?
Primeira lição: mergulhado na escuríssima barriga de baleia que é a sala de cinema, o que se deve fazer é roubar – é virtude nas sombras o que é mácula à incendiária luz do sol – “Rouba, Carlos!”.
Às vezes, faço-lhe uma singela torrada com manteiga e o Carlos diz-me “Ó avô, está delicioso!” E eu quero dizer-lhe que nada é mais delicioso no cinema do que roubar infâncias. Se um dia lhe disserem, “O teu avô, Carlos, era um gatuno de infâncias”, peço aos deuses que ele acredite: é verdade.
Roubei a infância, de cara tisnada, ao miúdo do “The Kid”, de Charlie Chaplin: estão nesse filme todas as pedradas que atirei, todos os vidros que parti, o mesmo balanço a rodar o braço antes da pedra partir, a mesma infalível pontaria, a mesma tresloucada desfilada de fuga. Foram as pedradas do miúdo do “The Kid” que me despertaram as dores e a glória da primeira pedrada que me partiu a cabeça, a honra do ufano fio de sangue que o certeiro calhau fez escorrer.
A minha infância rastejada foi roubada a um filme de Nicholas Ray. Roubei-a a um homem cansado de mil quedas dos cavalos que montava nas arenas dos rodeos, já a idade lhe ia a meio: regressa à casa da sua infância e rasteja até encontrar o tesouro que escondera naquele último suspiro de se ser menino no paraíso antes de se passar ao purgatório de ser-se grande.
O filme chama-se “Lusty Men” e nele Robert Mitchum, um senhor do tamanho de um armário, que eu vi deambular na praia de Tróia, rasteja para debaixo da varanda da casa e encontra o sonho que é uma revista de banda desenhada, um velho revólver e dois cêntimos numa bolsa de tabaco (essa coisa de que a tua avó não desiste e a que sempre perguntas: “O que é fumar, avó?”)
Foi a roubar a infância a Mitchum que redescobri a minha esquecida infância, os maços de tabaco que aos 12 anos íamos esconder tão longe, no Parque Heróis de Chaves, a que então a estátua de Afonso Henriques deitava o ínvio olho. Foi a essa infância do homem que rasteja e encontra um velho revólver sem balas, que eu fui roubar o tiro que o puto Jorge me deu, com uma Diana 27, e me furou a mão esquerda de lado a lado. Tiro limpo e sem sequelas, disseram-me, o que agora o dedo anelar da mão baleada desmente: se o dobrar fica preso e tenho de o endireitar ao esticão. Estala, é claro, e nesse som seco de articulação morta está toda a doce nostalgia das tardes de vadiagem a caçar pássaros, a vaguear por ruínas de casas caídas ou pelos bosques lá para o aeroporto.
E o que roubei ao “Stand by Me” do Rob Reiner. É o filme de um escritor, Richard Dryfuss, que evoca o seu ingénuo bando de infância, uns amigos como os meus Nelinho ou Victor, o Sá, o Lando, o Meno, o Da Guia. O bando sabe que morreu um rapaz e não se encontrou o corpo. E aí vão eles para a alegria de verem pela primeira vez um cadáver: a essa razia roubei os acampamentos ao relento na praia da Floresta, sobre a baía de Luanda; e ao miúdo que lê muito e há-de ser escritor roubei as minhas leituras em cima das árvores.
Tudo o que da infância te contarei, Carlos, é verdade, mas foi roubando-a ao cinema que me encandeou essa verdade, como a luz a Saulo a caminho de Damasco.
Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend: sempre à sexta-feira!
Mas então no cinema não se roubam apenas bicicletas? E agora, no foyer, no preço das pipocas?
Não te amofines com heranças imateriais, que cedo se varrem da memória, contribui com valores certos para amparares um futuro saudável. Doa!
https://feriadoauportugal.blogspot.com/2024/12/banco-de-fezes-investigador-procura.html
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Grande Maturino
Boas Festas sem fezes 🙂 . Um Natal anti-escatológico é o que te desejo.
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Os meus votos de que a criança que é o seu neto continue a crescer de pé na bola. E a agradecer as torradas de forma tão amorosa que apetece logo dar-lhe mimos sem conta, facto que acredito se verifique e não apenas por parte do avô:). O que a gente envelhece mede-se pelo que eles crescem. E quanto nos maravilha envelhecer assim. Boas Festas, Manuel
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E cada vez cresce mais, o que, como bem indica etbienque, diz muito sobre mim. Continuação de boas festas e de um glorioso 2025.
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