O incheirável pum!

Na crónica da semana passada, este escalavrado autor e as minhas leitoras e leitores, comungámos o fascínio pela torneada perfeição que eram as nádegas de Brigitte Bardot em “O Desprezo”, essa obra-prima de Godard. Eram lindas – vermelhas, azuis e amarelas conforme os filtros com que Godard as filmou, em três minutos gourmet.

Passar das nádegas da então juvenilíssima Bardot às cansadas nádegas de um velho actor de Ingmar Bergman é uma associação livre impertinente ou, para usar linguagem cinematográfica, um “raccord” que se arrisca a azucrinar mesmo o mais terno dos espectadores

E, não obstante, essas nádegas, de que vos quero falar, também existem, não só porque os velhos têm nádegas, mas também porque esse assombroso filme chamado “Fanny e Alexandre”, inarredável mergulho de Ingmar Bergman na sua infância, tem nas nádegas de um velho actor um momento de soprada transcendência.

Perguntar-me-ão, mas que raio de transcendência haverá numas nádegas cansadas e descaídas, esse incheirável monumento de decadência e declínio que o bom gosto omite e a boa moral camufla?

Ora, e se me perdoam a digressão teórica, sempre defenderei que as grandes narrativas, os mais arrebatados impulsos estéticos são muitas vezes os que não parecem ter significado nenhum, tão ausentes julgamos estarem de pregnância artística.

E quero então mostrar-vos esse velho actor bergmaniano a começar a baixar as calças. Tudo se passa em Uppasala, na Suécia, nos anos dez do século XX, na infância estremecida, gloriosa, de Ingrid Bergman, cheia de medos polvilhados com o branco açúcar da alegria.

Estamos na mais calorosa ceia de Natal. Uma gigantesca família – são 20 ou 30, já não me lembro – partilha a mais voluptuosa refeição, as carnes, os molhos, os vinhos, os doces. Dança-se nos salões da riquíssima mansão, um dos lascivos patrões arrasta uma criada afogueada para um canto, beija-a, e ela a ele, a mão masculina já deambulatória pela fresca nádega – e ainda não é essa a nádega protagonista desta minha crónica.

Vejam, o velho tio arrastou os miúdos da casa para a escadaria interior. Em segredo, e que miúdo não se desalma por um bom segredo! Um deles é o menino Bergman, mas há mais três, e cito de cor, meninas e meninos. O velho tio pergunta, com ar melífluo e sussurrando, se querem ver trovoada e fogo de artifício. Os rostos das duas meninas e dois meninos, lábios húmidos, abrem-se em flor: querem. O tio tira os sapatos, despe as calças, por baixo as ceroulas suecas que vão até aos tornozelos. Sobe e desce as escadas para ganhar gás e começa o foguetório. O primeiro traque é uma explosão. Já a segunda ventosidade é quase uma sonora abertura musical. Na cara dos miúdos há uma elevação sublime, também o prazer do pequenino pecado que é a participação numa cerimónia secreta. Já a libidinosa cara do tio se contorce a preparar o “gran finale”. Pede a um miúdo (é Bergman, só pode) que segure no castiçal de três velas, sobe e desce cinco degraus e, de traseiro exposto, dispara o último e farto flato que apaga numa só rajada as três velas.

Para minha desgraça pessoal aqui estou eu, a escrever-vos para defender o eufórico valor artístico do traque.  Contamos histórias porque queremos ouvir o traque, o sonoro flato, a ventosidade que faz bruxulear a luz de uma vela. As histórias são os traques que ressuscitam e fazem rir o menino que os trabalhos e os dias adormeceram em nós.

Peço-vos uma coisa. Subam e desçam as escadas a correr, baixem as calças, levantem as saias e, como o tio de Bergman, façam o têm a fazer.

Publicado no Weekend, o suplemento de 6.ª feira do Jornal de Negócios

8 thoughts on “O incheirável pum!”

  1. O que eu gosto desse filme. Desse e de mais alguns do cineasta. Não dá para esquecer a particularidade do tio, é tão inesperada para nós como para as crianças; como elas, estamos fixados no que vai acontecer. Mas suponho que não ficaríamos tão contentes com o resultado do fenómeno que só em filme é incheirável. Viva o tio de Bergman.

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  2. Adoro estas suas histórias. Um dia tinha que escrever-lhe este elogio. Não sei o que vai pensar por ter escolhido esta para comentar pela primeira vez 🙂

    Eu já vi o ” Fanny e Alexander” umas três vezes, uma delas ” full version”. Já não me lembrava desta cena , mas devo ter-me divertido tanto a vê-la quanto me diverti a ler a sua crónica.

    Uma malandrice sua, confundir as nádegas da Bardot e as do tio, logo no início da crónica. Acho pouco provável que a Bardot desse pums, ainda que comesse muita ginguba e fosse noite de Natal. :))

    Obrigado

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    1. Meu caro leitor(a) anónimo (pelo menos por aqui, não consigo identificá-lo), muito obrigado pela simpatia.
      Já quanto à queridíssima BB não teria a certeza de que não tivesse ligeira inclinação para um descuidado e imprevisto flato, de vez em quando.

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