Está deitada e nua

Levantei-me agora da cama – sesta das três da tarde de fim de semana – e, se me deitara a não pensar em coisa nenhuma, levantei-me a pensar na nudez. Já de pé, saiu-me esta conclusão tão trivial como todas as que nascem de uma sesta de fim de semana: há uma dissimulada diferença entre a nudez americana e a nudez europeia.

Lembro-me, em Los Angeles, eram 10 da noite, ou talvez fossem já umas tardias 11, estávamos todos vestidos, numa bebida pós-prandial, a música techno a acariciar a azulíssima piscina do Chateau Marmont, e uma mulher deixou cair o alvo roupão aos pés. Estava nua, mergulhou na transparência azul, e a sua nudez nadou uns bons inefáveis minutos. Mulheres e homens à volta tragaram o seu espanto com a displicência de quem bebe a última gota de uísque. A mulher nua saiu das venusianas águas, logo coberta pelo roupão. Não houve um ah! de espanto aos seus seios e delicada púbis, nem um sentido aplauso à nudez asséptica da jovem mulher americana.

Venham agora comigo ao cinema. A um filme do mais “bad boy” que o cinema francês já teve, Jean-Luc Godard. Fez um filme, “O Desprezo” com um produtor americano, o filme em que esteve mais perto dessa indústria, que ele tanto admirou e tanto odiou.  A vedeta feminina de “O Desprezo” é Brigitte Bardot, traço de união dos europeus como nunca mais houve. Filmaram e Joseph E. Levine, o pro­du­tor, ao ver a versão final, sem um nu pelo menos de Bardot, atirou-se a Godard. “Não há nus, não há filme nos cinemas!” jurou. Godard resignou-se e filmou Bardot nua juntando tudo numa só sequência, de mais de três minutos, a abrir o filme.

Por favor, vejam: é uma sequência gloriosa. Num quarto de sombras, cruzado por uma réstia de luz e filtros a roçar uma certa decadência, está deitada e nua Brigitte Bardot. É irresistível olhar-lhe para as tão convincentes nádegas: ela mesma diz ao actor com quem contracena, numa pergunta que é também para cada espectador que esteja na sala: “E as minhas nádegas, achas que são bonitas?”

Será preciso responder? Bar­dot está nua, deitada de costas, na cama. O actor, Michel Pic­coli, veste uma amarrotada t-shirt branca e contempla-a. Pala­vra a palavra, pela boca de Bar­dot, com o com­pla­cente acordo de Piccoli, é-nos dito cada cen­tí­me­tro do corpo dela. Ouvi­mos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Nunca se tinha “ouvido” um corpo como nesse filme se “ouve” o corpo de Bardot. Ouvimos os torno­ze­los, as coxas, o rabo, os seios, os joe­lhos. Ouvi­mos o corpo de Bardot como se ouvís­se­mos as ondas do mar, sensação que as vagas de filtros ver­me­lhos e azuis uti­li­za­dos por Godard mais refor­çam.

Ainda temos os ouvi­dos nas redon­das e tão belas nádegas e já Bar­dot nos per­gunta “o que pre­fe­res, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabe­mos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Georges Dele­rue, a responder-lhe com mais certeza do que Piccoli. E quando ela diz “amas-me?”, ouvimos um atarantado Piccoli, a cujo abraço o sinuoso corpo se escapa, responder: “Amo-te totalmente, ternamente, tragicamente!”

Ouvimos e ouvindo entra-nos pelos olhos uma nova forma de erotismo. Este já não é o erotismo voyeur das pernas de Marilyn que o sopro do metro de Nova Iorque expõe, levantando-lhe o vestido, em “O Pecado Mora ao Lado”. A nua Bardot é de um erotismo que sabe de si mesmo, um erotismo de cama e sem inocência: a cama em que desagua a dúvida, a crescente perplexidade masculina europeia. Uma profunda fenda filosófica separa a alacridade das pernas de Marilyn das nádegas de Brigitte Bardot.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios

6 thoughts on “Está deitada e nua”

  1. Eu que tentei e tentei pintar os olhos como a BB, desenhar os lábios como ela e me saí mal nos dois, sempre lhe digo que prefiro a alacridade das pernas de Marylin. Mas confirmo, a nudez europeia de BB está carregadinha de sentido. É outra coisa. O que uma pessoa pensa depois de uma filosófica sesta! Boa semana

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  2. Como foste aumentado (do inglês enhanced – não se pode escrever português atualmente sem ser em inglês. Com certeza já reparaste no cómico caso de fake news, quando temos a palavra latina mendácia, usa-se fake news, eu também, é mais fino, muito mais moderno), retomando o fio, como foste aumentado pela academia, estarás de coração aberto aos seus problemas.

    E como editor, e os editores são os Protágoras dos tempos muito modernos, os sofistas, não no sentido vil dado por Platão, (hoje sabe-se que ele foi manipulado por Putin nessa descarga de lama reputacional), mas como os novos educadores da população, os editores têm a obrigação moral literal de publicar cuidados paliativos ou lenitivos aos problemas avassaladores que nos afligem. Não podemos abandonar a academia, como académicos temos uma dívida de honra…      

    https://feriadoauportugal.blogspot.com/2024/10/quase-23-dos-alunos-de-seis.html

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