Não sei se era Brigadoon ou um verde vale

Fim de festa em Brigadoon: casamento de que fui padrinho, a um passo de Angola independente

A primeira vez que bebi uma bica foi – como dizer? – uma estranha decepção. Já conto, mas antes declaro que os anos mais doces da minha juventude foram talvez vividos fora do planeta Terra. Não sei bem, para usar apenas exemplos de filmes, se os vivi em Brigadoon, se nesse Vale que era Verde, do filme de John Ford, que mais chorosamente nos pôs nos olhos a perfeita harmonia. E, entre Brigadoon e o Green Valley, está apresentado o meu bairro de Luanda.

Eram talvez duas da tarde, quando o meu amigo Simão me interrompeu as férias escolares: “Vamos ali ao Miguel, tomar uma bica”. Ora os meus 15 anos nunca tinham ouvido a palavra bica e sabia que, se o meu amigo Simão bebia alguma coisa, era cerveja, branca ou preta, uns finos a estalar, loirinhos ou bem mulatos. A ideia de um fino estupidamente gelado a cortar a suada tarde tropical de Dezembro foi boicotada pela aparição de duas chávenas de café. Em casa bebia-se cevada pela manhã e o meu pai moía café que trazia em grão do Porto de Luanda. Aquilo era mais do que cevada ou café fraquinho. Foi a primeira vez que a estrangeira palavra bica me passou pelo palato, a contragosto, sem adivinhar que poucos anos depois atingiria o recorde de 14 por dia, circunstância a que devo hoje um vago refluxo.

Mas deixemos as mesas do Miguel e vejamos como era o bairro. Ninguém cozinhava só para a mesa lá de casa. As vizinhas gritavam de quintal para quintal, a trocar bolinhos de bacalhau, olhe só como ficaram os meus rissóis de camarão, umas pernas de churrasco, os requintados pudins. Vivia-se em regime de comunismo gastronómico, por vezes objecto de acerba crítica: “Ai, o perú da dona Ausenda, o que é que ela lhe pôs, ficou mole, não dá gosto nenhum comê-lo! Nem com jindungo lá vai.”

Nós éramos uns peregrinos, entrávamos quando queríamos em cada casa, e o meu amigo Abílio era o favorito da minha mãe, porque comia desalmadamente, ao contrário do meu fastio, sendo logo regalado com dois ovos estrelados e vê lá se queres mais um!

Toda a vida era escrutinada, mesmo a mais íntima. Quando o filho de uma das vizinhas desapareceu de casa e, antes de ir para a tropa, se barricou em casa de uma amante mais velha, senhora de vida libérrima, de quintal para quintal a grande dúvida é que água a amante libertina tinha dado a beber ao garboso e aluado rapaz: se água de rosas, se aguinha do cu lavado.

O bairro teve a sua própria quadrilha, a primeira de Luanda a só fazer joalharias, noite calada, e sempre sem vítimas, com entradas espectaculares por uma cave ou pelo andar de cima. Eram quatro rapazes gentis que passavam depois a noite nos nostálgicos cabarets de Luanda.

Tocavam lá os Cunhas, banda do bairro também, que ensaiavam não muito longe do António alfaiate, o primeiro a tirar-me as medidas para um fatinho de casamento, que logo me deixou buelo, despardalado, com a insidiosa pergunta, “então, rapaz, para que lado é que pões a ferramenta, esquerda ou direita?”

Foi nesse doce langor, nessa vida que deslizava ociosa, numa pasmada semi-erecção entre a aurora e o crepúsculo, que um dia a vasta chana da nossa adolescência se derramou, convulsa, vendo o corpo da bela Mimi dentro de um alvíssimo vestido de noiva, a descer as escadas que davam para a mercearia do Adérito. Ia-se embora a jovem mulher que tripulava um londrino triumph descapotável, professora de inglês no liceu, as mais elegantes pernas dos nossos sonhos. Partiam com ela mil dos nossos mais ternos eflúvios. Foi com essa meiga melancolia que descobri a idade adulta e saí de Brigadoon. 

Publicado no Jornal de Negócios

5 thoughts on “Não sei se era Brigadoon ou um verde vale”

  1. O regime de Estaline era lixado. O homem tinha de fazer a revolução industrial em 5 anos. Era obra. Não sei quantos morreram na revolução industrial, a inglesa (ele teve de matar número idêntico em pouco tempo, daí parecer carnificina. Num espaço dilatado de tempo a coisa parece melhor, a pílula fica mais dourada).

    A guerra fria fez-se para lutar, é estranho a Ninotchka ser proibida em Itália, depois dos rasgados elogios do dr. Goebbels.

    Encontrei esta citação:

    American domination of post-war European cinema did not come about through the vagaries of popular taste alone, however. There was a political context: ‘positive’ American films flooded into Italy in time for the pivotal 1948 elections; Paramount was encouraged by the State Department to re-issue Ninotchka (1939) that year to help get out the anti-Communist vote. Conversely, Washington requested that John Ford’s Grapes of Wrath (made in 1940) be held back from distribution in France: its unfavorable portrayal of Depression-era America might be exploited by the French Communist Party. In general, American films were part of America’s appeal, and as such significant assets in the cultural Cold War. Only intellectuals were likely to be sufficiently moved by Sergei Eisenstein’s depiction of Odessa in the Battleship Potemkin to translate their aesthetic appreciation into political affinity; but everyone—intellectuals included—could appreciate Humphrey Bogart.

    Aqui vai a história:

    https://feriadoauportugal.blogspot.com/2024/07/o-crime-maricas-que-lancou-beat.html

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    1. pois é, mon cher Maturinô, mas o Goebbels e os amigos dele lá se sentaram com o Estaline e, tramando a camarada Ninotchka, fizeram o pactozinho que deu dois anos de costas quentes ao vociferante Hitler.

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  2. M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O! Crônica com cheiro, paladar, e escrita de tal forma que parece que estivemos todos lá…

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