Percebemos melhor quando não percebemos

Desculpem, mas tenho de falar de um dos mais vivos prosadores portugueses dos últimos 50 anos, o João Bénard da Costa.

Leiam os volumes dele que a Cinemateca publicou. Um exemplo: o João está a falar do cineasta alemão Pabst e do filme A Boceta de Pandora e os seus olhos pequeninos e brilhantes descobrem Louise Brooks.

Ó meu santo Deus, a boca do João abre-se rasgando a sua barba branca, o pulposo lábio de baixo já a brilhar com aquela saliva a que João César Monteiro chamou baba divina, e sai-lhe a expressão “o milagre Brooks”.

Qualquer um, agnóstico, ateu, pode usar a palavra “milagre”, mas quando Bénard nos revela que o milagre de Louise Brooks são cenas de beijos, de espelhismos, de dança, de costas nuas, momentos fulgurantes, choques sufocantes, a partir dos quais percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber sabemos que a natureza do milagre, para o João Bénard, é de natureza erótico-cristã, católica portanto.

E sabemos que esse milagre vem nimbado de uma transcendência que o uso trivial da expressão “milagre”, por um agnóstico a descambar para o ateu como eu, em nada cobre.

À escrita do João animava-a essa tinta negra do mistério, essa aceitação exaltada, hagiográfica, do “não perceber”, mas “não perceber” de coração satisfeito, erótico muitas vezes.

O João recusava, já se vê, a vocação totalitária da escrita progressista que tudo quer explicar e encerrar numa História fechada, numa Filosofia sem arestas. Era, avant la lettre, por exemplo, uma escrita anti-woke.

No livro de que vos falo ainda Bénard está em cima de Pabst, ou seja, ainda Bénard está em cima de Louise Brooks, mas já a falar de outro filme, Diário de uma Mulher Perdida, quando descobre nela, na sua lábil carne, no seu olhar tão carregado de tormenta, relâmpagos e sombras, o que o João chama “o desejo do desejo” e o “desejo de pureza”. Estão lá, em Louise Brooks e estão lá juntos esses dois desejos, como gémeos siameses.

A falar de uma cena de beijo-orgasmo-desmaio de Louise Brooks, o João diz que do corpo dessa actriz, do sopro vital que a anima, saem, enlaçados, e cito, “maldição e bênção”, “revelação e perda”, “início e fim”. 

A escrita de João Bénard proclama a fusão de todos os desejos, a busca desse momento pré-Big Bang em que génesis e apocalipse estavam tão sexualmente acoplados como Pai, Filho e Espírito Santo o estão na divina orgia a que os cristãos chamam Santíssima Trindade.

Outro milagre acontece em Rossellini, no filme Viagem a Itália: em plena procissão dedicada à Virgem Maria, perante o milagre de um paralítico que larga as muletas e recupera o andar, um casal desavindo, George Sanders e Ingrid Bergman, descobrem o milagre da reconciliação.

O pouco mais do que adolescente, quase homem, João Bénard foi ao cinema Eden, numa tarde de Outono, tarde de muita luz e muito sol. Viu esta cena, presenciou o milagre e, diz ele, “No fim do milagre desatei a chorar.” Onde os descrentes do cinema, os descrentes de uma estética dos ideais se riem, está o João a chorar.

Toda a sua vida de cinéfilo, de historiador e, acima de tudo, de escritor, o João andou à procura de um milagre: o da verdade que cegue tanto como quando olhamos directamente para o sol. E o João encontrou a verdade.

Cada texto dele soletra essa verdade: percebemos melhor ao percebermos que nada se pode perceber. A verdade do cinema é indizível, a verdade do João é inaudível. Sozinhos, com os escritos do João na mão, a lê-los, é como se estivéssemos no mais fabuloso deserto a olhar as estrelas. Obrigado, João, pelo milagre.

Publicado no Weekend, Jornal de Negócios

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