
Imagine, caro leitor, que é eleito primeiro-ministro. Imagine que, no pé esquerdo um sapatinho de Pedro Nuno Santos, no pé direito um sapatinho de Luís Montenegro, se passeia extático pelos jardins de São Bento, a pisar as pegadas de Costa, Cavaco, Salazar e da senhora Dona Maria Jesus Caetano Freire, que embalava o ditador: todos os desejos estão ao seu alcance e acorda nesse seu estremecido seio a mais imaginativa das crianças. Foi o que aconteceu a John F. Kennedy quando chegou à Casa Branca.
John estava pela primeira vez sozinho na Sala Oval. E já estou a mentir: tinha ao seu lado o irmão Bob. Julgo mesmo que citaram Camões. Não sei se foi John ou se foi Bob, mas um deles, encantado, exclamou: “Maravilha fatal da nossa idade!”
E vejam, ligaram a um actor, Cary Grant. Podiam ligar a quem quisessem, a Moscovo, ao presidente Mao, a Marilyn, mas ligaram a Cary Grant. Alguém atendeu e disse ao actor: “Está aqui o presidente dos Estados Unidos a querer falar consigo!” Ouçam a cantada voz de Grant: “Em que posso ser-lhe útil, Mr. President?” Do lado da Casa Branca, só se ouviu o mais deslumbrado dos silêncios. Grant insistiu: “Mr. President?” E o miúdo de seis anos que era o coração de John, saiu-lhe pela boca: “Estou aqui com o meu irmão Bob e queríamos falar consigo.” Grant insistiu, pois não, que dissessem, “em que posso ser útil?”. Apanhados em falta, os meninos John e Bob confessaram: “Mr. Grant, só lhe ligámos por uma razão simples: queríamos ouvir a sua voz!”
A voz de Archie, o verdadeiro nome desse inglês de Bristol, filho de um operário e de uma costureira, era a mais bonita voz de Hollywood, ou seja, nesse tempo, do mundo. A entoação era musical, o sotaque era o mais cristalino mid-Atlantic, invenção das classes altas americanas que imitava a mais nobre pronúncia inglesa. Grant foi um expoente desse sotaque. Nascido pobre (e não nobre), abandonado pelo pai aos cuidados da avó, depois da morte da mãe, que o pai lhe disse que estava no céu, tendo Grant descoberto aos 30 anos que o céu era um hospital psiquiátrico, faminto e em fuga para a América aos 16 anos, nada era natural na sua voz, na sua entoação, na musicalidade estudada com que dizia as réplicas nos filmes. A voz de Cary Grant, esse mistério, esse milagre ofuscante que se pode ouvir em “An Affair to Remember” ou no “North by Northwest”, de Hitchcock, é um prodigioso fingimento do que o actor deveras sente.
Não é o caso do sotaque do meu amigo “O Velho” que, não por acaso, é mais novo do que eu. Do Cacuaco a Luanda as cordas vocais de “O Velho” impregnaram-se do ajindungado sotaque de Luanda, o sotaque caluanda, o mais musical dos sotaques angolanos. Há uns anos, no lançamento do nosso “Pequeno Dicionário Caluanda”, “O Velho” e o Zé Ferreira Fernandes (o segundo melhor sotaque a seguir ao Velho) converteram os seus discursos em verdadeiras árias de ópera, como se “O Velho” fosse um barítono e o Zé o tenor de um “Nabucco” cantado entre o Sambizanga e o Marçal, meus musseques de Luanda. Eu mesmo, roído de inveja, ao fim de três imperiais com “O Velho”, como se o avião em que vim de Luanda para Portugal começasse a fazer marcha atrás, redescubro os requebros e as esquindivas do caluandês da minha infância.
E eis o que quis dizer: que é bom ouvir. John e Bob, todos-poderosos, queriam ouvir uma voz. A surdez de Trump e Putin é maiúscula: o canalha não ouve. E o nosso próximo inquilino do palacete de São Bento? Inspeccionem as orelhas dos candidatos. Votem só em quem tenha nos ouvidos um desejo de criança.
Publicado no Jornal de Negócios
Eu não diria ouvidos, mas espírito de criança. Que é quase o mesmo.
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Pois é, ouvidos limpinhos.
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